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O centenário de Perácio: craque do Flamengo, personagem de anedotas e pracinha brasileiro

02 quinta-feira nov 2017

Posted by Emmanuel do Valle in ídolos

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Existiu Perácio, o craque, ídolo e artilheiro. Existiu Perácio, o personagem de anedotas. E existiu Perácio, pracinha brasileiro que serviu na Segunda Guerra Mundial. Todos eles, no entanto, foram um só, José Perácio, mineiro de Nova Lima, nascido há exatos 100 anos, em 2 de novembro de 1917. O atacante que aportou desacreditado no Flamengo e, homem simplório e ingênuo, fez-se ídolo do povo rubro-negro e tricampeão carioca na Gávea em 1942, 43 e 44 – com participação especialmente decisiva no segundo dos três – foi condecorado também como herói por outra nação, a brasileira, após ser convocado para integrar a Força Expedicionária Brasileira na Itália, em 1944. É um nome singular na história do Mais Querido.

Perácio, o craque, foi revelado pelo alvirrubro Villa Nova de sua cidade, clube que fazia frente aos grandes de Belo Horizonte. Era meia-esquerda, um dos cinco integrantes da linha ofensiva do velho esquema 2-3-5, ou “pirâmide”. Ou ainda ponta-de-lança, de acordo com a nomenclatura instituída após a adaptação do sistema WM inglês no Brasil por Flávio Costa, a chamada “diagonal”. Fosse qual fosse o nome da posição, Perácio era um portento no ataque, um verdadeiro tanque. Imparável nas arrancadas, arrastando marcadores, e culminando quase sempre com um chute fortíssimo ou uma cabeçada certeira.

Perácio, o personagem, era homem feito com ingenuidade de menino. O que trocava as palavras (“fui ao dentista para ele distrair meu dente”, em vez de “extrair”). O contador de histórias fantasiosas, o simplório, o brincalhão, o naïve. Eram tantos os casos que mais pareciam piadas envolvendo seu jeito de ver o mundo que Mário Filho, cronista imortal do nosso futebol, separou um capítulo inteiro de seu livro Histórias do Flamengo para registrar dezenas delas, intitulado “Perácio através das anedotas”.

O interlocutor costuma variar – às vezes Leônidas, às vezes Martim, às vezes Perrota – mas a história é a mesma, e popularíssima. Perácio dava carona a um deles em seu Packard quando parou num posto de gasolina para reabastecer. De pronto, acendeu um cigarro e jogou fora o fósforo, que caiu bem perto da mangueira de combustível. Ao ver o gesto, o outro passageiro se desesperou: “Mas como você faz uma coisa dessas, Perácio?!”. Ao que o atacante respondeu: “Ué, não sabia que você era supersticioso!”.

Perácio (ao centro, de gravata clara) e seu povo, em foto da Esporte Ilustrado, 1943.

Corria o primeiro semestre do ano de 1937 quando o Villa Nova andou pelo Rio de Janeiro, então capital federal, excursionando e exibindo seus craques pelos campos cariocas. Muitos deles ainda remanescentes do incrível tetracampeonato mineiro obtido pelo clube entre 1932 e 1935. Um deles era Perácio, sem nem 20 anos de idade completos e já titular desde os 17, chamando atenção o suficiente para merecer destaque na nota do Jornal dos Sports que registrou a iminência da vinda do Alvirrubro.

Perácio já era velho conhecido não só dos clubes cariocas como também dos paulistas, já que ambos jogavam regularmente contra o Villa Nova por essa época. O atacante esteve perto de se transferir para o Palestra Itália de São Paulo (atual Palmeiras), junto com o médio e amigo Zezé Procópio, numa movimentação conturbada que ganhou ares de escândalo por deserção. O Fluminense também sondou sua contratação. Mas naquele ano de 1937, ele acabaria seguindo para o Botafogo, para onde já tinha ido Zezé. O clube se impressionara com a atuação do jogador ao ser batido pelo Villa Nova por 3 a 2 num amistoso jogado no campo do São Cristóvão, em Figueira de Melo.

Pelo clube de General Severiano, Perácio atuaria entre 1937 e 1940. Chegou com o peso de craque mais caro do Brasil, comprado por 30 contos de réis. Formou com o ponta Patesko uma “ala esquerda” que chegaria junta à Seleção, na Copa do Mundo de 1938, na França. Naquele Mundial, o meia-esquerda atuaria em quatro dos cinco jogos do Brasil e marcaria três gols (dois contra a Polônia e um contra a Suécia), terminando como vice-artilheiro da Seleção, ao lado do tricolor Romeu Pelicciari, ainda que bem distantes dos sete tentos do rubro-negro Leônidas da Silva, goleador máximo da competição.

Na Copa de 1938, a delegação brasileira ficou hospedada num hotelzinho em Saint Germain, perto de Paris, achado pelo dirigente Irineu Chaves. Ao acordar, no dia seguinte à chegada, Perácio sentiu fome e apanhou o telefone. Do outro lado da linha, a recepção do hotel. Perácio então fez o pedido – em português, naturalmente: “Ô, rapaz, mande cá em cima uma média com pão e manteiga”. O recepcionista, atônito, apenas dizia “je ne comprend pas, je ne comprend pas…”. Perácio bateu o telefone, virou-se para Martim, seu companheiro de quarto, e, indignado, protestou: “Veja só pra que tipo de hotel nos levaram! A esta hora do dia e ainda não compraram pão!”.

Nos quatro anos em que jogou pelo Botafogo, no entanto, Perácio não conseguiu ser campeão. O mais perto que os alvinegros chegaram foi um vice em 1939, três pontos atrás do Flamengo. Tiveram o ataque mais positivo (com o meia-esquerda balançando as redes 13 vezes), mas não evitaram o título rubro-negro com uma rodada de antecipação. Ao fim da temporada seguinte, após mais um dos muitos desentendimentos que teve com o presidente botafoguense João Lyra Filho, Perácio foi afastado do elenco. O Flamengo se interessou, mas Lira Filho pediu alto, além de vetar o empréstimo temporário do jogador aos rubro-negros, que excursionariam pela Argentina.

O já rubro-negro Perácio na seleção carioca, ao lado dos companheiros de clube Jaime de Almeida e Biguá, em foto da revista Esporte Ilustrado, 1943.

No fim de maio de 1941, Perácio foi enfim negociado – ou melhor, exilado. Após longas negociações, teve acertada sua venda ao Canto do Rio. O clube niteroiense recebera naquele ano a licença especial da Liga de Football do Rio de Janeiro (logo transformada em Federação Metropolitana de Futebol) para disputar o Campeonato Carioca, inaugurava o estádio de Caio Martins e pretendia montar um time que justificasse sua presença no torneio. Perácio chegou com o certame em andamento e se machucou logo na estreia, contra o São Cristóvão. E não fez uma temporada tão brilhante quanto as que costumava fazer e que o levaram à Seleção.

Gordo, fora de forma após o longo período de inatividade entre o afastamento do Botafogo e a chegada ao Canto do Rio, desmotivado, sentindo-se chutado do clube no qual era o responsável por alegrar o ambiente, Perácio se entristeceu. Sentiu apenas uma ponta de revanche na última rodada do returno, em 31 de agosto, quando o Canto do Rio, já sem chances de se classificar para o terceiro e quarto turnos, recebeu o Botafogo de Heleno de Freitas e de seus velhos companheiros Zezé Procópio e Patesko em Caio Martins. O meia-esquerda abriu o placar na goleada cantorriense por 6 a 3.

Findado o campeonato, o Canto do Rio cedeu alguns de seus jogadores a outros clubes para disputarem amistosos. Perácio defendeu primeiro o America diante do Palestra Itália paulista. E em seguida, no dia 12 de dezembro de 1941, vestiria pela primeira vez a camisa do Flamengo, no estádio do time rubro, em Campos Salles, enfrentando o Sport, campeão pernambucano. Mesmo desfalcado de vários titulares, que defendiam naquele momento a seleção carioca no Campeonato Brasileiro, e contando com atletas emprestados em caráter experimental, o Fla não teve dificuldade para vencer por 3 a 1.

O Canto do Rio não cedeu Perácio para uma excursão a São Paulo que o Fla pretendia fazer. Mas seus dirigentes e os do Rubro-Negro acertariam a transferência do jogador para a Gávea para a próxima temporada. Só faziam questão de que o jogador só deixasse o clube após o dia 28 de dezembro, quando as duas equipes se enfrentariam pelo Torneio Extra, competição sem grandes atrativos, a qual o Fla disputava com time misto, sem vários de seus astros. Mas Perácio se despediria honrosamente do clube niteroiense ao mesmo tempo em que apresentava um belo cartão de visitas à torcida rubro-negra: o Canto do Rio venceu por 3 a 0, e ele marcou o gol que fechou a contagem.

Pirillo, Flávio Costa e Perácio. Os carros eram uma paixão do atacante.

A temporada de 1941 começara brilhante para o Flamengo, mas terminara amarga. Nos dois primeiros turnos, a equipe dirigida por Flávio Costa voou: venceu 15 de seus 18 jogos, somou 34 pontos em 38 possíveis e terminou na liderança, quatro pontos à frente do Fluminense, segundo colocado. Porém, ao fim do terceiro turno, disputado por apenas seis equipes, a vantagem na ponta já havia desaparecido. Na última rodada do quarto turno o Fluminense já chegava com vantagem de empate para o Fla-Flu da Gávea. Abriu 2 a 0, mas o Fla chegou à igualdade na raça. Porém, no jogo que ficaria conhecido como o das “bolas na Lagoa” (para fazer cera após a reação rubro-negra, os tricolores chutavam a bola para a Lagoa Rodrigo de Freitas, que então margeava o estádio do Fla), o título acabaria seguindo para as Laranjeiras.

A queda de rendimento do time rubro-negro na reta final do torneio era explicada em grande parte pelos problemas na meia-esquerda. O baiano Nandinho, dono da posição, não convencia. Flávio Costa chegou a deslocar o médio Jaime de Almeida e o ponta-esquerda Vevé para a função, mas nenhum dos dois se sentiu à vontade. Num último recurso, o clube trouxe da Argentina o meia Emilio Reuben, ex-Vélez Sarsfield, Independiente e Lanús. Mas ele não teve tempo de se adaptar ao estilo de jogo, e o jeito foi lamentar a perda de um título que pareceu iminente. Para tentar mais uma vez solucionar o problema é que os dirigentes apostaram suas fichas em Perácio.

Flávio Costa, ao ver o jogador chegar à Gávea com alguns quilos a mais, prontamente o colocou para perder peso. Perácio treinava todos os dias usando duas camisas de lã. Também havia deixado de lado definitivamente a vida boêmia pela qual se notabilizou ao lado dos colegas de Botafogo. Seu passatempo agora era pescar na Lagoa, ali na rampa do Flamengo, em frente ao estádio da Gávea. Almoçava numa pensão vizinha e frequentava apenas as redondezas, recolhendo-se cedo para ser o primeiro a aparecer nos treinos.

A elegância dos rubro-negros Jaime de Almeida, Biguá, Perácio e Artigas, num Rio ainda sem o Aterro, em foto de 1942 para a Esporte Ilustrado.

Foi incluído no time que iria a São Paulo disputar a Quinela de Ouro, torneio pentagonal que também contou com o Fluminense e os três grandes da capital paulista. O Fla voltou invicto, mas sem a taça – teve de se contentar com um segundo posto. E Perácio marcou um gol no empate em 2 a 2 com o Palmeiras. Voltaria a marcar na estreia pelo Campeonato Carioca, numa goleada sobre seu ex-clube, o Canto do Rio, por 6 a 0 nas Laranjeiras (disputava-se o chamado “turno neutro” do campeonato).

Mas embora o nível das atuações não tivesse piorado, os rubro-negros não seguiram bem naquela etapa, oscilando e perdendo muitos pontos. Terminaram o turno em terceiro, empatado com o Madureira, mas cinco pontos atrás do vice-líder Botafogo e sete atrás do líder Fluminense. Perácio saiu do time, retornou e depois foi para a reserva novamente, voltando Nandinho a ocupar a meia-esquerda. No returno as coisas voltaram a dar certo, e o Flamengo engrenou uma sequência de triunfos.

Às vésperas do Fla-Flu de 9 de agosto, pela última rodada do returno na Gávea, o centroavante Pirillo se lesionou. Precisando de um substituto de última hora, Flávio Costa trouxe de volta Perácio. Deslocado para uma posição que não era a dele, mas sem por isso deixar de se esforçar, o atacante acabou premiado: marcou o gol da vitória, completando numa cabeçada certeira um cruzamento de Vevé. Sete pontos atrás dos tricolores no turno, o Flamengo agora ultrapassava os rivais graças a aquela vitória, entrando no terceiro e último turno um ponto à frente.

O alvo a ser perseguido agora era o Botafogo, novo líder. E Perácio continuou contribuindo enormemente. Depois de ficar de fora da estreia no terceiro turno, contra o Canto do Rio, ele voltaria justamente no confronto direto entre os ponteiros, agora em sua verdadeira posição. E com uma atuação extraordinária, marcou dois gols ainda no primeiro tempo, com Pirillo e Jaime completando a goleada categórica por 4 a 0, placar tão desconcertante que irritou o ídolo alvinegro Heleno de Freitas, expulso perto do fim do jogo, com a contagem já definida. O Fla agora empatava na liderança. A briga estava em aberto.

A vitória sensacional sobre o Botafogo na Gávea naquela tarde de 23 de agosto deixou muitos torcedores eufóricos, inclusive alguns sócios rubro-negros. Homens endinheirados, eles fizeram questão de mostrar sua alegria com o resultado abrindo a carteira para homenagear Perácio, o artífice da goleada. Depois do jogo, o atacante mineiro entrou no vestiário com uma nota de 500 mil-réis pendurada uma orelha e outra de 200 mil-réis na outra, bem enroladinhas. E comentou, entre gargalhadas, com os companheiros de time: “Olhem os brincos que me deram!”.

Na partida seguinte, contra o Vasco em São Januário, o Flamengo perdia por 1 a 0 até há dez minutos do fim. Foi resgatado por Perácio, autor do gol de empate que incendiou o time: aos 42, o Fla viraria o placar com gol de Pirillo, seguindo na briga pelo título. O atacante mineiro ainda marcaria nos três jogos seguintes, três vitórias: um contra o Madureira (4 a 1), outro sobre o America (incríveis 8 a 5) e dois contra o Bonsucesso (7 a 0). Até que uma crise de apendicite o tirou do campeonato. Nandinho voltou ao onze titular nas rodadas finais, e os rubro-negros se sagraram campeões ao empatarem com o Fluminense nas Laranjeiras em 1 a 1 – uma espécie de troco da decisão do ano anterior.

O time campeão carioca de 1942. Em pé: Jaime de Almeida, Volante, Biguá, Domingos da Guia, o goleiro Jurandir e Newton Canegal. Agachados: Valido, Zizinho, Pirillo, Perácio e Vevé.

Perácio não voltaria a defender a Seleção Brasileira como jogador do Flamengo. Mas encontraria uma outra forma de servir ao Brasil. Entrou em cena Perácio, o pracinha. Convocado para se alistar na Força Expedicionária Brasileira que seguiria para a Itália lutar na Segunda Guerra Mundial, seguiu para o Recife no começo de 1943, onde recebeu treinamento militar e participou de exercícios que simulavam conflito.

Na volta ao Rio, Perácio conversava com a filha de um cartola rubro-negro durante um jantar. Contava suas experiências no Exército, onde vira pela primeira vez um submarino. “A senhorita já deve ter visto um no cinema. Eu achava que era coisa só de filme, mas lá eu vi um submarino de carne e osso”. A mocinha estranhou, mas manteve o papo: “De carne e osso? Que interessante!”. “Eu entrei no submarino, e ele mergulhou”, prosseguiu o jogador. “E o que aconteceu?”, retrucou a moça. “Ah, quase que eu não estou aqui pra contar a história. Pensei que morreria asquificiado!”.

A jovem enrubesceu, constrangida. Mas logo se acostumou ao jeito de Perácio. Ao fim da conversa, elogiou o atacante: “Eu fazia outra ideia dos jogadores de futebol. Espero que essa guerra acabe logo e você volte para o nosso Flamengo. Encantada!”. Perácio se curvou, sacudiu os braços e, entre o entusiasmado e o comovido, agradeceu ao seu estilo: “A senhorita é uma príncipa!”.

O atacante ficou no Recife lá até o início de julho, quando obteve transferência para o Rio. Ficou de fora de todos os jogos do Flamengo no primeiro semestre, jogando em seu lugar Nandinho, Tião, o ex-aspirante Vicente ou o argentino Ricardo Alarcón, que o Flamengo trouxera do Boca Juniors para substituí-lo. Nenhum esquentou lugar. A sorte é que Perácio voltou com fome de bola.

