Há certos jogos aparentemente corriqueiros, de meio de campeonato, sobre os quais a história despenca aos ombros, como se deslocassem ligeiramente o eixo da terra, mudassem o rumo das coisas. A vitória do Flamengo por 2 a 1 sobre o Botafogo pelo returno do Campeonato Carioca de 1969, ocorrida há exatos 50 anos, em 1º de junho daquele ano, é um desses casos: tornou-se um épico instantâneo, de desdobramentos irreversíveis.
Em parte por livrar os rubro-negros de um carma: foi o fim de um jejum de vitórias que já durava quatro anos contra os alvinegros pela competição, durante os quais o time perdera quase todos os confrontos. Mas sobretudo por ter sido ao mesmo tempo prenunciado e abençoado pelo voo de um urubu – a ave, de verdade – sobre o velho Maracanã, fazendo com que o clube e sua torcida subvertessem o apelido racista a eles imbuído, tornando-o seu símbolo.
PRÓLOGO: HISTÓRIA SOCIAL RUBRO-NEGRA
Dizem alguns historiadores que a transformação do Flamengo em um clube de massa se deu apenas na década de 1930, quando da contratação de ídolos populares negros como Domingos da Guia, Fausto dos Santos e Leônidas da Silva, associada ao início das transmissões radiofônicas. Outros vão buscar a origem da popularidade do clube nos bate-bolas da Praia do Russel, em campo aberto, à vista de todos, assim que nele o futebol foi admitido, em 1911.
O certo é que, na metade do século XX, o Flamengo já detinha – no mínimo – a maior torcida da cidade do Rio de Janeiro, e com predominância nas classes média e baixa. Era o que apontava, por exemplo, a pesquisa levada a cabo pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) e publicada pelo Jornal dos Sports no último dia do ano de 1954. O clube rubro-negro liderava com folga em praticamente todas as categorias estabelecidas.
A rigor, só perdia em duas: entre o nível socioeconômico denominado “classe A”, de pessoas ricas, e entre os que tinham ensino superior como grau máximo de instrução. Em ambos os casos para o Fluminense. De resto, era uma lavada: era o mais popular nas classes B e C em renda, entre homens e mulheres na divisão por sexo e ainda entre os que tinham até o ensino secundário, ou somente o primário ou nenhum curso completo. Era, pois, o time da massa.
Naturalmente, por ser uma força de caráter popular (precisamente nesse sentido de povo, de massa) e pela inveja que tal superioridade numérica despertava, a torcida do Flamengo era alvo de várias gozações preconceituosas em relação a classe social e cor da pele. Botafoguenses (esses em especial), tricolores, americanos e até os vascaínos – que sempre se gabaram de uma pretensa “inclusão” – se referiam ao rubro-negro por um apelido: “Urubu”.
O Flamengo tinha então o marinheiro Popeye, famoso personagem de desenhos animados, como mascote. Além de aludir às origens do clube no remo, também transmitia a ideia de resiliência: o Rubro-Negro era o clube que, quando todos imaginavam estar derrotado, na lona, fora do páreo, ressurgia tirando da mística de sua camisa e de sua torcida seu espinafre fortificante (tal qual o personagem) para dar a volta por cima. Era o embrião do “deixou chegar…”.
A ideia de adaptar o personagem criado na década de 1920 pelo cartunista norte-americano Elzie Crisler Segar ao Flamengo, na época costumeiramente referido na imprensa como o “clube da força de vontade”, partiu do chargista argentino Lorenzo Mollas, radicado no Rio e que desenhava para jornais cariocas. Foi Popeye, por exemplo, o símbolo do primeiro tricampeonato carioca do clube, em 1942/43/44, contado na primeira página do Jornal dos Sports.
Porém, depois de um certo tempo começou a parecer estranho um marinheiro norte-americano simbolizar um clube brasileiríssimo como o Flamengo, de espírito irreverente desde sua fundação e que havia inspirado de sambas a personagens de programas humorísticos do rádio. Quem começou a fazer diferente foi o cartunista mineiro Henfil, rubro-negro fanático, em suas tirinhas de futebol publicadas no Jornal dos Sports, no apagar das luzes dos anos 1960.
Incorporando um Mollas de seu tempo, Henfil criou um personagem para representar cada um dos cinco principais clubes do Rio de então (incluindo o America). E foi corajoso ao batizar seu torcedor rubro-negro das tirinhas com o apelido pejorativo dado pelos rivais. O Urubu de Henfil reunia muitas das características dos torcedores de carne e osso e se tornara um sucesso entre os leitores flamenguistas do principal jornal esportivo da cidade.