O Flamengo tinha em Pirillo seu goleador atestado e dado fé, o legítimo sucessor de Leônidas da Silva. Em 1941, ano de sua chegada, o gaúcho marcara impressionantes 39 vezes no Campeonato Carioca, recorde até hoje. No ano seguinte, o número de gols (e de jogos) diminuiu, mas com seus 22 tentos foi novamente o artilheiro do time na campanha do título. E não é que em 1943, mesmo estreando só na quinta rodada, Perácio fez ainda mais gols que Pirillo?

Perácio e o zagueiro tricolor Norival. O atacante brilhou em vários Fla-Flus ao longo da campanha do tricampeonato carioca.

A começar pela partida de reestreia, Fla-Flu nas Laranjeiras. Jogo muito disputado no primeiro tempo, como manda a tradição do clássico, mas sem gols. Até que Perácio abriu o placar aos três minutos da etapa final, aproveitando um cochilo da zaga tricolor e chutando fraco, mas sem chances para o goleiro Gijo. O Flamengo completaria o 2 a 0 mais tarde com Zizinho, recuperando-se da derrota para o America na Gávea (2 a 1) da rodada anterior. O próximo desafio era medir forças com o novo líder isolado do campeonato na abertura daquela sexta rodada. Sabem quem? O São Cristóvão.

Perácio não tomou conhecimento e marcou dois gols na impiedosa vitória rubro-negra por 4 a 0 na Gávea. Com seus já famosos “rushes”, foi um tormento para a defesa cadete. Seu retorno, comentava a imprensa, fazia inclusive crescer de novo o futebol de Pirillo, já que agora as retaguardas teriam dois goleadores para ficar de olho. E, com efeito, Perácio seguiu balançando as redes. Abriu a contagem nos 5 a 1 diante do Bonsucesso. Salvou um ponto no complicado empate com o Bangu na Rua Ferrer (2 a 2). Também inaugurou o marcador na revanche contra o America em Campos Sales (Fla 3 a 1).

Veio o Fla-Flu do returno, na Gávea, em 12 de setembro, com o Flamengo um ponto à frente na liderança do campeonato. Mas os tricolores é que abriram o placar, com o argentino Pablo Invernizzi, logo aos sete minutos. Aos 12, Perácio empatou aproveitando centro do ponta-direita Jacy, e minutos depois ainda faria a trave balançar com um chute fortíssimo. Mas perto do fim do primeiro tempo, Carreiro voltou a colocar o Flu na frente. Na etapa final, desde o início os tricolores já faziam cera, recorrendo ao expediente de chutar a bola para o mais longe que desse – se possível na Lagoa Rodrigo de Freitas, como em 1941.

O tempo passava, e o Flamengo seguia pressionando intensamente, apoiado pela torcida, mas um tanto nervoso e sem sorte nas finalizações. Até que, aos 45, o lateral tricolor Afonsinho cortou para escanteio um perigoso ataque rubro-negro pela ponta esquerda. Vevé cobrou o corner fechado, com veneno, como era seu costume, e acertou o travessão. O goleiro Gijo deu um tapa e a bola caiu aos pés de Perácio, que entrou como um touro e fuzilou para empatar o jogo, salvando ainda a liderança do Fla.

Perácio é abraçado pelos companheiros (entre eles, Jaime de Almeida e Biguá) na comemoração do gol de empate dramático diante do Fluminense.

“É difícil descrever o delírio que se apossou da torcida do Flamengo. A bola mal chegou ao centro do campo, Pereira Peixoto apitou, o match acabara. A multidão continuava a gritar goal, a pular, tudo que era flamengo enlouquecera”, escreveu Mario Filho em sua crônica do jogo para o Jornal dos Sports. “Desde 1941 que o Flamengo esperava por um gol assim”, lembrou Ricardo Serran, outro destacado jornalista esportivo da época, em sua análise para o Globo Sportivo.

Dali a duas semanas, Perácio marcaria novamente em outra goleada de 5 a 1 sobre o Bonsucesso, agora nas Laranjeiras, mantendo os rubro-negros na liderança, de novo ao lado do Fluminense. A duas rodadas do fim do certame, os dois clubes tinham 24 pontos, dois a mais que o Vasco, que vinha numa ascendente, com cinco vitórias consecutivas. Com 21 pontos, o São Cristóvão ainda alimentava esperanças, mas dependia de resultados pouco prováveis. No dia 3 de outubro, os quatro primeiros se enfrentavam: Flamengo e Vasco em General Severiano, São Cristóvão e Fluminense em São Januário.

O Vasco crescia porque já contava com a forte base do time que dominaria o futebol carioca a partir da metade daquela década de 40, o chamado “Expresso da Vitória”. Sete jogadores que entraram em campo naquele 3 de outubro no estádio botafoguense estariam no elenco cruzmaltino campeão dali a dois anos, incluindo o ponta-de-lança Ademir Menezes. Mas o senhor daquele jogo foi o Flamengo de Perácio.

O time abriu o placar com Vevé aos 39 da primeira etapa. E na segunda, veio o baile: em dois petardos de longa distância, aos três e aos quatro minutos, o atacante mineiro batia o goleiro vascaíno Oncinha e ampliava para 3 a 0. Pirillo também anotaria dois, aos 20 e 22. Dois minutos depois, o ponta Chico descontou para o Vasco, mas logo em seguida Zizinho fez o sexto. Já a oito minutos do fim, Lelé tornou a diminuir para os cruzmaltinos, sem, no entanto, deixar de evitar a goleada implacável por 6 a 2. A maior da história do Flamengo sobre o rival em todos os tempos.

Time que derrotou o Vasco por 6 a 2 na reta final do certame de 1943: Jurandir, Domingos da Guia, Perácio, Newton Canegal, Jaime de Almeida, Bria, Pirillo, Zizinho, Biguá, Vevé e Jacy.

A vitória rubro-negra acabara com as chances de título do São Cristóvão, mas o clube cadete contribuiu enormemente para a conquista rubro-negra: venceu o Fluminense por 3 a 1 naquela mesma tarde, deixando os tricolores dois pontos atrás do Flamengo antes da última rodada. O Fla receberia o Bangu na Gávea em 10 de outubro. O Flu jogaria nas Laranjeiras contra o Bonsucesso precisando vencer e torcer por um pouco provável triunfo alvirrubro no estádio do rival.

E o triunfo do Bangu ficaria ainda menos provável quando Perácio abriu o placar com menos de dois minutos de jogo, ampliando ainda aos 23. Pirillo ampliou cobrando pênalti aos 37, fechando o placar do primeiro tempo em 3 a 0. Na volta, Perácio disparou mais um míssil que se aninhou nas redes do arqueiro banguense João Alberto, e outra vez Pirillo completou a contagem na última volta do ponteiro. Em campo, não houve espaço para zebras. Mas sim para outro mamífero quadrúpede. Ídolo do povo, em meio às comemorações, Perácio foi agraciado por um torcedor rubro-negro com um cabrito.

“Foi rápido. Pereira Gomes apitou dando por findo o jogo. Uma multidão invadiu o campo. Os jogadores do Flamengo, exceto Perácio, conseguiram fugir dos abraços. Perácio ficou para receber o cabrito, para ser carregado em triunfo. O cabrito seguro, bem no alto, pelas duas mãos de Perácio, esperneou, botou a boca no mundo. Perácio nessa hora já não estava com os pés no chão, deitara-se nos ombros da torcida, que o arrastava para lá e para cá. A banda de música atacou o hino do Flamengo. Das arquibancadas de cimento desciam espirais de serpentina. O vento ajudava a espalhar confete por todos os cantos. A Gávea perdera a fisionomia de um campo de football, virara salão de festa. Carnaval em pleno mês de outubro”, escreveu Mario Filho no Jornal dos Sports.

Jayme de Carvalho, fundador da Charanga, Perácio e o cabrito.

Com os três gols marcados sobre o Bangu, Perácio chegou a 14 tentos em 13 partidas, sagrando-se o artilheiro da vitoriosa campanha do bicampeonato rubro-negro. No tri, em 1944, Perácio participaria de apenas cinco jogos (entre eles uma goleada de 4 a 1 sobre seu ex-clube, o Botafogo, nas Laranjeiras), marcando três vezes: um no empate em 2 a 2 com o São Cristóvão e dois numa goleada de 6 a 1 sobre o Bonsucesso. Depois da difícil vitória por 1 a 0 sobre o Madureira na Gávea, decidida com gol de Pirillo, o atacante mineiro teria de se juntar novamente à FEB, só que agora embarcando para a Itália.

Lá, não chegaria a figurar na frente de batalha. Cumpriu o período como motorista de um marechal, mas pôde acompanhar de perto a tomada de Monte Castelo, ponto histórico da participação brasileira no conflito, em fevereiro de 1945. E não ficou de todo longe da bola, pelo contrário: sendo um dos quase 20 futebolistas brasileiros convocados pela FEB, foi escalado num time dos Aliados que disputou uma taça entre equipes de soldados, e acabou campeão. Alinhou também numa seleção brasileira que bateu oficiais da força aérea britânica, perto do fim do conflito.

Mesmo assim, a guerra provocou nele muitos traumas psicológicos. Não queria embarcar, inventou problemas de saúde, tentou recorrer até ao ministro da Guerra, marechal Eurico Gaspar Dutra, para que fosse dispensado. Mas não conseguiu. Na Itália, viveu em tensão permanente. “Eu tinha pavor de pensar numa batalha a gente é obrigado a matar para não morrer. E, se fosse o caso, teria que fazer isso, porque numa guerra está em jogo a nação”, declarou anos depois em entrevista à revista Placar.

Retornaria ao time do Flamengo apenas em setembro daquele ano, sem conseguir impedir, no entanto, o título carioca do Vasco, pondo fim ao sonho do tetra rubro-negro. Mas continuou jogando um excelente futebol e anotando muitos gols. Seria o artilheiro da equipe na temporada de 1946, com 32 gols, e chegaria a marcar cinco vezes numa mesma partida em duas ocasiões, ambas válidas pelo Torneio Municipal: nos sonoros 12 a 1 no Bonsucesso, naquele ano, e em um maluco 8 a 5 sobre o Bangu em 1947.

O Flamengo, porém, já andava cada vez mais longe das glórias, com a geração do tri envelhecendo aos poucos, Zizinho fraturando a perna duas vezes, Pirillo indo embora para o Botafogo, o técnico Flávio Costa trocando a Gávea por São Januário. O ano de 1947 foi o último de Perácio no elenco rubro-negro. O clube chegou a trazer Jair Rosa Pinto do Vasco para seu lugar. Jair, craque que fosse (e era um mestre da bola, de fato), nunca conseguiu preencher no coração do torcedor a lacuna que Perácio deixara.

O atacante ainda ensaiaria um retorno, disputando um amistoso pelo Flamengo no Espírito Santo em setembro de 1951, mas logo se aposentaria em definitivo, aos 33 anos, após 122 jogos e 97 gols pelo rubro-negro. Após pendurar as chuteiras, viveu como pacato funcionário público até falecer em março de 1977, aos 59 anos. Herói de duas nações, foi sepultado com a bandeira rubro-negra.

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Há 30 anos, Carlinhos “acertava” o Fla, que vencia o Vasco e reagia na Copa União

20 quarta-feira set 2017

Posted by Emmanuel do Valle in confrontos

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1987, Aílton, Andrade, Bebeto, Campeonato Brasileiro, Carlinhos, Copa União, Edinho, Jorginho, Leandro, Leonardo, Renato Gaúcho, Vasco, Zé Carlos, Zico, Zinho

No automobilismo, há pilotos que se notabilizam pela perfeita percepção dos pontos fortes e fracos de suas máquinas na pista e que utilizam de sua larga experiência para colaborar no desenvolvimento delas, a fim de melhorar o rendimento. São os chamados “acertadores” de carros. No futebol, tal termo poderia ser aplicado de modo bem apropriado a Luiz Carlos Nunes da Silva, o Carlinhos, técnico que iniciava seu primeiro período longevo como técnico do Flamengo há exatos 30 anos.

Sob seu comando, de voz mansa e jeito aparentemente tímido, que fizeram com que em muitas vezes seu conhecimento, capacidade e habilidade como treinador fossem subestimados, o time rubro-negro, que vivia um princípio de crise, venceu o Vasco por 2 a 1 numa grande atuação no Maracanã em 20 de setembro de 1987, em jogo válido pela segunda rodada do primeiro turno da Copa União, o Campeonato Brasileiro daquele ano.

UM TIME EM MAU MOMENTO

O Flamengo chegava à disputa da Copa União – torneio do qual fora um dos criadores – num período turbulento. Dirigido por Antônio Lopes, o time perdera o bicampeonato carioca ao ser derrotado pelo Vasco com um gol do ex-rubro-negro Tita na decisão disputada no início de agosto. Enfrentara o rival quatro vezes naquela competição e não marcara um gol sequer (três empates em 0 a 0 antecederam a derrota na final). Em seguida partira para uma excursão pelo México, voltando com um desempenho repleto de altos e baixos.

O elenco também havia passado por algumas modificações: se por um lado, Lopes não fizera objeções à saída de Adílio (que deixava a Gávea após quase uma vida inteira no Flamengo, transferindo-se para o Coritiba), outro veterano ídolo, Nunes, retornava após dois anos e meio rodando por Náutico, Santos, Atlético-MG e o Boavista português. Na defesa, para o lugar de Mozer, negociado durante o Carioca com o Benfica, o Fla repatriava outro veterano, o ex-tricolor Edinho, vindo da Udinese. O zagueiro, no entanto, acabaria barrado por Lopes logo ao chegar, numa tentativa de indicar que, com ele no comando, ninguém jogaria pelo nome.

Ainda havia outro problema físico, este de caráter mais definitivo: o jovem lateral-esquerdo Adalberto, que havia ficado quase um ano de fora do time por uma séria lesão provocada por uma entrada desleal num jogo pelo Brasileiro de 1986, retornara na reta final do Carioca. Mas num amistoso contra o Bahia na Fonte Nova, a seis dias da estreia na Copa União, voltara a se contundir com gravidade, desta vez sozinho, sem previsão de retorno. Para a partida contra o São Paulo, no domingo, 13 de setembro, o treinador preferiu improvisar, deslocando o zagueiro Aldair para o setor.

ESTREIA DESASTROSA NO BRASILEIRO

Foi uma escalação bastante estranha, a que Lopes levou a campo contra o perigoso São Paulo, que vinha de conquistar o Paulistão semanas antes. Na zaga, em vez dos experientes Leandro e Edinho, estavam os jovens, mas inconstantes, Guto e Zé Carlos II. Na esquerda, o técnico e sóbrio, mas improvisado, Aldair. No meio-campo, o jovem Flávio, recém-contratado após se destacar no Carioca pelo Olaria, ocupava a cabeça-de-área, enquanto Andrade jogava mais à frente, como um armador. E à frente, um quarteto ofensivo formado por Zico, Renato Gaúcho, Nunes e Bebeto sugeria talvez ofensividade demais para uma equipe de resto desbalanceada.

E, em campo, acontece o que a escalação indicava: o Flamengo ataca constantemente, mas é engolido no meio-campo pelo São Paulo, que resolve o jogo em menos de 20 minutos graças a duas jogadas de Müller pela ponta, no setor do improvisado Aldair, e ainda conta com uma generosa cota de milagres de seu goleiro Gilmar (que mais tarde jogará na Gávea) durante toda a partida. Quando Lopes tenta consertar o estrago, colocando os garotos Leonardo na lateral e Zinho no meio-campo (no lugar de Flávio), já é tarde demais para reagir. Apesar do péssimo resultado, no entanto, os dirigentes evitam fazer críticas ao trabalho do técnico, e mesmo os pedidos pela sua saída entre a torcida ainda são um tanto tímidos.

Na manhã seguinte, no entanto, para a surpresa geral, Lopes pede demissão. Alega se sentir sem respaldo dentro do clube, e também sabe que a diretoria está dividida quanto à sua permanência, assim como ele próprio está ciente de que não conta mais com o apoio irrestrito da torcida. Além dele, o preparador físico Carlos Alberto Lancetta também deixa a Gávea. Imediatamente, como sói acontecer, as especulações a respeito de seu substituto começam a pipocar. Os eternos Zagallo e Nelsinho Rosa eram os principais cotados, com Edu Coimbra, irmão de Zico, e Carpegiani correndo por fora, com menos força.

Para piorar, a contratação do meia-armador Osvaldo – ex-Grêmio e Ponte Preta, e que estava no Santos – acaba cancelada na terça-feira, quando era dada como certa, depois de o jogador já ter sido apresentado à torcida e realizado exames médicos. Há controvérsia sobre o motivo da desistência: segundo o presidente Márcio Braga, o clube paulista teria exigido a redução do prazo de pagamento pelo passe do jogador. Mas houve quem afirmasse que a verdadeira razão seria um problema crônico no joelho.

SEMANA DE SURPRESAS

Aquela não seria a única reviravolta da terça na Gávea. Contrariando os rumores, o Flamengo anuncia um nome que sequer havia sido especulado para o cargo de treinador. E ele já está lá mesmo na Gávea. É o ex-volante Carlinhos, ídolo do clube nos anos 60, e que assume o time pela terceira vez, e pela primeira como técnico efetivo, após duas passagens como interino – a última delas naquele mesmo ano de 1987, justamente entre a demissão de Sebastião Lazaroni (agora no Vasco) e a contratação de Antônio Lopes.

“Nas vezes anteriores ainda me sentia inseguro. Mas agora assumo a responsabilidade sem qualquer temor. Acho mesmo que chegou o momento de me firmar como técnico de um time profissional e nada melhor que o Flamengo”, afirma o novo comandante com sua voz mansa, mas discurso decidido, de currículo vitorioso na base rubro-negra e que acaba sendo escolhido depois que Nelsinho é descartado por problemas médicos e Zagallo por não ser unanimidade entre os cartolas.

Durante o treino da quarta-feira, seu primeiro no comando do clube, Carlinhos começa a ensaiar mudanças. Depois de colocar os titulares com a mesma formação que havia perdido para o São Paulo, e ver os reservas saírem na frente com um gol de Kita, interrompe a atividade e mexe as peças: Leandro e Edinho entram na zaga; o garoto Leonardo assume a lateral-esquerda no lugar do improvisado Aldair. E Zinho substitui Nunes para compor o meio-campo, deslocando Bebeto para o comando do ataque. Mais encorpado, o time principal cresce de produção.

Outra mudança ambicionada – a entrada de Aílton no meio-campo no lugar do volante Flávio para que Andrade volte a atuar mais recuado, à frente da zaga – ficaria para a atividade do dia seguinte. Mas na entrevista após seu primeiro treino, o novo treinador já evidencia o jeito simples e objetivo com o qual encara a organização da equipe: “O Aldair tem que atuar de zagueiro. É ali que ele se sente à vontade e tem alegria para jogar. Só vou escalá-lo em sua posição. Posso experimentá-lo com Leandro ou mesmo com Edinho”, disse sobre o defensor, que chegou a ser cogitado por Lopes para atuar no meio-campo.

CLÁSSICO À VISTA

A mudança no ambiente – até então carregado desde a demissão do supervisor Isaías Tinoco, antes mesmo da saída de Antônio Lopes – é nítida com a chegada de Carlinhos, e ele próprio se sente mais confiante e desinibido, a ponto de brincar nas entrevistas. O elenco também sente que a maré poderá virar a seu favor. “Todo clássico é difícil e não se pode garantir a vitória, mas o Flamengo a partir de agora será outro”, afirma Andrade.

Do outro lado, pelas bandas de São Januário, a semana começa ainda ecoando o excelente resultado cruzmaltino da primeira rodada: no domingo, o clube vencera de maneira categórica um bom time do Bahia em plena Fonte Nova por 3 a 0, três gols do jovem artilheiro Romário. Mas o astral começa a mudar ao longo daqueles sete dias que antecedem o clássico. Ao saber que Carlinhos é o novo técnico rubro-negro, Lazaroni franze a testa e pressente o perigo: “Eles vão jogar como nunca. Vamos ter de jogar com muito cuidado porque o Flamengo vai querer resolver seus problemas contra nós”.

Na quarta-feira, três jogadores vascaínos aparecem gripados. E na quinta, Romário é internado por conta de uma misteriosa gastroenterite. Mas numa última cartada para tentar abalar o Flamengo, o vice-presidente de futebol do Vasco, Eurico Miranda, anuncia na véspera do jogo a contratação de Osvaldo, o meia rejeitado na Gávea, embora não possa ir a campo no clássico por não estar regularizado.

No domingo, os dois times entram em campo. O novo Flamengo de Carlinhos alinha pela primeira vez juntos Zé Carlos, Jorginho, Leandro, Edinho, o garoto Leonardo, Andrade, Aílton, Zico, Renato Gaúcho, Bebeto e Zinho. Volta a experiência à zaga, combinada com a vitalidade e a força no apoio dos laterais. Andrade retorna à sua posição preferida, à frente da defesa. Zinho reveza as jogadas de linha de fundo com o auxílio no meio-campo. Uma escalação aparentemente mais equilibrada.

O Vasco também leva um time forte ao jogo: Acácio no gol, Paulo Roberto e Mazinho nas laterais, Fernando e Donato no miolo de zaga, Henrique na cabeça da área, Geovani e Luís Carlos Martins de armadores, Roberto Dinamite retornando do comando do ataque para exercer uma função semelhante à de Zico no Flamengo, lançando para Vivinho e Romário, que jogam abertos, entrando em velocidade pela diagonal. Henrique e Luís Carlos Martins são os substitutos de Dunga e Tita, negociados com o futebol europeu, enquanto Vivinho joga no lugar de Mauricinho na ponta.

E A BOLA ROLA

O jogo começa movimentado, e o Flamengo tem a primeira chance logo nos minutos iniciais quando Jorginho recebe de Andrade, vai à linha de fundo e cruza de pé esquerdo, mas Fernando corta antes de a bola chegar a Acácio. O Vasco aparece pela primeira vez num lance irregular: após cruzamento de Paulo Roberto, Zé Carlos sobe com Romário e soca para fora da área. Roberto disputa a bola com Andrade e empurra escancaradamente o volante rubro-negro. O árbitro manda o jogo seguir, e o camisa 10 cruzmaltino tenta o cruzamento rasteiro, mas Leandro afasta.

Os goleiros trabalham bem logo depois: Renato recebe de Andrade e avança pela esquerda até a linha de fundo, passa por Fernando e cruza alto, mas Acácio aparece antes de Bebeto para segurar. Do outro lado, Geovani recebe de Henrique, limpa a jogada e bate para Zé Carlos espalmar por sobre o travessão. O Vasco volta a assustar em dois escanteios seguidos. Paulo Roberto cobra pela ponta direita com veneno, dois vascaínos raspam de cabeça, mas Leandro aparece para afastar pela linha de fundo. No lance seguinte, pelo outro lado, Geovani levanta, Mazinho desvia e Zé Carlos salva quase sobre a linha.

Ponta-direita de origem, Renato brilha por todos os lados do ataque, fazendo ótimas jogadas também pelo lado esquerdo. Numa delas, Zinho desce por aquele lado e rola para trás. O gaúcho solta a bomba que passa muito perto do gol de Acácio. E logo em seguida, por ali mesmo, sai a jogada do primeiro gol rubro-negro: aos 31 minutos, mesmo combatido por Geovani, que tenta até segurá-lo pelo braço, Renato dribla e avança até a linha de fundo. O cruzamento, alto, encobre Fernando e encontra a testa de Bebeto, que agora sim se antecipa a Acácio e desvia para o fundo das redes. Flamengo 1 a 0. É o fim da invencibilidade de dez jogos do goleirão cruzmaltino.

Geovani, bom de bola e ruim de cabeça, estará no centro das atenções dali a alguns minutos. Faz uma grande jogada partindo do círculo central e descendo pela meia direita, enfileirando rubro-negros, cai, levanta e continua a jogada até que Edinho chega e toma a frente, protegendo a jogada. O meia vascaíno então agarra o zagueiro do Fla, e os dois caem. No chão, o camisa 8 da Colina acerta o primeiro soco da noite no rosto do defensor. O clima esquenta de vez, num festival de empurrões e dedos na cara. Restaurado o futebol, o Vasco ainda assusta em boa jogada de Vivinho, que chuta forte. A bola acerta o travessão e sobe. Fim do primeiro tempo.

O GOL FANTASMA

Logo aos três minutos da etapa final, Vivinho também participará do lance mais polêmico do jogo. O ponta recebe de Luís Carlos pelo lado direito, corre até a linha de fundo e cruza para Roberto Dinamite desviar. A bola bate na trave, no corpo de Zé Carlos e corre por sobre a linha, até que o goleiro rubro-negro a recolha. A torcida do Vasco grita gol, o bandeirinha Rubens de Souza Carvalho corre para o centro do campo, Roberto aponta para ele. E o árbitro Aloísio Felisberto da Silva, que inicialmente havia deixado o lance seguir, cede às pressões e inacreditavelmente dá um gol em que a bola claramente não entrou. Os vascaínos ganham o gol no grito.

A revolta rubro-negra é geral. Furioso com a marcação, Zé Carlos atira a bola ao chão, certo de que ela não havia entrado. Renato e Jorginho vão para cima do bandeira e são contidos por Edinho, que conversa com o auxiliar. Depois de mais de nove minutos de paralisação, o gol fantasma é validado. Vida que segue. Logo no primeiro lance após a bola voltar a rolar, o Fla desperdiça a chance de reação imediata num lance cruel: Jorginho dá a Renato na ponta direita, e o camisa 7 cruza. Acácio sai para abafar, mas a bola sobra nos pés de Bebeto, de costas para o gol. Sem ter como finalizar, o atacante passa a Zico. A bola, porém, pega uma rosca e o Galinho, quase debaixo da trave, apenas resvala, e ela sai pela linha de fundo, raspando. O camisa 10 cai dentro do gol, atônito, não acreditando no que tinha acabado de acontecer.

O jogo esfria. Lance de perigo só mesmo aos 27 minutos, quando o azar vai dar as caras do lado de lá: é a vez de Romário perder um gol inacreditável, na pequena área, finalizando fraco e mascado após cruzamento de Fernando. O Fla tem Renato querendo jogo, infernal pelas duas pontas. Já o Vasco tenta puxar contra-ataques com Luís Carlos pelo meio. E num deles, aos 37, Geovani volta a ficar na berlinda: enquanto Luís Carlos é travado em falta de Zico perto da área rubro-negra, o camisa 8 vascaíno corre em direção a Edinho e lhe acerta, pelas costas, o segundo soco da noite. Delatado pelo mesmo bandeirinha que validara o gol do Vasco, o meia cruzmaltino enfim é expulso.

O Flamengo parte para sua primeira alteração, mas é atrapalhado pela confusão do quarto árbitro: Carlinhos pretendia tirar Zinho para a entrada de Nunes. Mas a placa erguida na lateral do campo é a do número 9 – o de Bebeto, que sai de campo contra a vontade do treinador. Acabariam escrevendo certo por linhas tortas. Logo depois, Edinho deixa definitivamente o campo – com um enorme hematoma no olho direito e o osso malar daquele lado fraturado – substituído por Aldair (no dia seguinte, Bebeto também apareceria no clube de olho inchado após uma cabeçada de Geovani recebida durante o jogo). O Vasco também mexe: o experiente ponta Zé Sérgio entra no lugar de Vivinho, enquanto o volante Josenilton substitui Luís Carlos.

NO FIM, A VITÓRIA

Quando a bola é reposta em jogo, num chutão de Acácio rebatido do outro lado por Leonardo, vem o lance que decide a partida. A bola sobra para Donato na lateral direita do campo de defesa do Vasco. Acossado por Nunes, o zagueiro recua e gira, mas o controle lhe escapa. Zinho chega como um foguete e toma a frente, partindo em direção à linha de fundo. Até ser parado num carrinho duro e imprudente de Paulo Roberto no limite da área. Enquanto os cruzmaltinos ensaiam uma reclamação, os jogadores do Flamengo correm para abraçar o ponteiro, que dá uma sobrevida ao time no último fôlego. É pênalti.

Zico, que tivera atuação discreta até ali, chama a responsabilidade e se apresenta para a cobrança. Acácio aparece para tentar catimbar, mas a conversa entre os dois é mais cordial. “Sou profissional. Farei de tudo para defender este pênalti. Mas, no fundo do coração, torço por você”, confessou o arqueiro. O chute sai forte, seco, bate na trave e entra. Zico abraça Acácio. E a massa rubro-negra comemora a vitória no fim. Não há mais tempo para quase nada. Pouco mais de um minuto depois, o árbitro encerra o jogo, e o Flamengo respira. Carlinhos começa seu trabalho com o pé direito.

Apesar de a vitória que valeu como revanche sobre o arquirrival levantar de novo o ânimo do elenco, o Flamengo ainda oscilará ao longo do primeiro turno, em grande parte pelos desfalques acumulados. No jogo seguinte, contra o Santos no Pacaembu, por exemplo, já não terá Leandro, Edinho (afastado até o fim daquela etapa) e Bebeto, e ainda perderá por uma partida o zagueiro reserva Aldair, expulso no segundo tempo. Zico também ficará vários jogos de fora na virada dos turnos.

Mas bastará Carlinhos escalar de novo aquele onze mágico – Zé Carlos, Jorginho, Leandro, Edinho, Leonardo, Andrade, Aílton, Zico, Renato, Bebeto, Zinho, as peças certas nos lugares certos, como gostava o treinador – na partida contra o Palmeiras no Maracanã, no dia 7 de novembro, para o Fla voltar a brilhar, vencer categoricamente por 2 a 0 e iniciar ali sua arrancada rumo ao título da Copa União. Dali em diante, ninguém segurou mais.

FLAMENGO 2 x 1 VASCO

Maracanã (Rio de Janeiro), domingo, 20 de setembro de 1987
Campeonato Brasileiro (Copa União), primeira fase, primeiro turno
Público: 28.682 – Renda: Cz$ 2.740.710
Árbitro: Aloísio Felisberto da Silva
Cartões amarelos: Leandro, Bebeto, Aílton, Jorginho (FLA); Roberto (VAS)
Expulsão: Geovani (VAS), 37 do 2º tempo.

Gols: Bebeto aos 31 (1-0) do primeiro tempo. Roberto aos 4 (1-1) e Zico, de pênalti, aos 44 (2-1) do segundo tempo.

Flamengo: 1. Zé Carlos; 2. Jorginho, 3. Leandro, 5. Edinho (13. Aldair), 4. Leonardo; 6. Andrade, 8. Aílton, 10. Zico; 7. Renato Gaúcho, 9. Bebeto (15. Nunes), 11. Zinho. Técnico: Carlinhos.

Vasco: 1. Acácio; 2. Paulo Roberto, 3. Fernando, 4. Donato, 6. Mazinho; 5. Henrique, 8. Geovani, 9. Luís Carlos (15. Josenílton); 7. Vivinho (16. Zé Sérgio), 10. Roberto Dinamite, 11. Romário. Técnico: Sebastião Lazaroni.

O épico título carioca de 1927 e o surgimento da mística da camisa rubro-negra

18 segunda-feira set 2017

Posted by Emmanuel do Valle in títulos

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1927, Amado, America, Campeonato Carioca, Flávio Costa, Fragoso, Hélcio, Moderato, Nonô, Rua Paissandu, Vadinho, Vasco

Entre titulares e reservas, uma formação rubro-negra da reta final do campeonato de 1927, desfalcada do craque Moderato. Da esquerda para a direita: Amado, Hélcio, Nonô, Chrystolino, Frederico, Hermínio, Rubens, Fragoso, Agenor, Seabra, Vadinho e Benevenuto.

Pai fundador da crônica esportiva brasileira moderna e grande contador de histórias do Flamengo, Mario Filho gostava de explicar o nascimento do mito da camisa rubro-negra, a que joga sozinha, utilizando-se da trajetória do time rumo ao título carioca de 1927, levantado há exatos 90 anos. Na magistral pena do jornalista, aquela conquista ganhava ares de fábula, de épico. Há de se dizer, porém, que ao contrário do que possa parecer, ou seja, que o feito teria sido supostamente engrandecido pela prosa do cronista, não há na verdade exagero nenhum: a história foi exatamente daquele jeito – um épico, uma fábula.

A equipe que sequer disputaria a competição naquele ano por ver imposta contra si uma suspensão injusta. Que viu seu elenco se dispersar, tomar outros rumos, afastar-se da bola, e depois retornar aos poucos, em busca da forma perdida. Que, quando enfim foi a ela permitido competir, andou desacreditada desde o início, inferiorizada, sofrendo goleada que quase arrasou seu terreno. Que perdeu seus principais nomes em momentos cruciais da campanha, mas nem assim esmoreceu – apenas para vê-los retornar na hora mais crucial de todas. Essa equipe, por fim, foi campeã na raça, no coração, chegando junto, com os jogadores se multiplicando em campo. Um título de lutadores.

No começo, porém, os sinais eram bem diferentes. Nos principais prognósticos acerca do torneio daquele ano, o Vasco despontava como o maior favorito ao título. No ano anterior, quando mandou muitos de seus jogos no campo rubro-negro da Rua Paissandu, a taça lhe escapara por pouco. Agora, com o aporte financeiro da rica burguesia lusitana que integrava sua torcida, construíra e inaugurara um portentoso estádio, o de São Januário, o maior do Brasil. Outro favorito era o America, que também abrira os cofres, mas para montar um time com reforços escolhidos a dedo. “Um verdadeiro ‘scratch’ (seleção)”, comentava a imprensa da época.