Mas, oficialmente, a mascote rubro-negra ainda era o velho marinheiro Popeye. Não por muito tempo. Aqui, no entanto, esta história é congelada para que seja desatada a outra ponta dos acontecimentos que se uniram a ela e desaguaram naquele inesquecível 1º de junho de 1969, data redentora para os rubro-negros por vários motivos. Abrimos um parêntese na história sociológica do Mais Querido para voltar a falar de campo e bola.
O FLAMENGO DE TIM
Treinava o Fla naquele ano o paulista Elba de Pádua Lima, o Tim. Ex-atacante do Fluminense e da Seleção Brasileira na virada da década de 1930 para a de 1940, ele se convertera a treinador ao fim da carreira, assumindo o Bangu, pelo qual teria várias passagens, quase sempre com ótimos resultados para as pretensões do clube de Moça Bonita. E em 1964, de volta ao Tricolor em que atuara, conquistou o título carioca batendo justamente os alvirrubros na final.
Chamado de “El Peón” pelos argentinos quando jogava, por sua capacidade de conduzir o time dentro de campo, o técnico Tim se tornou um dos maiores estrategistas do futebol brasileiro. Não raro virava noites bolando estratégias para anular jogadas dos adversários, as quais explicava a seus jogadores utilizando uma mesa de futebol de botão. Por sua astúcia em desvendar segredos dos rivais e bolar antídotos a eles, ganhou o apelido de “Raposa”.
O Flamengo havia vencido o Campeonato Carioca em 1965 (que entrou para a história como o do IV Centenário da cidade do Rio), perdido o de 1966 numa decisão controvertida com o Bangu e depois mergulhado numa temporada medonha em 1967 e outra um pouco menos pior em 1968, quando teve o ex-jogador Válter Miraglia no comando. Para 1969, a aposta era Tim, que vinha de levar o San Lorenzo ao título do Torneio Metropolitano argentino.
Tim não era um treinador que se intrometia em vendas de jogadores (“não dirijo clube, dirijo time”, costumava dizer). Portanto, não teve participação em duas negociações polêmicas feitas pelos dirigentes rubro-negros naquele início de temporada: a saída do atacante Silva, o “Batuta”, camisa 10 e ídolo da torcida, para o Racing argentino, e a venda do jovem e promissor atacante Luís Carlos para o Vasco, concretizada em sigilo durante o Carnaval daquele ano.
Restou a ele administrar outros problemas: os laterais Murilo e Paulo Henrique mantinham o gás, mas o mesmo não se podia dizer do volante Carlinhos. O elenco contava com três estrangeiros – o goleiro argentino Rogelio Domínguez, o zagueiro uruguaio Jorge Manicera e o meia paraguaio Francisco Reyes – mas apenas dois podiam ser escalados, segundo a lei nacional. E o que fazer com o velho Garrincha, 35 anos, vivendo cada vez mais da lenda que construíra?
Enquanto procurava soluções, o treinador via a equipe oscilar naquele início de Carioca. O time estreara empatando em 1 a 1 com o Bonsucesso, equipe que se notabilizou por tirar pontos dos grandes naquele certame. Depois, venceu São Cristóvão (2 a 0), Madureira (1 a 0), Bangu (2 a 0) e Campo Grande (1 a 0), antes de perder para o Botafogo (0 a 2), ser surpreendido pelo Olaria (0 a 1 na Gávea) e parar num 0 a 0 com o Fluminense.
Perto do fim do primeiro turno, ao vencer bem a Portuguesa por 4 a 1 na Ilha do Governador, o técnico podia comemorar: encontrara a escalação ideal. Firme na defesa como já vinha sendo, dinâmico e incansável no meio e enfim impetuoso e inteligente no ataque, combinando grande dose de juventude com alguns nomes rodados, em especial no setor defensivo. E enfim fazendo despontar um reforço trazido da Argentina pelo treinador: o atacante Doval.
O TIME ENGRENA
Aquele time que “deu liga” tinha no gol o experiente Domínguez, ex-Racing e Real Madrid. Nas laterais, os eternos Murilo e Paulo Henrique. No miolo de zaga, o folclórico baiano Onça tinha ao seu lado o vigoroso Guilherme, trazido do Campo Grande. No meio, Liminha e Rodrigues Neto eram dois pulmões de aço, combatendo e levando o time à frente. E no ataque, Doval se juntava a três pratas-da-casa: o goleador Dionísio, o imprevisível Fio e o habilidoso Arílson.