Campeão de 1926, o São Cristóvão tinha a missão de provar que seu título inédito não havia sido obra do acaso. Ainda estavam lá os mesmos jogadores e o treinador Luiz Vinhaes, com seus rigorosos métodos de treinamento e preparação física. O Fluminense de Preguinho e Fortes, e o Botafogo de Nilo corriam por fora na briga, mas com talento suficiente para não serem ignorados como candidatos. Mas, e o Flamengo? “O Flamengo não tem time”, diziam.

O CASO PAULISTANO

O estádio rubro-negro da Rua Paissandu em dia de jogo contra o Vasco: no centro da briga que quase tirou o Fla do campeonato.

De fato, o Flamengo esteve perto de não ter mesmo time, no sentido literal. Até poucas semanas antes de a bola rolar, sua participação no certame esteve ameaçada. O motivo remete ainda ao fim do ano anterior e a uma briga nascida no futebol paulista. O Paulistano, uma das forças bandeirantes, havia sido expulso da Associação Paulista de Sports Athleticos por denunciar o chamado “amadorismo marrom”, prática que acobertava o pagamento de prêmios e salários a atletas, o que era rigorosamente proibido no regime amador puro, e que cada vez mais avançava tanto em São Paulo quanto no Rio.

Ocorre que Flamengo e Paulistano mantinham muito boas relações vindas de longa data. Em 1925, quando realizara sua célebre excursão à Europa, que chamou a atenção internacional para o futebol brasileiro, o time de Arthur Friedenreich contou com três ex-jogadores rubro-negros – o goleiro Julio Kuntz, o médio Seabra e o atacante Junqueira. Agora, fins de 1926, o clube paulista se via numa situação complicada: havia acertado amistosos contra equipes argentinas, mas, com a punição, não tinha onde enfrenta-los em sua cidade. E pediu ao Flamengo que lhe cedesse o campo da Rua Paissandu.

A Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (Amea), entidade que regia o futebol carioca, proibiu a cessão e ameaçou punir o Flamengo, referendando a medida de sua equivalente paulista, caso os jogos se realizassem. Mas, em nome da amizade com o Paulistano, o Rubro-Negro manteve sua palavra e não voltou atrás. O caso chegou à Confederação Brasileira de Desportos (CBD), que decidiu, na véspera do Natal de 1926, pela suspensão do Flamengo por um ano.

A decisão foi fortemente criticada na imprensa e tachada de exagerada, de ter motivações pessoais, além de expressar uma profunda incoerência das entidades, agora rigorosas com as leis, mas que haviam burlado, cada qual em seu caso, suas próprias legislações. A Amea havia escalado o goleiro Batalha, não regularizado, para um jogo da seleção carioca contra a mineira. Já a CBD havia convocado jogadores do próprio Paulistano para o Campeonato Sul-Americano mesmo depois de o clube ter sido expulso pela Associação paulista. Cheirava a hipocrisia, moralismo de fachada.

A DEBANDADA

A perspectiva de um ano inteiro sem campeonato para disputar significava o desmantelamento do elenco rubro-negro. Muitos jogadores simplesmente deixaram a bola de lado e, amadores que eram, voltaram a se dedicar a seus empregos como funcionários do comércio, bancários, professores, médicos, advogados ou mesmo estudantes. Numa conversa informal com amigos mencionada pelo jornal O Imparcial, o centroavante Nonô, ídolo e artilheiro dos campeonatos de 1923 e 1925, declarava em fevereiro daquele ano que em hipótese alguma voltaria a jogar futebol.

Houve também quem preferisse seguir a carreira de jogador em outro clube, como o atacante Aché, que após ser convidado para defender o Botafogo em alguns amistosos, decidiu se transferir definitivamente para o Alvinegro em março. Ou o zagueiro Pennaforte, o “menino de ouro”, titular indiscutível da defesa, que saiu por motivo controverso, simbolizando bem as transformações pelas quais o regime amador passava na época. De casamento marcado, o jogador pediu ao clube que o ajudasse comprando a mobília de quarto para sua casa nova. Sem dinheiro, o Flamengo recusou. E o zagueiro acabou aceitando uma transferência para o America, que prometera atender seu pedido.

Houve ainda inúmeros casos de jogadores rubro-negros que, na inatividade, foram sondados por outros clubes. O goleiro Amado, que ano após ano vinha se colocando como um dos melhores – senão o melhor – da posição no futebol carioca, foi especulado no Vasco em janeiro e no America no mês seguinte. E o zagueiro Hélcio, outro destaque da equipe, esteve perto de se juntar a Pennaforte na defesa rubra. Felizmente, nenhum deles engrossou a lista de baixas da Rua Paissandu.

O goleiro Amado Benigno, um dos grandes nomes da posição na história rubro-negra e também do futebol carioca e brasileiro em seu tempo.

No entanto, mesmo com a punição já decretada e aplicada, havia no íntimo de todos os demais dirigentes, jornalistas e torcedores cariocas a convicção de que a suspensão poderia ser revertida. Quando nada porque a ausência do Flamengo era um baque para o campeonato, em vários sentidos. Inclusive no financeiro – mesmo num regime em tese amador. Em nota publicada já no dia 5 de janeiro de 1927, o jornal O Imparcial fazia as contas “a bico de pena” e comentava que, ao deixar de jogar o torneio, o clube perdia cerca de 100 contos de réis. Mais: os demais clubes também tinham prejuízo, calculado em torno de 500 contos de réis, ambos os valores representando verdadeiras fortunas para a época.

Assim, um clima de apreensão tomou conta do meio futebolístico da cidade naqueles primeiros meses de 1927. Por volta de meados de março, como quem não queria nada, o Flamengo chamou seu elenco – ou o que havia sobrado dele – para treinamentos semanais. Aos poucos, os jogadores foram se apresentando: Amado, Benevenuto, Flávio, Fragoso, Moderato. E foram trazendo outros, como o jovem médio Alemão, vindo de Niterói como possível reforço para o segundo quadro (espécie de time reserva ou de juniores). Quando, no fim daquele mês, a movimentação para tentar fazer com que a CBD suspendesse a punição se intensificou, dois ex-jogadores do Bangu chegaram para reposição de elenco: o ponta-direita Chrystolino e o curinga Américo Pastor, que já havia jogado até de goleiro, mas no Fla se fixaria na meia-esquerda.

No dia 31 de março, os demais clubes da primeira divisão da Amea e a Associação dos Cronistas Desportivos remeteram juntos um apelo à entidade para que a pena imposta ao Flamengo fosse cancelada. No dia 5 de abril, o pedido era encaminhado ao conselho deliberativo da entidade. E no dia 22, após reunião muito concorrida, os dirigentes da CBD decidiam por unanimidade pelo cancelamento da punição, aproveitando ainda para elogiar a serenidade e a disciplina com as quais o clube enfrentara todo o desenrolar do processo.

O COMEÇO ACIDENTADO

O time que bateu o São Cristóvão por 2 a 1 na Rua Paissandu pela terceira rodada do campeonato, em foto da revista “O Malho”.

Veio então a disputa do Torneio Início, realizado nas Laranjeiras em 24 de abril, no qual o Flamengo, depois de ter derrotado o Villa Isabel, seria eliminado em seu segundo jogo, perdendo no número de escanteios para o São Cristóvão após empate sem gols no tempo normal. E em 1º de maio começaria enfim o campeonato. Na análise prévia do torneio, o jornal O Imparcial destacava os pontos fortes e fracos de todos quase os concorrentes, colocava o Vasco como o postulante mais forte ao título e fazia ressalvas em relação ao Flamengo: “O rubro-negro carece de linha média e os próprios forwards [atacantes], com excepção de dois elementos, não inspiram grande confiança”.

Villa Isabel e Andarahy, os dois primeiros adversários, não representavam grandes desafios, mas a falta de coesão da remendada equipe rubro-negra fez as coisas se complicarem um pouco. Na primeira partida, o time abriu 2 a 0 diante do Villa Isabel, sofreu o empate e só a partir da metade do segundo tempo engrenou até conquistar uma tranquila vitória por 5 a 2 (enquanto isso, o Vasco demonstrava sua força surrando o pobre Sport Club Brasil por 11 a 0). Na segunda rodada, contra o Andarahy no estádio do adversário, o Fla contou com uma tarde inspirada do centroavante Fragoso, autor dos três gols na vitória por 3 a 2 – mas no intervalo, o placar marcava empate em 1 a 1.

Contra o São Cristóvão, equipe mais qualificada e detentora do título, o Flamengo sofreu mais. Mesmo jogando em casa, foi pressionado pelos cadetes em quase todo o primeiro tempo. Hélcio, enfim estreando no campeonato após longa inatividade, comandava a defesa. Na volta do intervalo, logo aos três minutos, Chrystolino bateu forte, Balthazar defendeu e, após confusão na área, Fragoso apanhou o rebote e chutou para abrir o placar. Mais tarde, em bola alçada para a área rubro-negra, Arthur empatou de cabeça. Mas logo no minuto seguinte, quando o time alvo pressionava pela virada, a defesa do Fla espanou uma bola que parou no meio-campo. Agenor recolheu e partiu em contra-ataque fulminante até a área, batendo cruzado para vencer o arqueiro adversário e garantir a terceira vitória.

Para uma equipe de tão poucos destaques individuais como aquela do Flamengo, perder um deles para um jogo importante como um clássico era um grande baque. Perder um goleiro como Amado, pela posição e pelo jogador que era – considerado o melhor arqueiro do futebol carioca – só aumentava a preocupação. Havia ainda outro agravante no caso do Botafogo, adversário da quarta rodada na Rua Paissandu: os alvinegros estavam com o Flamengo atravessado na garganta desde agosto do ano anterior, quando os rubro-negros haviam aplicado uma humilhante goleada de 8 a 1, a maior já registrada no clássico até então.

Foi uma tarde particularmente desastrosa para o garoto Egberto, goleiro do segundo quadro do Flamengo que substituía Amado. O Botafogo abriu a contagem com Ariza, aos oito minutos, e disparou a marcar. Quando Moderato descontou para o Fla pela primeira vez, aos 28, o Botafogo já vencia por 6 a 0. Ao fim, venceriam por 9 a 2, igualando a diferença de gols da goleada rubro-negra do ano anterior. O placar foi recebido com assombro. E ao Flamengo, restou juntar os cacos mais uma vez.

Uma semana depois, haveria a longa e cansativa viagem de trem para enfrentar o Bangu, adversário sempre difícil na Rua Ferrer. O ex-banguense Chrystolino aproveitou centro de Moderato e abriu o placar para os rubro-negros logo aos três minutos, mas Ladislau da Guia empatou de pênalti aos 11 e virou aos 15, levando os donos da casa em vantagem para o intervalo. Na etapa final, o Flamengo foi outro: Chagas tornou a empatar, Fragoso marcou duas vezes e Chrystolino voltou a balançar redes para fechar a contagem em 5 a 2. Foi a injeção de ânimo que o time precisava para as duas próximas batalhas contra o Fluminense nas Laranjeiras e o Vasco na Rua Paissandu.

Amado prepara-se para defesa na partida contra o São Cristóvão.

O Fluminense era o líder isolado do certame ao receber o Flamengo naquele 12 de junho nas Laranjeiras. Acabara de vencer a quinta partida em cinco rodadas ao bater o mesmo Botafogo que havia goleado os rubro-negros. E tinha no gol o arqueiro Batalha, que no ano passado havia deixado o Flamengo brigado em plena disputa do campeonato para atravessar a Rua Guanabara (atual Pinheiro Machado) e se juntar aos tricolores ao final do torneio. Já pelo lado do Fla, mais um jogador retornava à equipe: o médio Seabra, jogador experiente, de Seleção Brasileira, ainda que um pouco fora de forma devido à inatividade.

Mas seria outro jogador experiente, de Seleção, o grande artífice do triunfo rubro-negro: o ponta-esquerda gaúcho Moderato, estudante de Engenharia, craque e “garçom” daquele time. Num contragolpe, aos 27 minutos do primeiro tempo, ele passa pelo médio tricolor Nascimento, arranca, espera Chagas, o centroavante, entrar na área e cruza com perfeição geométrica para o atacante marcar o único gol do jogo. O outro destaque foi a defesa: Amado, elegante, valente e preciso nas intervenções. Hélcio, uma barreira intransponível na zaga. Hermínio, perfeito no jogo aéreo, afirmando-se a cada partida.

CONTRA O VASCO, UMA ATUAÇÃO HISTÓRICA

A vitória colocou o Flamengo de novo na briga: Fla, Flu, Vasco e Botafogo estavam agora empatados na liderança do torneio, e a partida contra os cruzmaltinos dali a uma semana na Rua Paissandu ganharia ainda mais importância. Mas, para variar, haveria um desfalque. Chagas, o autor do gol da vitória contra os tricolores, lesionara-se e estaria de fora do outro clássico. Restava ao Flamengo apostar suas fichas em seu substituto, um meia-direita do segundo quadro chamado Vadinho.

O jogo contra o Vasco foi uma das atuações históricas do Flamengo nos tempos do amadorismo. Mesmo sendo a partida disputada no estádio rubro-negro da Rua Paissandu, os cruzmaltinos eram apontados como francos favoritos: “Analyzando-se jogador por jogador, conjunto por conjunto, o quadro do Vasco da Gama, com excepção de dois elementos (Amado e Moderato, que aliás foram a differença do team), era todo superior à equipe rubro-negra”, escreveu O Paiz. Mas teriam pela frente uma “estupenda, magistral e assombrosa actuação” do arqueiro do Flamengo.

Desde o início o Vasco pressionou a retaguarda rubro-negra, mas saiu atrás no marcador aos 22 minutos, quando Moderato desceu pela ponta esquerda, passou pelo médio Nesi e cruzou. A defesa rebateu, mas Vadinho, o substituto de Chagas, testou para abrir a contagem. E tome pressão vascaína, afastada por Amado, Hermínio, Hélcio e quem mais aparecesse. Mas aos 37, a bola outra vez cai aos pés de Moderato, que repete a jogada do primeiro gol: passa por Nesi, vai à linha de fundo e centra. Vadinho, outra vez, aparece para cabecear longe do alcance do goleiro Nelson, ampliando a contagem em favor do Fla.

Mesmo em desvantagem, o Vasco procurava não se desesperar, tentando encontrar a melhor maneira de furar a barreira rubro-negra. Mas deixava sua defesa exposta. Aos seis minutos, foi salvo pela arbitragem, que anulou inexplicavelmente o que seria o terceiro gol do Flamengo quando, mais uma vez, Moderato foi à linha de fundo e cruzou para Fragoso, que vinha de trás, tocar para as redes. O juiz Homero Mesquita, do Andarahy, invalidou o lance sem motivo aparente.

O meia-direita Vadinho, grande carrasco dos cruzmaltinos.

E seria em novo contra-ataque, após intenso bombardeio da linha cruzmaltina, que o Flamengo mataria de vez a partida. Moderato, do meio-campo, encontra Vadinho com um lançamento primoroso. O atacante avança e bate na saída de Nelson, que ainda toca na bola, mas não consegue evitar o gol. O terceiro do substituto. O terceiro na vitória de um Flamengo brioso e letal, que deixava o rival para trás e se firmava na ponta da tabela, ao lado do Botafogo.

A partida com o Vasco foi de tamanha simbologia que foi a ela que Mário Filho se referiu para contar a saga do título de 1927 em seu livro Histórias do Flamengo. “Tinha havido um jogo com o Vasco, o Vasco sem sair da porta do gol do Flamengo, o Amado pegando tudo. O Flamengo deu quatro ataques, três a zero porque o gol mais bonito foi anulado. O Vasco não se conformou: time era o do Vasco, o Flamengo não tinha time. E o Flamengo, então, concordou que não tinha time, embora tivesse Amado no gol, Hélcio de beque e Fragoso e Vadinho lá na frente para fazer os gols. O Flamengo, era o que dizia grave e enfaticamente o pessoal do [Café] Rio Branco [tradicional reduto rubro-negro no centro da cidade], não precisava de time para conquistar o campeonato. Bastava-lhe a camisa. Onze paus de vassoura com camisa do Flamengo seriam irresistíveis”, escreveu o cronista.

“Vale lembrar que o Vasco tinha uma equipe poderosa, muito melhor do que a nossa”, confirmou o ponteiro rubro-negro Moderato, muitos anos mais tarde, em entrevista de 1982 ao jornal O Globo. “Naquele dia, o Vasco nos bombardeava. E Amado Benigno defendia tudo. Nosso time conseguia se superar. Hermínio, Hélcio, Benevenuto e Flávio Costa caíam em campo de tanto esforço. Eu mesmo, naquele dia, estava com a saúde comprometida. Mas era preciso ganhar”.

Moderato jogara toda a partida sentindo fortes dores na barriga. Ao fim do jogo, foi levado a um pronto socorro, onde seria operado em caráter de emergência de uma apendicite supurada, que poderia tê-lo levado à morte. A notícia correu a cidade, e o feito virou mais um exemplo da valentia daqueles jogadores. O ponta, no entanto, ficaria fora de ação por três meses. Era mais um sério obstáculo a ser enfrentado pelo time rubro-negro.

O ELENCO: UM COBERTOR CADA VEZ MAIS CURTO

Em princípio, o Flamengo superou bem a ausência de seu principal atacante diante do fraco adversário da rodada seguinte, o Sport Club Brasil. Nem mesmo quando o clube da Praia Vermelha empatou o jogo na metade do primeiro tempo imaginava-se que os rubro-negros deixariam de vencer. E o triunfo veio com goleada de 6 a 1, quatro gols de Fragoso e outros dois de Chagas, de volta à equipe. O resultado, aliado ao empate entre Vasco e Botafogo, levou o Flamengo pela primeira vez à liderança isolada do campeonato, algo absolutamente impensável ao início da temporada.

Na partida seguinte, no entanto, faltou ímpeto ao ataque rubro-negro diante do America em Campos Salles quando, depois de sair perdendo por 1 a 0 na etapa inicial e conseguir empatar no começo do segundo tempo, não aproveitou o momento favorável, sofrendo ainda mais dois gols rubros, perdendo por 3 a 1. Menos mal que a derrota do Botafogo para o São Cristóvão e o empate entre Fluminense e Vasco ajudaram a manter o Flamengo na liderança ao fim do primeiro turno.

Na abertura do returno, no dia 10 de julho, o Fla voltaria a ter dificuldades na visita ao Villa Isabel: embora dominado, saiu na frente do placar por duas vezes, mas cedeu o empate. Somente nos três minutos finais é que marcaria mais dois gols, vencendo por 4 a 2. Mas a atuação incisiva, mesmo com os desfalques, na vitória por 3 a 1 diante do Andarahy na Rua Paissandu uma semana depois representou um alento quanto à forma da equipe: “O vanguardeiro não está disposto a ceder a ponta”, escreveu O Imparcial.

Após uma suada vitória por 1 a 0 diante do modesto Sport Club Brasil, na Praia Vermelha, no entanto, a liderança rubro-negra seria ameaçada na visita ao São Cristóvão em Figueira de Melo. Além de enfrentar a pressão do time da casa num estádio de atmosfera comumente hostil e o vento forte que soprava contra seu campo de defesa em todo o primeiro tempo, o Flamengo ainda seria prejudicado com a anulação de um gol legal de Fragoso, após cruzamento da direita de Chrystolino. O árbitro Lippe Peixoto marcou toque de mão inexistente do ponteiro, antes de ele cruzar para a cabeçada do centroavante.

Aos 30 minutos, Teófilo abriu o placar para o São Cristóvão. Prejudicado também pela má forma física de alguns veteranos que retornavam após longa inatividade, como os médios Seabra e Japonês (este, improvisado na ponta-esquerda), o Flamengo sairia para o intervalo em desvantagem. Na volta, porém, empataria com Chrystolino, que recebeu de Vadinho e fuzilou o goleiro Baltazar. O empate manteve os rubro-negros na liderança graças ao tropeço do Fluminense, que também ficou no 1 a 1 contra o Bangu nas Laranjeiras. Mas o gol mal anulado de Fragoso na primeira etapa impediu que a vantagem do Flamengo na ponta aumentasse.

Intervenção decisiva de Amado no empate em 1 a 1 contra o São Cristóvão no alçapão de Figueira de Melo. Foto da revista “O Malho”.

Ainda que alguns veteranos retornassem aos poucos, o elenco rubro-negro era exigido ao máximo e sofria seguidas baixas. Na zaga, Roseira já vinha ocupando o lugar ora de Hermínio, ora de Hélcio nos últimos jogos. Contra o Botafogo em General Severiano, na rodada seguinte, ele é que teria de deixar o campo, substituído por um improvisado Ludovico, médio de origem. Além dele, Flávio Costa precisou entrar no segundo tempo no lugar do lesionado Rubens, que vinha fazendo boa partida na linha média.

O Flamengo abriu o marcador com Newton logo no início, sofreu a virada alvinegra para 3 a 1, mas foi buscar a igualdade na metade do segundo tempo, com dois gols de Vadinho. Porém, as falhas defensivas originadas das improvisações acabariam custando o ponto: três minutos depois do empate, Ariza aproveitou bobeada de Ludovico, Amado defendeu o chute, mas Nilo aproveitou o rebote para marcar o quarto. E já nos minutos finais, em contra-ataque, o mesmo Nilo marcaria o quinto, fechando o placar. Com a vitória do Fluminense por 4 a 3 diante do Brasil na Urca, o Fla acabaria ultrapassado pelos tricolores na ponta da tabela.

NA RETA FINAL, DOIS RETORNOS DECISIVOS

No dia 14 de agosto, o Flamengo bate o Bangu por 2 a 0 na Rua Paissandu, com gols de Fragoso e Newton ainda no primeiro tempo e retorna à ponta, junto com o Fluminense, após o empate deste com o Botafogo por 1 a 1 em General Severiano. E assim, igualados, eles chegariam ao confronto direto, o Fla-Flu do returno, em 21 de agosto no campo rubro-negro.

E do embate igualados também sairiam: empate em 1 a 1, com o Fla abrindo o placar com Agenor e o Flu empatando um minuto depois com Lagarto. A novidade é que teriam agora também a companhia do Vasco na ponta, após a vitória cruzmaltina sobre o Bangu por 4 a 0. Um ponto atrás vinha o America, também entrando de vez na briga, a duas rodadas do fim.

É quando entra em cena um reforço inesperado e decisivo para o Rubro-Negro, anunciado na edição de 2 de setembro do jornal O Imparcial: o centroavante Nonô, velho artilheiro e ídolo rubro-negro que no início do ano havia decidido parar com o futebol, estava de novo treinando com seus companheiros e seria escalado para a partida contra o Vasco. Não estava de todo fora de forma porque havia cumprido sua promessa apenas pela metade: continuava batendo sua bolinha no torneio da liga bancária e comercial, disputado por funcionários desses setores.

O jogo contra os cruzmaltinos também seria histórico por outro motivo: era o primeiro confronto oficial de competição entre os dois rivais a ser disputado no novíssimo estádio de São Januário. Belo pretexto para uma grande exibição dos rubro-negros. E ela veio, materializada na vitória por 2 a 1, em que o time esbanjou garra, superou suas limitações e controlou inteiramente o adversário, como conta O Imparcial: “No team vencedor houve bravura individual de todos os jogadores, sem excepção, de modo que a actuação de conjuncto resultou enthusiasta, impectuosa, digna da velha, tradicional coragem flamenga”.

Nonô, se não teve atuação tecnicamente brilhante, foi um líder empurrando o ataque rubro-negro. Acabou premiado com o primeiro gol da partida, numa bomba de longe, rasteira, vencendo o goleiro Amaral. O Vasco até ameaçou reagir, quando Bolão recebeu de Russinho e bateu para empatar. Mas ainda antes do intervalo o Flamengo estaria novamente na frente: Vadinho, que havia marcado os três gols do confronto do primeiro turno, percebeu uma brecha na defesa cruzmaltina e chutou forte, voltando a estufar as redes do rival no jogo.

Na etapa final, com o médio Benevenuto excepcional na destruição dos ataques cruzmaltinos, o Vasco não conseguia entrar na defesa rubro-negra (o goleiro Amado foi pouco acionado durante a partida). Os donos da casa tiveram então de recorrer às bolas alçadas para a área pelo médio Nesi, para que, na confusão, alguém empurrasse para o gol. Mas o Flamengo não teve grande dificuldade em conter a pressão estéril do time adversário e conquistar uma vitória maiúscula no imponente estádio do clube da comunidade lusitana e que – melhor ainda – afastava de vez o rival da briga pelo título carioca.

Na última rodada, disputada em 18 de setembro, três times ainda sonhavam com a conquista do campeonato: Flamengo e America, que se enfrentariam na Rua Paissandu, mais o Fluminense, que corria por fora e enfrentava o Vasco ali do lado, nas Laranjeiras, mas de olhos e ouvidos no que acontecia no vizinho estádio rubro-negro.

O Fla só dependia de si para levantar a taça. O America seria campeão direto se vencesse os rubro-negros e o Flu não conseguisse derrotar o Vasco. Já os tricolores não tinham chance de conquista imediata: precisando, antes de tudo, bater os cruzmaltinos, teriam ainda que torcer para o Flamengo não vencer. Dessa forma, em caso de empate na Rua Paissandu, Fla e Flu terminariam igualados na ponta. Já em caso de triunfo americano, os tricolores se igualariam a estes. Nos dois casos, seria disputada uma partida extra.

Logo no início do jogo, o Fla poderia ter saído em vantagem quando Nonô disputou uma bola com Pennaforte e chutou vencendo Joel num gol legal, aparentemente, mas que acabou anulado pelo árbitro Otto Bandusch, do Andarahy. Não teve importância. Poucos minutos depois, o gigantesco Nonô saltaria mais que a defesa rubra para completar de cabeça um centro da esquerda, abrindo o placar como fizera em São Januário duas semanas antes.

O autor do cruzamento seria mais um jogador que retornava ao time naquela reta final de campeonato. Era Moderato, ainda convalescendo da cirurgia de apendicite, com uma cinta sob o uniforme para segurar os pontos da cicatrização, em mais uma marca da raça daquela equipe. Sua atuação seria ainda coroada pela participação no segundo gol rubro-negro, marcado na etapa final: de seu pé esquerdo partiria um tiro cruzado, mistura de chute e centro, venenoso. Caprichosamente, a bola bateria em Pennaforte – o zagueiro que no início do ano trocara o Flamengo pelo America de maneira controversa – indo morrer lentamente nas redes de Joel. A torcida rubro-negra, que não perdoara a deserção do “menino de ouro”, sentiu-se vingada. Seria o gol do título.

No fim, ainda houve drama: Nonô se lesionou e teve que deixar a partida, substituído por Frederico. Era o esforço cobrando seu preço. O America se aproveitou e rapidamente descontou com Celso, passando a pressionar em busca do empate. Mas a defesa rubro-negra, o grande destaque da equipe naquele campeonato, voltaria a se destacar. Amado era intransponível. Hélcio e Hermínio, majestosos pelo alto ou por baixo. Benevenuto, um verdadeiro cão de guarda na linha média. Era o momento em que a raça transbordava ainda mais.

Ao apito final, os vencedores não se contiveram. De desacreditados, eram agora campeões. O Flamengo dera uma lição ao futebol carioca com sua “bravura moral, tenacidade, alegria de querer e de lutar” que eram “patrimônio e tradição” do clube, como citou O Imparcial. Com tudo contra, bastou erguer a camisa rubro-negra como uma bandeira de batalha. Puída, esfarrapada que fosse, foi ela quem prevaleceu no fim da história fabulosa e épica.

Há 50 anos, um europeu de ouro vestia rubro-negro: Flórián Albert

15 domingo jan 2017

Posted by Emmanuel do Valle in ídolos, confrontos

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1967, Carlinhos, Florian Albert, Gávea, Hungria, Paulo Henrique, Taça Rivadávia Correia Meyer, Vasco

Cercado por vascaínos, Albert pula para cabecear em seu primeiro jogo pelo Flamengo, na Gávea

A notícia correu pelas redações dos jornais chegando logo aos olhos e ouvidos dos torcedores naquele início de setembro de 1966: Flórián Albert, atacante da seleção da Hungria que menos de dois meses antes se destacara na Copa do Mundo da Inglaterra, viria jogar no Flamengo emprestado por seu clube, o Ferencváros, e pela federação húngara.

A expectativa de ver vestindo rubro-negro o jogador que destroçara a Seleção Brasileira de Vicente Feola nos gramados ingleses logo tomou conta da cidade. E seria enfim concretizada na tarde de 15 de janeiro do ano seguinte – há exatos 50 anos – em um amistoso contra o Vasco na Gávea.

Albert, que no fim daquele ano receberia o prêmio Bola de Ouro, da revista francesa France Football, como o melhor jogador da Europa (o mesmo concedido ao português Cristiano Ronaldo no fim do ano passado), seria o primeiro detentor do troféu a atuar, ainda que somente em partidas amistosas, por um clube brasileiro. Uma experiência da qual o húngaro nunca se esqueceu e que o Flamengo Alternativo conta agora.

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Flórián Albert e sua “Ballon D’Or”.

OS GRINGOS DE GORANSSON

A vinda de Albert vinha sendo negociada há alguns meses pelo diretor de futebol rubro-negro, o sueco Gunnar Goransson – um representante no Brasil da Facit (empresa de seu país que fabricava máquinas de escrever e outros utensílios de escritório) que se apaixonara pelo Flamengo e passara a integrar a diretoria do clube. Não era, no entanto, o primeiro astro europeu trazido por Goransson para visitar o clube e treinar nele: no ano anterior, o lendário goleiro soviético Lev Yashin – outro ganhador da Bola de Ouro, em 1963 – passara alguns dias na Gávea, treinando e trocando experiências.

No mesmo ano em que Yashin ganhou o prêmio da France Football, aportou na Gávea outro jogador trazido por Goransson, o veloz e driblador ponta-direita Roger Magnusson, seu compatriota, de apenas 18 anos, para um estágio no clube. Mais tarde, depois de passar também pelo Colônia alemão e pela Juventus italiana, o jovem faria história no Olympique de Marselha, onde ganharia o apelido de “Garrincha sueco”. E naquele mesmo segundo semestre de 1966 em que negociava a vinda de Albert, o dirigente traria também outros dois compatriotas seus: o defensor Kurt Axelsson (que mais tarde disputaria a Copa do Mundo de 1970) e o ponta-esquerda Roland “Rimbo” Lundblad.

Inicialmente, chegou-se a cogitar a liberação de Albert ao Flamengo por sete meses, a partir de meados de outubro de 1966. Mas, mais tarde, a federação húngara – que chegara a voltar atrás e vetar a viagem – decidiu limitá-la a apenas um mês, após a virada do ano. O jogador estaria liberado para treinar com o elenco rubro-negro e atuar em amistosos pelo clube, e o empréstimo seria gratuito já que, pelo regime socialista, Albert era futebolista amador.

Ao Flamengo, caberia apenas arcar com as despesas de hospedagem do jogador e de sua esposa, a atriz Irén Bársony. Em troca da permissão, Albert escreveria para a imprensa húngara suas impressões sobre o futebol e os métodos de treinamento brasileiros assim que retornasse – o que o atacante tiraria de letra: sua profissão de carteira era o jornalismo. Colaborava, inclusive, com a agência de notícias húngara MTI.

ALBERT: ESTRELA MAIOR DE UMA NOVA GERAÇÃO HÚNGARA

albert-selecaoPelo Ferencváros, Flórián Albert já tinha conquistado duas vezes a liga húngara e se consagrado o artilheiro do campeonato nacional por três vezes. Também seria fundamental para levantar o título da Copa das Feiras – competição antecessora da Copa da Uefa e da atual Liga Europa – em 1965, deixando pelo caminho potências como Roma, Athletic Bilbao e Manchester United, antes de derrotar a Juventus na decisão por 1 a 0, mesmo jogando apenas uma partida, e no estádio do adversário, em Turim. No ano seguinte, seria o artilheiro da Copa dos Campeões ao lado do português Eusébio com sete gols marcados, além de eleito o melhor jogador húngaro da temporada.

Já pela seleção da Hungria, Albert despontou no time medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Roma em 1960. Marcou cinco gols naquele torneio, incluindo dois na goleada de 7 a 0 sobre a França. Brilhou também em sua primeira Copa do Mundo, no Chile em 1962, quando marcou quatro gols e terminou entre os artilheiros da competição, além de ser eleito a revelação do Mundial com apenas 21 anos de idade.

Depois de disputar a Eurocopa de 1964 e ser incluído na seleção do torneio, voltaria a se destacar numa Copa do Mundo dois anos depois, na Inglaterra. Comandou em campo a vitória da Hungria sobre o Brasil por 3 a 1, na primeira derrota brasileira em um Mundial após o bicampeonato 1958/1962. Aparecendo às vezes na armação do meio-campo, às vezes na área para finalizar, seria um tormento constante para a atarantada defesa da Seleção, juntamente com seus companheiros como o velocíssimo ponta János Farkas e o goleador Ferenc Bene. Naturalmente, ganhou o respeito da imprensa e da torcida brasileiras.

E esse respeito era recíproco, de acordo com as declarações de Albert à imprensa de seu país antes de embarcar para o Brasil: “Se os brasileiros estão interessados em mim, estou ainda mais interessado em estudar seu futebol”, afirmou. Nascido em um país sem saída para o mar, Albert manifestou ainda outro interesse em relação à escola brasileira do esporte: “Também quero ver os meninos jogando futebol nas praias do Rio, centro do talento futebolístico do Brasil”.