Repentinamente azeitada, aquela máquina estraçalhou o Vasco no jogo seguinte, pela última rodada do turno: um memorável 3 a 0, com gols de Rodrigues Neto cobrando pênalti, Liminha (num chutaço do meio da rua) e Doval. E obteve duas vitórias significativas na virada do returno: 1 a 0 no bom time do America com gol de Doval e 2 a 0 no Bonsucesso – que até ali não havia perdido para nenhum dos grandes – com Onça e Dionísio marcando.
O próximo adversário, porém, representava um trauma. Líder do certame ao lado do Fluminense e um ponto à frente do Flamengo, o Botafogo não sabia o que era perder para os rubro-negros há dois anos no geral e há quatro pelo Carioca. Aquela era a década em que o Fla, em muitos momentos tendo de contar com times apenas esforçados, sofria nas mãos e nos pés dos craques de Seleção que vestiam a camisa do Alvinegro de General Severiano.
Era o que havia acontecido no primeiro turno, quando o Botafogo venceu por 2 a 0 com gols de Jairzinho e Roberto Miranda ainda no primeiro tempo. Vitória comemorada, é claro, com gritos de “Urubu” para cima dos rubro-negros. Além disso, também doía ver vários nomes que passaram ou fizeram história na Gávea agora do lado de lá: Zagallo era o técnico. Gerson, o cérebro do meio-campo. E Paulo Cézar, que trocara a base rubro-negra pela alvinegra.
Tim também não se conformava: no jogo do turno estava certo de que preparara uma arapuca para o Botafogo, mas não contava com Jairzinho caindo agora com frequência também pelo lado esquerdo do ataque. E, para o novo embate, não teria Fio à disposição, depois do atacante ter sido vetado pelo departamento médico. Enquanto o técnico rubro-negro coçava a cabeça para bolar seus esquemas, pelos lados de General Severiano reinava a calmaria.
No Jornal do Brasil, na coluna “Na Grande Área”, Sérgio Noronha substituía interinamente o dono do espaço, o botafoguense Armando Nogueira, e, depois de comentar as prováveis dores de cabeça que Tim andava tendo, escrevia que “Zagallo, ao contrário, está tranquilo. Tem um time definido, armado, esquematizado e confiante – talvez até um pouco demais”, antes de arrematar: “Poucas vezes as coisas foram tão azuis para um time alvinegro”.
Há, porém, fatos que passam despercebidos, mas que se revelam proféticos: no treino coletivo da quinta-feira, Zagallo postou os reservas botafoguenses na retranca, como imaginava que Tim armaria o Flamengo. E os titulares perderam por 1 a 0. O treinador, no entanto, desconversava: “Em jogo tudo muda e as situações serão inteiramente diferentes”. Enquanto isso, na Gávea, o técnico rubro-negro preparava com muita conversa o substituto de Fio.
Luís Cláudio era um meia-armador de 23 anos revelado nos juvenis do Santos e que também passara pelo Racing antes de ser contratado pelo Rubro-Negro em março de 1968, após receber passe livre do clube argentino. Jogador elegante, exímio lançador, às vezes se perdia por indisciplina: em Avellaneda, brigara com o técnico e estava em litígio com o clube. Acabou indicado por Tim ao Flamengo um ano antes de o treinador chegar à Gávea.
O restante da escalação seria rigorosamente o mesmo: Domínguez, Murilo, Onça, Guilherme, Paulo Henrique, Liminha, Rodrigues Neto, Doval, Dionísio e Arílson. A surpresa de Tim só se viu, porém, dentro das quatro linhas. Mas antes de falar delas, o texto faz uma elipse e volta a falar do outro momento inesquecível daquele clássico: o dia em que a torcida subverteu o preconceito ao qual era vítima e viveu o êxtase no Maracanã antes mesmo da bola rolar.
O URUBU
Luís Otávio Vaz Pires e Romílson Meirelles eram dois jovens de uma turma rubro-negra do Leme, bairro da Zona Sul do Rio. Nos dias que antecederam o clássico, eles tiveram uma ideia: arranjar um urubu para soltar em pleno Maracanã na hora do jogo. Na véspera, foram ao depósito de lixo do Caju (próximo à Zona Portuária) e, com a ajuda de um gari também rubro-negro, apanharam o bicho arisco, depois de uma certa dificuldade.
Em depoimento ao livro “Grandes jogos do Flamengo”, de Roberto Assaf e Roger Garcia, Luís Otávio relembrou como foi o transporte da ave: “O urubu veio num DKW, enrolado numa bandeira, bicando todo mundo. Ele dormiu na portaria do meu prédio. No domingo, fomos cedo para o Maracanã (…). Entramos com o bicho dentro do bandeirão gritando ‘Mengo! Mengo! Mengo!’, não houve problema”, contou o torcedor.
Com uma bandeira rubro-negra amarrada às patas, o urubu foi solto pelos torcedores minutos antes dos times entrarem em campo. Em princípio, a ave hesitou. Mas logo partiu para sobrevoar o estádio lotado, que recebeu quase 150 mil pagantes naquela tarde de domingo – e com a torcida do Flamengo em maior número, é claro. Depois de um rasante de tirar o fôlego, o bicho foi ovacionado. Em êxtase, a massa flamenga gritava: “É urubu! É urubu!”.
Foi um sensacional abre-alas para o que se assistiria em campo. Logo o Fla subiu ao gramado com a escalação já citada. Em seguida, foi a vez do Botafogo e seus craques: Ubirajara Mota, Moreira, Zé Carlos, Leônidas, Valtencir, Carlos Roberto, Gerson, Rogério, Roberto Miranda, Jairzinho e Paulo Cézar Lima, o Caju. A arbitragem era de Armando Marques, nome que rendeu preocupação na Gávea, diante de seu histórico de decisões polêmicas contra os rubro-negros.
O Flamengo, porém, logo se mostrou taticamente ajustado o suficiente para não se preocupar com o árbitro. Depois da surpresa dos torcedores, soltando o urubu em pleno Maracanã, haveria outra, a de Tim para os alvinegros: um time muito bem postado em campo, atento à marcação e à cobertura dos espaços, com uma determinação e um espírito de luta que lembravam os velhos tempos do Flamengo-Popeye, e sobretudo muita inteligência nas ações.
O JOGO
As orientações começavam com uma alteração inusitada: Luís Cláudio jogaria sim na vaga de Fio, mas não como ponta-de-lança e sim como uma espécie de lateral-direito. Sua missão era colar em Paulo Cézar e, quando tivesse a bola, postar-se na linha do meio-campo e quebrar a defesa alvinegra com seus passes longos. Sabendo que a principal arma dos alvinegros também eram os lançamentos de Gerson para Jairzinho e Roberto, Tim se precaveu.
O lateral-direito “oficial”, Murilo, foi deslocado para o miolo de zaga, sacrificando sua vocação ofensiva pela tarefa de conter Jairzinho. Enquanto isso, a missão de parar o raçudo Roberto Miranda ficava com Guilherme, zagueiro “de briga” assim como o atacante alvinegro. Atrás da dupla de zaga, o beque-central Onça era recuado para o posto de líbero, então uma novidade no futebol brasileiro, ficando como uma última barreira a ser transposta.
Pelo lado esquerdo da defesa, Paulo Henrique teria seu embate com Rogério e apoiaria sempre que a brecha aparecesse. Já no meio-campo, Liminha e Rodrigues Neto formariam uma barreira para tentar bloquear os lançamentos de Gerson. O primeiro era especialmente encarregado de colar no Canhota. Já o segundo acompanharia Carlos Roberto mais de longe, até para ter sua própria liberdade para se movimentar e apoiar o ataque.
No ataque, o tridente era formado por Doval pela direita (travando duelo com Valtencir no qual sairia como vencedor por larga vantagem), Dionísio pelo centro (sempre oportunista, mas sem se afobar) e Arílson pela esquerda, desdobrando-se entre ajudar o meio e cair por aquele flanco. E apesar de um susto logo no começo do jogo, com Jairzinho acertando a trave, o Fla se mostrou superior durante todo o jogo e não demorou a abrir o placar.
Logo aos nove minutos, Doval recebeu de Luís Cláudio, ganhou de Valtencir, foi ao fundo e cruzou. Dionísio recebeu, dominou, fez que chutaria com a direita, livrou-se de Leônidas e bateu de canhota. O goleiro Ubirajara deu rebote, e Arílson entrou para estufar as redes. O Botafogo tentou reagir, mas o Fla não deu refresco: Liminha colava em Gerson, Luís Cláudio em Paulo Cézar, Murilo em Jairzinho, Guilherme dava duro em Roberto, Paulo Henrique anulava Rogério.