A CHEGADA DE UM FÃ DO RUBRO-NEGRO

Albert desembarcou em voo da Air France no Galeão por volta das 22h do dia 7 de janeiro, acompanhado da esposa. No dia 9 foi apresentado ao clube, aos dirigentes e à dupla sueca Kurt Axelsson e “Rimbo” Lundblad. Após bater bola com os dois no gramado da Gávea por cerca de 15 minutos, atendeu à imprensa e revelou ser um sonho defender o Flamengo, o qual conhecera e do qual se tornara um grande admirador em 1954, quando o esquadrão de Evaristo, Joel, Jadir, Pavão e Zagallo, comandado por Fleitas Solich, esteve em Budapeste e goleou por 5 a 0 o Kinizsi, nome do Ferencváros naquele período, com o garoto Florian assistindo a tudo nas arquibancadas.

albert-no-flamengo-diario-do-paranaTambém posou com a camisa 9 do clube para os fotógrafos, e comentou a última Copa do Mundo, lamentando que o futebol técnico de brasileiros e húngaros tivesse sido sobrepujado pelo jogo de mais força física de ingleses e alemães, mas prevendo melhor sorte para o Brasil no Mundial do México, dali a três anos. Também lamentou não estar em sua melhor forma física, já que não atuava há quase três meses, desde o fim da temporada em seu país, e reclamou um pouco do forte calor do alto verão carioca. Curiosamente, porém, recusou um guaraná que lhe foi servido, surpreendendo ao dizer que preferia uma boa cerveja para se refrescar.

No dia seguinte, data da reapresentação do elenco no retorno das férias, teve contato com os demais jogadores – entre eles o lateral-esquerdo Paulo Henrique, adversário na Copa – e participou de atividades físicas. Durante o período em que esteve na Gávea, Albert se empenhou tanto em todas as sessões de treinamento das quais tomou parte que mal teve disposição para atender aos compromissos sociais aos quais fora convidado.

Albert e o lateral rubro-negro Paulo Henrique.

Albert e o lateral rubro-negro Paulo Henrique.

Na sexta-feira, após exercício puxado, compareceu só a uma homenagem que receberia na Confederação Brasileira de Desportos (CBD), por meio de seu presidente João Havelange. Cansado, acabou “dando bolo” na Estação Primeira de Mangueira, que também preparara uma recepção ao húngaro em sua quadra. Albert acabou representado por sua esposa, que, também ex-bailarina, arriscou um tanto desajeitadamente alguns passos de samba.

Treinando duro para enfrentar o Vasco.

Treinando duro para enfrentar o Vasco.

EM CAMPO

Para mostrar Albert aos torcedores cariocas, o Flamengo acertou com o Vasco a realização de dois amistosos: o primeiro na Gávea no dia 15 e o segundo que acabou sendo realizado no estádio botafoguense de General Severiano no dia 19. Apesar de ser colocada em disputa uma taça – batizada Rivadávia Correia Meyer em homenagem a um dirigente do Botafogo, em retribuição à cessão do estádio do clube para a segunda partida –, o ambiente antes, durante e depois dos jogos fez jus inteiramente ao termo “amistoso”, transcorrendo em total clima de cordialidade entre os clubes, o que talvez pareça hoje difícil de acreditar.

No domingo, 15 de janeiro, às 16h30, as duas equipes entraram em campo sob a arbitragem de Arnaldo César Coelho. O time do Fla, dirigido pelo argentino Armando Renganeschi, ainda mantinha boa parte do setor defensivo das últimas duas temporadas: Murilo, Ditão, Jaime e Paulo Henrique continuavam formando o quarteto da retaguarda, com o capitão Carlinhos de primeiro volante. No gol, Marco Aurélio ganhava uma chance no lugar do antigo titular Valdomiro.

O Fla da estreia. Em pé: Murilo, Jaime, Ditão, Marco Aurélio, Carlinhos e Paulo Henrique. Agachados: Denis, Pedrinho, Albert, César e Osvaldo.

Do meio para a frente, as alterações eram muitas. O paranaense Pedrinho entrava como meia-armador, substituindo Nelsinho, sem condições físicas. Na frente, o ex-juvenil Denis (que voltava de empréstimo ao Danubio uruguaio) começava na ponta-direita, o campineiro Osvaldo Ponte Aérea entrava na esquerda e, pelo meio, substituindo a dupla Almir-Silva, que marcou época entre os torcedores do Fla (o Pernambuquinho cumpria suspensão após o tumulto da decisão do Campeonato Carioca do ano anterior contra o Bangu, enquanto o Batuta tinha sido negociado com o Barcelona), apareciam Albert e um jovem que surgia como promessa da base rubro-negra chamado César (o futuro Maluco do Palmeiras, irmão de Caio Cambalhota e Luisinho Lemos).

O Vasco, por sua vez, tinha como atração maior um antigo ídolo rubro-negro, Zizinho, que estreava como técnico da equipe. Reunia também alguns bons jogadores, como Oldair, Bianchini, Ananias, Nado, Adílson (irmão de Almir) e o uruguaio Danilo Meneses. Havia ainda a previsão de mais novidades, já que os dois clubes acordaram um número ilimitado de substituições.

albert-peixinho

Albert acerta a trave em “peixinho” espetacular.

Apesar do forte calor, Albert logo disse ao que viera, criando a jogada do gol de abertura do placar aos 31 minutos de jogo, após tabelar com Osvaldo e iludir a defesa vascaína, antes de servir com um passe espetacular o paranaense Pedrinho, que não desperdiçou. Na etapa final, César fez grande jogada driblando três marcadores e sofrendo pênalti, convertido por Osvaldo aos 12 minutos. A torcida presente em bom número à Gávea aplaudiu o bom futebol mostrado pela equipe, e em especial pelo craque húngaro, que chegara a acertar uma bola na trave em cabeçada.

No dia seguinte à primeira partida, Albert foi homenageado mais uma vez, em coquetel na embaixada da Hungria, ao qual compareceu juntamente com Gunnar Goransson, representando o Flamengo. Na véspera do segundo jogo, o atacante fez um treino leve junto com todo o elenco, após o qual expressou sua profunda gratidão ao Flamengo pela acolhida e pela experiência. Havia dúvidas sobre se participaria da partida inteira, já que esta seria realizada à noite, e ele já tinha voo marcado naquela madrugada seguinte. Nesse caso, um jovem atacante chamado Fio, recém-promovido dos juvenis, já estava de prontidão para substituí-lo.

No treino, com o zagueiro Luís Carlos Freitas logo à frente.

No treino, com o zagueiro Luís Carlos Freitas logo à frente.

Na quinta, 19 de janeiro, Flamengo e Vasco voltaram a campo, agora em General Severiano, em jogo iniciado às 21h. No time do Fla, a única alteração era a entrada do gaúcho Luís Carlos Freitas no lugar de Ditão na zaga. Em uma partida com nível técnico e inspiração inferiores aos do primeiro encontro, o Vasco abriu o placar aos 27 minutos: Bianchini lançou Adílson na área, e o atacante foi derrubado por Murilo. Pênalti que Oldair converteu. Na etapa final, o momento de maior emoção veio aos 30 minutos, quando Albert deixou o campo ovacionado pelo público presente, sendo substituído por Fio.

De lá, partiu direto para o Galeão, onde a esposa o esperava. Apenas no aeroporto soube que o Vasco havia marcado o segundo gol, aos 42 minutos, por meio do ponta-esquerda Morais em posição muito contestada pela defesa do Flamengo. Com a igualdade nos placares (uma vitória de 2 a 0 para cada lado), a taça foi – de comum acordo entre rubro-negros e cruzmaltinos – oferecida ao Botafogo. Era, afinal, o que menos importava. O húngaro agradeceu mais uma vez a oportunidade e declarou que suas quase duas semanas passadas na cidade foram “inesquecíveis”.

Do Rio, embarcou para Lisboa, onde participaria de um amistoso em benefício do zagueiro português Vicente – que, logo após participar da Copa da Inglaterra meses antes, sofrera um acidente e perdera a visão de um dos olhos. A partida também contou com a presença de Pelé. De lá, fez escala em Paris e Viena antes de retornar a Budapeste e ao seu Ferencváros. E, como prometido, publicou suas impressões dos dias de Rio e Flamengo na revista húngara Labdarúgás.

albert-capa-de-revista-hungaraNO RETORNO À EUROPA, A CONSAGRAÇÃO DA ‘BOLA DE OURO’

Ao retornar à Europa, Albert viveria uma grande temporada. Apesar de eliminado da Copa das Feiras ainda nas oitavas de final diante do Eintracht Frankfurt alemão, em partidas disputadas no fim de fevereiro, o atacante terminaria como o artilheiro da competição, com oito gols. Em junho, reencontraria o Flamengo, agora como adversário, defendendo um combinado Vasas-Ferencváros num amistoso em Budapeste. E em novembro, conquistou a liga de seu país e foi eleito o melhor jogador húngaro da temporada.

albert-deixa-o-campoMas um prêmio ainda maior o aguardava: no fim do ano, em 22 de dezembro, Albert seria eleito o melhor jogador europeu de 1967, recebendo a Bola de Ouro da revista francesa France Football. Na soma da votação, que contou com a participação de jornalistas esportivos de 24 países do Velho Continente, o húngaro recebeu 68 pontos, superando por larga margem os 40 do inglês Bobby Charlton, ganhador no ano anterior. Entre outros nomes superados por Albert estavam os alemães Franz Beckenbauer e Gerd Müller, o português Eusébio, o norte-irlandês George Best e o italiano Sandro Mazzola.

Albert encerraria a carreira em 1974, depois de ter conquistado mais um título húngaro (em 1968) e de ter participado da Eurocopa de 1972. Em 1994, seria condecorado com a ordem do mérito em seu país, mas a homenagem mais tocante viria do Ferencváros, que em 2007 rebatizou seu estádio em homenagem ao velho ídolo. Quatro anos depois, em outubro de 2011, viria a falecer em Budapeste após sofrer complicações em uma cirurgia cardíaca, aos 70 anos de idade.

Meses antes de falecer, o ex-jogador foi entrevistado em Budapeste pelo portal Globoesporte.com. Relembrou histórias e casos curiosos de sua passagem pela cidade e pela Gávea, manifestou seu carinho pelo clube (“Além da camisa do Ferencváros e da seleção da Hungria, a única outra que vesti foi a do Flamengo”) e fez questão de ressaltar sua sensação com o feito: “Sim, eu fui o primeiro Bola de Ouro a jogar no Brasil e isso me orgulha muito”.

A vez da nova geração: Há 30 anos, garotos davam ao Fla o título carioca de 1986

10 quarta-feira ago 2016

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1986, Adalberto, Aldair, Bebeto, Campeonato Carioca, Jorginho, Marquinho, Sebastião Lazaroni, Taça Rio, Vasco, Zé Carlos

O time do Flamengo na final contra o Vasco. Em pé: Leandro, Zé Carlos, Aldair, Jorginho, Andrade e Guto. Agachados: Bebeto, Adílio, Aílton, Vinícius e Marquinho.

O time do Flamengo na final contra o Vasco. Em pé: Leandro, Zé Carlos, Aldair, Jorginho, Andrade e Guto. Agachados: Bebeto, Adílio, Aílton, Vinícius e Marquinho.

Cantarele, Jorginho, Leandro, Mozer e Adalberto; Andrade, Sócrates e Zico; Bebeto, Chiquinho e Adílio. No papel, um timaço. Em tese, este seria o Flamengo que disputaria aquele Campeonato Carioca de 1986, tentando reconquistar o título o qual vinha batendo na trave nos quatro anos anteriores. Foi esta escalação, aliás, a que entrou em campo na primeira partida, em goleada arrasadora por 4 a 1 sobre o tricampeão Fluminense, contada aqui. Porém, após inúmeros percalços, especialmente as lesões e convocações para a Copa do Mundo do México (que interrompeu o Estadual), seria um outro Flamengo, bem diferente – e bastante rejuvenescido -, o que chegaria enfim ao caneco em decisão diante do Vasco, naquele 10 de agosto de 1986.

O pontapé inicial do Carioca de 1986 veio no domingo, 16 de fevereiro, véspera da apresentação dos jogadores da Seleção Brasileira convocados na sexta-feira anterior pelo técnico Telê Santana. Todos os chamados desfalcariam suas equipes durante o longo processo de preparação para o Mundial do México, até pelo menos a divulgação da lista final dos 22 que iriam à Copa, em maio. De cara, Flamengo e Fluminense foram os maiores prejudicados. O Rubro-Negro perdeu sua dupla de zaga (Leandro e Mozer), além dos armadores Zico e Sócrates. Já o tricolor ficou sem o goleiro Paulo Victor e o lateral-esquerdo Branco – além de, um pouco depois, perder o paraguaio Romerito para a seleção de seu país.

Entre as outras quatro forças, o grande favorito não só a fazer frente à dupla Fla-Flu, mas também ao título, era o Vasco. Sem nenhum convocado, poderia contar integralmente com seus bons jogadores, como os goleiros Paulo Sérgio e Acácio, o lateral Paulo Roberto, o zagueiro Donato, o volante Vítor, além das revelações Lira e Mazinho e de seu intimidador quarteto de frente, formado por Mauricinho, Geovani, Roberto Dinamite e um jovem de 20 anos cotado como provável sensação do campeonato: Romário. Dos demais, o Botafogo vinha afundado em crise técnica aparentemente sem fim (havia terminado a Taça Rio, no fim do ano anterior, na décima colocação entre 12 clubes); o America mostrava uma equipe pouco mais que aguerrida; e o Bangu, grande destaque carioca em 1985, vivia o anticlímax após a grande temporada, com seus principais jogadores em má fase, o técnico Moisés contestado, além da disputa paralela – e aborrecida – da Taça Libertadores.

Mesmo desfalcado de seus jogadores da Seleção, o Fla manteve o nível da goleada sobre o Fluminense da estreia na partida seguinte, um categórico 4 a 0 sobre a Portuguesa na Ilha do Governador (estádio onde o Fla havia tropeçado em suas duas últimas visitas, em 1982 e 1985). No lugar de Leandro e Mozer, estavam os novatos Guto e Zé Carlos II. No meio, em vez de Zico e Sócrates, havia agora Valtinho (filho de Silva, o Batuta, craque e ídolo rubro-negro dos anos 60) e o loirinho Júlio César Barbosa criando e combatendo. E na frente havia Bebeto, que marcou duas vezes (uma delas de pênalti sofrido por ele mesmo), com Chiquinho e Valtinho completando o marcador.

O jovem time rubro-negro comemora a vitória sobre o Botafogo.

O jovem time rubro-negro comemora a vitória sobre o Botafogo.

Pela terceira rodada, outra grande atuação em mais uma vitória num clássico, agora diante do Botafogo. Chiquinho abriu o placar logo no início e Bebeto completou ainda no primeiro tempo. Com grandes atuações nas três partidas, o baianinho credenciava-se cada vez mais a ser o grande nome da equipe e a se firmar como um grande jogador do futebol brasileiro. Naquela tarde no Maracanã, havia feito jogada genial ao driblar o goleiro alvinegro Luís Carlos com uma ginga de corpo exatamente como Pelé havia feito com o uruguaio Mazurkiewicz na Copa de 1970. Mas o lance acabou anulado injustamente, antes que o jovem rubro-negro pudesse tocar para as redes, por um impedimento mal marcado.

Na partida contra o Mesquita, pela quarta rodada, a lista de desfalques aumentou: Adílio sofreu entorse no joelho esquerdo. Ficaria fora de ação pelo resto da Taça Guanabara e o início da Taça Rio. Naquela partida, disputada no estádio Caio Martins e vencida pelo Fla por 3 a 1, entraria em seu lugar um ponta-esquerda da base, estreando no time profissional aos 18 anos de idade, chamado Zinho. Foi também naquele jogo que outro jovem recém-promovido dos juniores atuaria pela primeira vez como titular do Fla num jogo oficial: o quarto-zagueiro baiano Aldair, de 20 anos.

Aos poucos, a garotada tomaria conta da equipe. Mas para o treinador rubro-negro, não haveria nenhum problema. O mineiro Sebastião Lazaroni, de apenas 35 anos, trabalhava no clube desde meados da década de 70, como preparador físico, auxiliar técnico e, posteriormente, dirigindo as categorias de base. Conhecia bem o potencial de cada garoto daquele elenco. Naquele momento, vivia sua primeira experiência como treinador efetivo de uma equipe principal, iniciada em outubro de 1985, quando substituiu Joubert durante o Campeonato Carioca, e após uma breve passagem como interino, meses antes. Formado em Educação Física e estudioso do futebol, Lazaroni sabia ainda aliar a disciplina tática à motivação dos atletas, fazendo do Flamengo um time aguerrido, combativo, veloz, mas sem medo de atacar.