E para desesperar ainda mais os alvinegros, o Fla ampliou aos 23 minutos: Rodrigues Neto – apontado o melhor em campo por unanimidade pela crônica – escapou pelo meio, desceu pela esquerda e cruzou. Após furada monumental de Valtencir, Doval não perdoou e fuzilou Ubirajara. Neste instante, em êxtase, a torcida rubro-negra começou a cantar sua versão para o samba-enredo do Salgueiro “Bahia de Todos os Deuses”, vencedor do Carnaval daquele ano.
Atordoado, vendo o Flamengo encurtar os espaços de seu time e levar perigo especialmente pelo lado esquerdo de sua defesa, Zagallo tentou um antídoto para o Botafogo na etapa final. Paulo Cézar foi deslocado para o meio, fugindo da marcação de Luís Cláudio e abrindo o corredor para o apoio de Valtencir, na tentativa de confundir a marcação cerrada rubro-negra. Mas a equipe de Tim não se abalou e manteve o mesmo posicionamento.
Luís Cláudio continuava como um lateral-direito, agora tomando conta de Valtencir. Nas costas do ala alvinegro, Doval tinha ainda mais espaço para fazer a festa nos contra-ataques. Enquanto isso Paulo Cézar era mais um a parar no intenso bloqueio formado pelo meio-campo rubro-negro. Numa única tentativa acertada, no entanto, surgiu o lance que acrescentou dramaticidade ao jogo: o Caju lançou Jairzinho, que foi derrubado por Domínguez na área.
O próprio Paulo Cézar bateu e converteu a cobrança. Eram sete minutos do segundo tempo. O Botafogo então se lançou ainda mais ao ataque, mas o Fla mostrava uma calma e uma resiliência surpreendentes. Domínguez acalmava a defesa, Luís Cláudio ditava o ritmo, Rodrigues Neto se desdobrava, Doval era ameaça constante. Os papeis estavam invertidos em relação ao histórico recente do confronto. Eram os alvinegros que davam murro em ponta de faca.
O relógio andava, e o Fla se segurava, encaixotando o Botafogo, e às vezes, levando até mais perigo. Como no lance já depois dos 40 minutos em que Ubirajara, depois de driblado por Dionísio, agarrou o atacante pelo calção dentro da área, num pênalti claro para os rubro-negros solenemente ignorado por Armando Marques. Nada, porém, tiraria a vitória épica do Flamengo naquele dia. O urubu pousara na sorte do Botafogo.
A comemoração foi uma verdadeira catarse: sob uma lua descomunal que pairava sobre o Maracanã, homens choravam e riam ao mesmo tempo. Um torcedor rubro-negro, sentindo-se ele próprio um pássaro, pulou de uma altura de seis metros da arquibancada. Fraturou a perna e quebrou alguns dentes, mas estava feliz. O estoque de cerveja acabou nos bares da cidade, desde as biroscas do Irajá até os restaurantes grã-finos de Ipanema.
Antes do jogo, ao chegar ao Maracanã, o folclórico chefe de torcida alvinegro Tarzã provocava: “Se o homem ainda não conseguiu chegar à Lua, como um urubu vai pisar na estrela?”. Dali a menos de dois meses, em 21 de julho, o astronauta norte-americano Neil Armstrong caminharia sobre o solo lunar. Mas antes, naquele 1º de junho, o urubu já havia feito mais que pisar na estrela. Havia conduzido o Flamengo, sob o olhar de seu povo, a uma vitória eterna.
FICHA TÉCNICA
FLAMENGO 2 x 1 BOTAFOGO
Estádio do Maracanã (Rio de Janeiro)
Domingo, 1º de junho de 1969
Campeonato Carioca – segundo turno, terceira rodada
Público: 149.191 pagantes
Árbitro: Armando Marques.
Gols: Arílson (1-0) aos nove e Doval (2-0) aos 23 minutos do primeiro tempo; Paulo Cézar, de pênalti (2-1) aos sete minutos do segundo tempo.
Flamengo: Domínguez – Murilo, Onça, Guilherme e Paulo Henrique – Liminha e Rodrigues Neto – Doval, Dionísio, Luís Cláudio e Arílson. Técnico: Elba de Pádua Lima, “Tim”.
Botafogo: Ubirajara Mota – Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Valtencir – Carlos Roberto e Gérson – Rogério, Roberto Miranda, Jairzinho e Paulo Cézar. Técnico: Mário Jorge Lobo Zagallo.