Marquinho, Guto e Valtinho encaram o Goytacaz em Campos.

Marquinho, Guto e Valtinho encaram o Goytacaz em Campos.

Com seus garotos, o Flamengo de Lazaroni seguiu no encalço do completo Vasco, com quem passou toda a Taça Guanabara se revezando na ponta da tabela, bem à frente dos demais – o Fluminense, por exemplo, havia sido goleado por Flamengo (4 a 1), Goytacaz (4 a 0 em Campos) e Botafogo (também 4 a 1, na última rodada). Mesmo sofrendo mais um desfalque, o do experiente goleiro Cantarele, lesionado em um dos joelhos durante a partida contra o Bangu. Em seu lugar entraria mais um garoto: o jovem Zé Carlos, o Zé Grandão, que não perderia mais o lugar até o fim da competição.

Na decisão da Taça Guanabara contra o Vasco, em 20 de abril, o Fla, no entanto, não levaria a melhor. Até dominaria o jogo e criaria mais oportunidades, mas em duas das raras chances que teve, Romário marcou duas vezes e deu o título aos cruzmaltinos. Nos vestiários, Lazaroni chegou a chorar, agradeceu aos jogadores e os parabenizou pelo esforço, lamentando que mereciam melhor sorte, diante do futebol apresentado. Mas não era nada. Ainda havia muito campeonato pela frente.

O começo da Taça Rio foi bastante irregular, com um empate contra o Campo Grande em Ítalo del Cima (1 a 1), nova vitória sobre o America no Maracanã (2 a 0) e derrota de virada para o Botafogo (1 a 2). Mas com a goleada de 5 a 0 sobre a Portuguesa da Ilha em Caio Martins na quarta rodada, o time voltaria a embalar, não perderia mais o gás nem mesmo com a paralisação de cerca de um mês pela disputa da Copa do Mundo, e não seria mais derrotado até o fim da competição.

O jogo contra a Portuguesa marcaria o breve retorno de Leandro, fora da Seleção, ao time Rubro-Negro. Mas sua volta definitiva viria apenas nas partidas finais. Zico também retornaria ao time após a Copa, mas entraria em campo apenas três vezes antes de nova lesão muscular. Mozer, cortado da Copa para se submeter a uma cirurgia nos joelhos, voltaria mais adiante, mas também apenas por dois jogos. Sócrates e Cantarele não entrariam mais em campo. Aquele título teria que vir mesmo dos pés dos garotos.

E havia uma boa safra surgindo. Zé Carlos se firmava no gol; Guto e Aldair combinavam a raça de um e a técnica do outro na zaga; Aílton era o pulmão do meio-campo (e às vezes também pela lateral); Valtinho fazia boas exibições no meio, armando e marcando; Vinícius ganhava confiança e a titularidade da camisa 9; Zinho aparecia bem pela ponta-esquerda; Alcindo infernizava laterais entrando durante os jogos pelo lado direito. Um pouco mais experientes, Bebeto, Jorginho e Adalberto confirmavam sua grande categoria. Júlio César Barbosa e o ponta-esquerda Marquinho (vindo do Vasco em janeiro de 1985, trocado pelo volante Vítor e o lateral Heitor) eram de grande importância pela disposição e aplicação tática. E, no centro de tudo, estava Andrade, o esteio do meio-campo.

Bebeto e Aílton na disputa com o tricolor Delei, no clássico da Taça Rio.

Bebeto e Aílton na disputa com o tricolor Delei, no clássico da Taça Rio.

Daí em diante o time embalou. Venceu o Goytacaz em Caio Martins (1 a 0) e o Mesquita na Baixada (3 a 1). Empatou com o Americano em jogo tumultuado em Campos (2 a 2). Bateu o Olaria na Rua Bariri (2 a 1) e venceu o Fla-Flu (1 a 0) mesmo perdendo Zico logo aos sete minutos – o que levou a torcida tricolor a, novamente, gritar “bichado” para o Galinho e ser calada logo depois pelo gol de Marquinho. Arrancou o empate em 1 a 1 com o Bangu no Maracanã em cabeçada de Valtinho, após sair atrás no marcador. Até chegar o clássico diante do Vasco na última rodada.

No sábado, 26 de julho, o Fluminense havia derrotado o Bangu no Maracanã por 1 a 0, alcançando a liderança temporária da Taça, um ponto à frente do Flamengo e três a mais que vascaínos e banguenses, sem chance no turno. No domingo os tricolores torceriam, portanto, pelo Vasco. Em caso de empate, Fla e Flu fariam jogo extra, decidindo o turno. Já se o Rubro-Negro vencesse, seria não só o campeão da Taça Rio como também o primeiro colocado na classificação geral, na soma dos turnos.

Bebeto, cobrando falta à la Zico, no canto direito de Paulo Sérgio, abriu o placar para o Fla. Romário empatou para o Vasco ainda no primeiro tempo, de ponta de chuteira, na pequena área, após bola alçada por Paulo Roberto. No segundo tempo, Roberto Dinamite virou para o Vasco aos 14 minutos. Mas o Fla não estava entregue. Aos 34, Alcindo tentou o cruzamento pela direita e Vitor cortou com a mão dentro da área. O árbitro marcou o pênalti para o desespero dos cruzmaltinos – que, mesmo já sem chance na Taça Rio, jogavam para eliminar de vez o Flamengo e colocar o Fluminense na decisão. Bebeto bateu e empatou o jogo. Dois minutos depois, Roberto, descontrolado, agrediu Andrade e foi expulso. Aos 39, num contra-ataque avassalador, Bebeto tocou de calcanhar para Adílio, que devolveu para a finalização do atacante. Paulo Sérgio deu rebote e Julio Cesar Barbosa não perdoou. Do outro lado, Zé Carlos ainda brilharia ao defender uma cabeçada de Mazinho, a três minutos do fim, garantindo o triunfo rubro-negro. Fla 3 a 2, campeão da Taça Rio e finalista do Estadual.

Bebeto e Aldair vibram contra o Vasco.

Bebeto e Aldair vibram contra o Vasco.

Com o Flamengo na condição de campeão da Taça Rio e também na de equipe que somou mais pontos nos dois turnos, a fase final se transformou em um “triangular de dois”, diferentemente dos quatro anos anteriores, quando três clubes chegaram para a decisão – embora os cartolas do Fluminense, dessa vez, tenham recorrido ao TJD, ao STJD e até à Justiça Comum para tentar anular a derrota por W.O sofrida pelo time ao não comparecer à partida contra o Americano, em Campos, no dia 18 de maio, quando o clube alegou que seus atletas estavam com dengue e virose respiratória. Não colou.

Agora, rubro-negros e cruzmaltinos jogariam uma melhor de quatro pontos, com o Fla tendo um de vantagem, dado pelo regulamento à melhor campanha geral. Mas a grande missão rubro-negra era parar o ataque vascaíno, disparado o mais positivo do torneio (ao todo, 50 gols, sendo 20 do artilheiro Romário). No primeiro jogo, em 3 de agosto, uma partida muito estudada, com as duas equipes sem arriscar tanto. Mas o placar só não saiu mesmo do zero porque a trave salvou Acácio numa cobrança de falta de Marquinho e porque o árbitro deixou passar um pênalti claro de Mauricinho em Adalberto.

A segunda partida, três dias depois, poderia valer o título ao Fla em caso de vitória, mas o 0 a 0 persistiu. Ficou tudo para o domingo, 10 de agosto, diante de mais de 127 mil torcedores no velho Maracanã. O time rubro-negro, que pela primeira vez no campeonato não teria Adalberto, ausente por lesão, na lateral-esquerda, entrou em campo com Zé Carlos; Jorginho, Leandro, Guto e Aldair; Andrade, Aílton e Adílio; Bebeto, Vinícius e Marquinho. O Vasco de Antônio Lopes foi a campo com Acácio; Paulo Roberto, Donato, Morôni e Heitor; Vítor, Mazinho e Geovani; Mauricinho, Roberto e Romário.

Na decisão, Bebeto acaba com o Vasco.

Na decisão, Bebeto acaba com o Vasco.

Pressionado pela necessidade de vencer, o Vasco atacou mais, mas esbarrou em Zé Carlos soberano no gol. O Fla, que só partia na boa, levava perigo mais concreto. No intervalo, Antônio Lopes surpreendentemente tirou Geovani, cérebro do meio-campo vascaíno, para colocar o junior Claudinho. Era a senha: o Fla assumia de vez o controle do jogo e o gol amadurecia. Aos 28 minutos, Marquinho – onipresente em campo – ginga na frente de Paulo Roberto, tabela com Julio Cesar Barbosa, vai à linha de fundo e rola para Bebeto, livre, quase na pequena área, girar e bater para o fundo das redes.

A segunda alteração de Lopes foi ainda mais surpreendente: tirou Romário para colocar o ponta-esquerda Santos. Nem a torcida rubro-negra acreditou, saudando o treinador rival com gritos de “burro”. O castigo – e o ponto final do campeonato – veio aos 39 minutos: Julio Cesar Barbosa recebe de Andrade e bate cruzado da entrada da área. A bola quica por baixo do corpo de Acácio, que engole um frangaço, e vai para o fundo das redes novamente. Estava decretado o 22º título carioca do Flamengo, dono do craque do campeonato, Bebeto, da revelação do torneio, Aldair, e de toda uma geração valente de garotos muito bem comandados e organizados em campo por Lazaroni. Meninos rubro-negros com futebol de gente grande.

Campeões: Bebeto, Jorginho e Marquinho carregam a taça.

Os campeões de 1986: Bebeto, Vinícius (atrás), Jorginho e Marquinho carregam mais uma taça.

O Flamengo de 1970: uma montanha-russa sem fim – parte 2

17 segunda-feira out 2011

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1970, America, Atlético-MG, Atlético-PR, Bahia, Botafogo, Brito, Campeonato Carioca 1970, Corinthians, Cruzeiro, Doval, Fio, Fluminense, Grêmio, Internacional, Madureira, Palmeiras, Ponte Preta, Reyes, Robertão 1970, Santa Cruz, Santos, São Paulo, Ubirajara Alcântara, Vasco, Yustrich, Zanata

O time do Flamengo que goleou o Santa Cruz (5 a 1) no Maracanã pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa 1970 - em pé: Onça, Ubirajara Alcântara, Washington, Reyes, Zanata e Paulo Henrique; agachados: Doval, Liminha, Nei, Fio e Caldeira. No time-base rubro-negro na competição, Murilo foi titular no lugar de Onça.

Yustrich, o "Homão": tempos de autoritarismo e paternalismo na Gávea.

No segundo semestre de 1970, o Brasil era de novo o atual campeão do mundo. E no time do tri, o Flamengo teve seu representante: o vigoroso zagueiro-central Brito, contratado ao Vasco em outubro do ano anterior, e titular absoluto da Seleção de Zagallo… mas não do Mengão-70 de Yustrich. Utilizando-se da velha máxima do futebol segundo a qual “não se mexe em time que está ganhando”, o treinador decidiu manter na posição o jovem Washington, barrando Brito após o retorno da Seleção, numa atitude que deu o que falar.

No começo, o Doutor Brito – como era chamado pela torcida – aceitou sem maiores problemas. Mas o Homão demonstrava de que, por pura e injustificável “birra”, não estava disposto a dar chances ao zagueiro: em várias ocasiões deixava-o de fora até mesmo do time reserva nos coletivos. Estava declarada a guerra. O beque afirmava que o treinador, centralizador, não aceitava a existência de estrelas maiores que ele próprio, Yustrich, no elenco. E o técnico rebatia chamando Brito de “cachaceiro”.

A acusação de Brito fazia sentido quando se nota que outros dos principais jogadores do time no primeiro semestre também perderam espaço durante o Carioca: o selecionável Arílson e o homem-gol Dionísio, por exemplo, passariam quase todo o resto do ano fora do time titular.

Reyes, destaque da quarta-zaga.

Porém, logo ali ao lado de Brito (ou de Washington), um acerto de Yustrich começava a se fazer notar: a passagem do clássico médio-volante paraguaio Reyes para a quarta-zaga. Reyes chegara ao clube em 1967, com o cartaz de jogador da seleção paraguaia, e que já havia defendido o Atlético de Madri. No entanto, não teve sequência na Gávea até então e chegou a ser emprestado ao pequeno Campo Grande em 1969. Corria o risco de se perder entre os tantos jogadores medianos que aportaram no Flamengo naquele tempo. Esteve para ser dispensado. Mas os vários desfalques no elenco obrigaram o treinador a improvisá-lo em outra posição. Foi um achado.

Enquanto a queda de braço entre Brito e Yustrich se estendia, e Reyes subia de produção, o time chegou a liderar o Campeonato Carioca na metade do primeiro turno, mas desmoronou com a primeira derrota – 2 a 0 para o Fluminense na oitava rodada – perdeu o rumo, saiu cedo da briga pelo título e acabou num medíocre quinto lugar. Mas o torneio entrou para a história do clube por pelo menos um inusitado motivo.

Em 19 de setembro, na última rodada, já sem qualquer chance, o time enfrentava o Madureira no campo da Portuguesa, na Ilha do Governador, e vencia por 1 a 0, gol de Zanata cobrando pênalti no primeiro tempo. Aos 30 minutos da etapa final, os meros 1.075 torcedores no estádio presenciaram um gol raro: um gol de goleiro.

o chutão do goleiro Ubirajara encobre o arqueiro do Madureira.

Ubirajara Alcântara – até então o terceiro da posição no elenco do Flamengo, e que ganhara uma chance em um jogo sem importância – repôs a bola em jogo com um chutão. E o chute atravessou quase toda a extensão do campo, quicou à frente do desesperado arqueiro Paulo Roberto, do Madureira, encobriu-o, e a bola foi morrer no fundo da rede. Tratava-se do primeiro gol de goleiro registrado (e homologado pela então CBD) em partida oficial até então. E Ubirajara virou titular para não sair mais do time até o fim do ano.

* * * * *

Na semana seguinte ao encerramento dos estaduais, a atração era o Torneio Roberto Gomes Pedrosa, principal competição interestadual entre clubes e embrião do Campeonato Brasileiro iniciado no ano seguinte. Os 17 clubes eram divididos em dois grupos (um com oito, outro com nove), mas todos eles se enfrentavam em turno único. Os dois melhores de cada grupo se classificariam para o quadrangular final, também em turno único, que apontaria o campeão.

A tabela começava ingrata para o Flamengo, que teria pela frente logo nas duas primeiras rodadas nada menos que os recém-coroados campeões paulista (São Paulo) e carioca (Vasco). Mas o Mengão-70 – mesmo sem Brito, enfim emprestado ao Cruzeiro até o fim do ano – cumpriria bela campanha, analisada aqui jogo a jogo.

* São Paulo 0 x 2 Flamengo (Morumbi, 27 de setembro) – O time teve Washington e Liminha expulsos, mas mesmo inferiorizado numericamente (o tricolor Paraná também foi expulso) soube vencer com categoria, com gols de Nei e Fio, na tarde de estreia do uruguaio Pedro Rocha pelo São Paulo. Já pelo Fla, estreou um ponta-esquerda dos juvenis, um garoto cabeludo e polêmico chamado Mario Sérgio.

* Flamengo 3 x 1 Vasco (Maracanã, 4 de outubro) – O Fla se vinga dos cruzmaltinos em jogo tumultuado. Os vascaínos Silva e Fidélis são expulsos pouco antes do intervalo por agressão ao árbitro, logo após o primeiro gol rubro-negro, feito contra por Alcir. O time de Tim consegue buscar o empate na metade do segundo tempo, mas a resposta do Fla é imediata: Caio e Fio marcam para definir o placar.

* Ponte Preta 0 x 0 Flamengo (Parque Antártica, 10 de outubro) – Jogo truncado e violento contra a então sensação paulista. Doval e Onça são expulsos, além do ponte-pretano Dicá. Pelas condições, um bom resultado.

* Flamengo 2 x 1 America (Maracanã, 15 de outubro) – Marcando na saída de bola, bem ao estilo Yustrich, o Fla dominou o jogo. Sofreu o primeiro gol no fim do primeiro tempo, mas teve garra para virar na etapa final: Nei recebeu passe de Fio e empatou, e Mário Sérgio fez seu primeiro e único gol com a camisa rubro-negra.

* Flamengo 0 x 0 Palmeiras (Maracanã, 18 de outubro) – Zanata travou bom duelo com Ademir da Guia no meio-campo. Mas, sem Fio, e com Rodrigues Neto improvisado de ponta-de-lança, o Fla não teve força ofensiva para vencer o também invicto Palmeiras. Ainda assim, foi um bom resultado.

* Grêmio 0 x 0 Flamengo (Olímpico, 22 de outubro) – Novamente Zanata, perfeito tanto na armação de jogadas quanto no desarme, impressionou. E o Flamengo conseguiu com garra um empate fora de casa contra um adversário para quem havia perdido no Maracanã em todos os três confrontos anteriores pelo Robertão.

* Flamengo 0 x 0 Botafogo (Maracanã, 25 de outubro) – O terceiro empate sem gols seguido mostrava uma certa fragilidade ofensiva. O time passou praticamente todo o jogo tentando alçar bolas sobre a área botafoguense, sempre rebatidas por Moisés e Leônidas. Nos bastidores, Doval reclamava de Yustrich, que censurava seu cabelo, suas roupas, e o fazia jogar recuado demais, quase como um lateral.

Nei encara a defesa do Santa Cruz.

* Flamengo 5 x 1 Santa Cruz (Maracanã, 31 de outubro) – Depois de quatro 0 x 0 nos últimos cinco jogos, era a hora de desencantar. E nem a retranca do Santa Cruz conseguiu segurar o ataque rubro-negro, que jogou fácil, rápido, quase sempre caindo pela direita, inclusive com Doval, e até o zagueiro Onça. Liminha fez dois. Nei, outros dois. E o gringo, mais um.

* Atlético-PR 0 x 0 Flamengo (Belfort Duarte, atual Couto Pereira, 8 de novembro) – O time volta a empatar sem gols, num jogo fraco tecnicamente. Mas pensando pelo lado positivo, quando é que pode ser ruim para o Fla um empate com o Atlético em Curitiba? O lance curioso da partida veio quando Ubirajara deu outro chutão de sua área e quase marcou seu segundo gol, como contra o Madureira no Carioca. Só que o goleiro paranaense Vanderlei estava atento e espalmou. Nono jogo invicto para o time de Yustrich.

* Cruzeiro 3 x 1 Flamengo (Mineirão, 8 de novembro) – E Brito, escorraçado da Gávea pelo Homão meses antes, teve sua vingança. O Flamengo dominou amplamente o primeiro tempo e boa parte do segundo, mas parou no zagueiro. Do outro lado, o time mineiro encaixou três jogadas e marcou com Dirceu Lopes, Natal e Tostão, depois que Nei abrira o placar. O Flamengo, que havia sofrido apenas três gols nos nove jogos anteriores do Robertão, levou a mesma quantidade em uma só partida e perdeu a invencilibidade no torneio.

Zanata, Reyes e Paulo Henrique bloqueiam o ponta Edu, do Santos.

* Flamengo 2 x 0 Santos (Maracanã, 14 de novembro) – A recuperação veio em grande estilo: o Fla engoliu o Santos com Pelé e tudo, e venceu com dois gols de Fio, um em cada tempo. Com Doval fazendo a festa na defesa santista, Zanata em outra exibição de gala, e Reyes brilhando cada vez mais na quarta-zaga, o rubro-negro chegou a sua quinta vitória no Robertão.

* Bahia 1 x 0 Flamengo (Batistão, Aracajú, 18 de novembro) – Com a Fonte Nova em obras, o Bahia foi obrigado a jogar na capital sergipana durante todo aquele Robertão – o que não o impediu de obter grandes resultados (venceu o São Paulo, derrubou o invicto Fluminense, venceria o Corinthians, além de tirar pontos de Atlético-MG e Internacional). Mesmo com a torcida do Batistão a seu favor, o Fla foi bem marcado, não rendeu e perdeu a segunda na competição. Detalhe: o técnico do tricolor baiano era Fleitas Solich, ex-treinador rubro-negro e que voltaria à Gávea no ano seguinte.

* Flamengo 1 x 1 Fluminense (Maracanã, 22 de novembro) – Jogo disputado em clima de decisão por duas equipes que brigavam por vaga no Grupo B. O Fla teve um gol anulado (de Liminha, por impedimento de Doval) ainda com o 0 a 0 no placar. Também na primeira etapa, Zanata, de pênalti, fez 1 a 0 para o time de Yustrich, e Cafuringa empatou. E ficou nisso.

* Flamengo 1 x 0 Internacional (Maracanã, 28 de novembro) – Outro jogo de vida ou morte para o Fla. Animado pela derrota do Colorado para o America no Maracanã no meio da semana, o Fla foi pra cima e saiu com a vitória graças a um gol de falta de Fio, logo aos 10 minutos. Enquanto isso, nos bastidores, um nome era fortemente cogitado para suceder Yustrich, cujo contrato venceria no fim do ano: Telê Santana, o jovem técnico do Atlético-MG, próximo adversário. Corriam por fora Oto Glória (do America) e Zezé Moreira (do São Paulo), além do já citado Fleitas Solich.

Fio, sete gols, artilheiro do Fla no Robertão-70.

* Flamengo 1 x 0 Atlético-MG (Maracanã, 2 de dezembro) – Sob chuva, uma atuação espetacular do Mengão-70. O Galo vinha embalado, de vitória sobre o Fluminense por 3 a 1 no Mineirão, e resistiu enquanto pôde, com o goleiro Renato (ex-rubro-negro, e que voltaria ao clube em 1972) pegando tudo. Mas aos 35 minutos do segundo tempo, Fio marcou o gol da vitória para enlouquecer o Maracanã. Com o resultado, o Flamengo chegava à liderança do embolado Grupo B a uma rodada do fim da primeira fase.

* Corinthians 1 x 0 Flamengo (Pacaembu, 5 de dezembro) – O Grupo B chegou à ultima rodada totalmente em aberto: quatro clubes brigavam por duas vagas. No sábado, o líder Flamengo (20 pontos) viajava para enfrentar o já eliminado, mas ascendente Corinthians no Pacaembu; e o Inter (em quarto, com 18 pontos) receberia o mesmo Atlético batido pelo Fla no jogo anterior, mas já garantido no quadrangular final. No domingo, Fluminense e Cruzeiro, empatados com 19 pontos, jogariam fora de casa, respectivamente, contra Atlético-PR e São Paulo, dois times confinados à parte de baixo da tabela.

No Pacaembu, o Flamengo começou melhor e teve o domínio do jogo até os 38 minutos do primeiro tempo, quando o árbitro Sebastião Rufino – pernambucano que integrava o quadro da Federação Paulista, e o mesmo que expulsara Washington e Liminha contra o São Paulo na estreia – inventou uma falta para o Corinthians em seu campo de ataque. O ex-banguense Aladim bateu e fez o único gol do jogo. O Flamengo então se lançou afobado ao ataque. Para piorar, Yustrich mexeu mal no time, tirando Doval e Nei para entrar Milton e Ademir. O time se desarrumou de vez e não conseguiu empatar.

Para piorar ainda mais, os resultados dos adversários foram totalmente desfavoráveis. O Inter bateu o Atlético (3 a 1), chegou aos 20 pontos, superou o Fla nos gols marcados e terminou em terceiro. O Fluminense também chegou à mesma pontuação ao empatar com o Atlético-PR (1 a 1), e ficou com a segunda vaga no saldo de gols. Por fim, o Cruzeiro de Brito venceu fora o São Paulo (2 a 0) e terminou como líder, com 21 pontos. Enquanto isso, na outra chave, o Atlético-MG se classificava com os mesmos 20 pontos do Flamengo, e um gol a menos de saldo.

Olhando em retrospecto, foi uma boa campanha: sete vitórias, seis empates, apenas três derrotas, 18 gols marcados, nove sofridos. Quinto colocado em pontos, ao lado do Internacional, entre 17 participantes (para efeito de comparação, nas três edições anteriores do Robertão, a melhor posição obtida havia sido um 11º lugar em 1967, em um torneio com 15 clubes). O time-base, praticamente inalterado ao longo de toda a competição tinha Ubirajara Alcântara; Murilo, Washington, Reyes e Paulo Henrique; Zanata e Liminha; Doval, Nei, Fio e Caldeira.

Reyes (à frente) e Ubirajara, dois destaques no Robertão-70.

Esbanjando classe e categoria durante todo o campeonato, Zanata e Reyes receberam da revista Placar o troféu Bola de Prata como os melhores do campeonato em suas posições, médio-volante e quarto-zagueiro. O paraguaio, aliás, teve média final de 8,13, a maior entre todos os jogadores do campeonato, à frente de Paulo César Caju, do Botafogo (8,12) e Tostão, do Cruzeiro (8,06). Se já tivesse sido criada (só viria em 1973), a primeira Bola de Ouro teria sido de Reyes.

E Yustrich? Ao contrário do que tudo indicava, não saiu ao fim do ano. Renovou seu contrato, se indispôs com mais jogadores, afastou Doval e exigiu que o atacante fosse emprestado ao Huracán argentino, mas teve o respaldo da diretoria, até que sua própria situação se tornasse insustentável no clube, diante de uma campanha abaixo do medíocre, já em meados de 1971. Em seu lugar assumia em junho Fleitas Solich. Mas aí já é outra história, contada aqui.

Um começo arrasador, dois títulos importantes pouco lembrados, crises entre treinador e elenco, um gol de goleiro, uma campanha pífia no Carioca e outra muito boa no Robertão, porém frustrada na última das horas. Como se vê, emoções não faltaram no Mengão-70. E extremadas, bem ao estilo de quem o comandou, o Homão Yustrich.

Grandes jogos: um certo Maio de 68

08 quinta-feira set 2011

Posted by Emmanuel do Valle in confrontos

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1968, Carioca, Dionísio, Onça, Silva, Vasco, Válter Miraglia

Diante de sua torcida, o Flamengo entra em campo contra o Vasco, em foto da revista Manchete de 18 de maio de 1968. À frente, Rodrigues Neto e Luis Carlos (parcialmente encoberto). Em seguida, vêm Carlinhos e Onça.

Naquele mês de maio de 1968, o mundo fervilhava aqui e lá fora em protestos, revoluções, motins. Em Paris, uma revolta dos estudantes contra a intransigência do governo do general Charles de Gaulle cresceu e tomou proporções nacionais, irrompendo numa greve geral que uniu classes, raças e sexos, clamando por liberdade. Nos EUA, mergulhados na Guerra do Vietnã, ainda ecoava o assassinato do líder negro Martin Luther King, ocorrido no mês anterior. No Brasil, o regime militar recrudescia, no que desaguaria na decretação do AI-5, em dezembro.

Mas, parafraseando Chico Buarque, aqui na Terra também se jogava futebol, e no Rio de Janeiro especificamente as massas batiam ponto todo domingo no Maracanã. Aquele primeiro de maio, entretanto, caiu numa quarta-feira. Porém o feriado do Dia do Trabalho ajudou a arrastar 155 098 pessoas ao estádio para acompanhar o Clássico dos Milhões (apelido mui justificado) entre Flamengo e Vasco, válido pela última rodada do primeiro turno do Campeonato Carioca, e que quebrou o recorde de renda do ano no país.

O Vasco: 100% de aproveitamento

Mais embalado, impossível, o time cruzmaltino. Havia vencido todos os seus dez jogos disputados até então na competição. Passou incólume, sem perder um ponto sequer, por America, Madureira, Campo Grande, Bonsucesso, Bangu, Portuguesa da Ilha, São Cristóvão, Fluminense, Olaria e Botafogo. No time dirigido por Paulinho de Almeida (ex-lateral do clube), brilhava o centroavante Nei, o “artilheiro da cidade”, como era chamado pela imprensa. Dez gols nos últimos cinco jogos, 12 em todo o campeonato até então.

Além dele, também se destacavam o zagueiro Brito, futuro tricampeão do mundo; a dupla de meio-campo formada pelo mineiro Buglê e o uruguaio Danilo Menezes; o ponteiro-direito Nado, vindo do Náutico e que, dois anos antes, quando defendia o clube pernambucano, havia sido relacionado entre os 44 pré-convocados para a Copa de 66; e o ponta-de-lança Bianchini, que fez história no Bangu e teve boas passagens por Botafogo e Flamengo. O desfalque era Fontana, zagueiro que fazia duríssima e temível dupla com Brito. Expulso contra o Fluminense na oitava rodada, o beque cumpria suspensão.

O Flamengo: um time em busca de regularidade

Já o Flamengo fazia campanha um pouco menos regular. Goleara o Fluminense por 4 a 2, mas perdera para o Madureira, numa autêntica zebra. Acumulara sete vitórias, um empate e duas derrotas, o que o colocava na terceira posição na classificação geral, atrás de Vasco e Botafogo. No entanto, tinha um craque e goleador de respeito vestindo a camisa 10: Silva, o “Batuta”, autor de 11 gols até então, apenas um a menos que Nei.

O time dirigido por Válter Miraglia, ex-meia do clube nos anos 40, entrou em campo com Marco Aurélio no gol. Nas laterais, os eternos Murilo e Paulo Henrique. Na zaga, o folclórico baiano Onça era o beque central, tendo a seu lado na quarta zaga o uruguaio Jorge Carlos Manicera, da seleção de seu país, e grande contratação do clube para aquele ano. No meio, o veterano Carlinhos, o “Violino”, exibia a velha classe de sempre, auxiliado por um jovem Liminha, o “Motorzinho da Gávea”. Na frente, além de Silva, três garotos com a missão de municiarem e serem municiados pelo craque do time: Luís Carlos era o ponta-direita, Dionísio jogava pelo meio, e o futuro lateral Rodrigues Neto caía pela esquerda, um pouco mais recuado.

O desfalque era César Lemos, camisa 9 promissor, cria do clube, que voltara de empréstimo ao Palmeiras, onde conquistara no ano anterior o Torneio Roberto Gomes Pedrosa, mas que teve que deixar de vez a Gávea com destino ao Parque Antárctica para fazer história no futebol brasileiro como César “Maluco”.

O jogo

Em campo, as coisas não começaram bem para o Fla. Logo aos seis minutos, Nei tomou a bola das mãos de Marco Aurélio e Bianchini abriu o placar para o Vasco. Com o melhor ataque (24 gols pró) e a melhor defesa (5 gols sofridos) da competição, o time de São Januário parecia se encaminhar para mais uma tranquila vitória. Parecia que, naquele primeiro turno, os cruzmaltinos fariam barba, cabelo e bigode.

Só que as barbas, cabelos e bigodes vascaínos foram logo colocados de molho aos 35 minutos. Onça, o zagueiro revelado pelo Fluminense de Feira de Santana, vindo do Bahia, e que, na falta de muito apuro técnico se fez ídolo da torcida por conta de sua raça e dedicação incondicional – bem ao estilo de vários beques que fizeram história na Gávea -, empatou a partida em cobrança de falta e incendiou a massa rubro-negra no Maracanã.

O jogo seguiu equilibrado até o fim da primeira etapa. Mas na volta do intervalo, logo aos cinco minutos, Dionísio, o substituto de César, marcou de letra o gol da virada para o delírio da galera. Mesmo sem Silva, que teve de sair de campo lesionado – contusão que o deixaria de fora de praticamente toda a reta final do campeonato -, o Fla resistiu bravamente à pressão adversária (com grandes defesas de Marco Aurélio) durante todo o resto da partida, até o apíto final de Armando Marques. Da boca do túnel, de pé engessado, Silva, o “Batuta”, rege a torcida rubro-negra.

Acabou a invencibilidade vascaína, acabou a série de vitórias. O Vascão 100% já era. E Nei, o artilheiro da cidade, não só emudeceu naquela tarde, como não voltou a marcar em todo o resto do torneio. Foi engolido por Onça.

Depois do clássico…

O turno final foi disputado pelos oito melhores times da primeira fase. Sem Silva, seu principal jogador, o Fla voltou aos dias de irregularidade. Perdeu pontos aqui e ali, e acabou saindo do páreo a duas rodadas do fim, após empatar em 2 a 2 com o mesmo Vasco.

Já os cruzmaltinos tropeçaram em empates contra um decadente Fluminense, o Bangu e o Flamengo, enquanto assistiam a uma arrancada fulminante do Botafogo (de Jairzinho, Gérson, Roberto Miranda, Paulo César Caju e do técnico Zagallo), que enfileirou vitórias desde o final do turno anterior.

Dois pontos atrás do Vasco ao fim do primeiro turno, o alvinegro da Estrela Solitária chegou à última rodada da fase final podendo empatar o confronto direto com a equipe de São Januário para levantar a taça. Venceu por 4 a 0. E o time da Colina, que não conquistava um Carioca havia dez anos, amargou mais um ano na fila e mais um vice-campeonato.

* * * * *

Como curiosidade daquela rodada de 1º de maio, antes de Flamengo x Vasco, os mais de 155 mil torcedores que foram ao Maracanã viram na preliminar a vitória do Bonsucesso sobre o Olaria por 1 a 0.

Pelo time da Rua Bariri, treinado pelo ex-goleiro tricolor Castilho, estiveram em campo nomes como o zagueiro Miguel (futuro Vasco, Fluminense e Seleção Brasileira), os laterais Mura (futuro Botafogo) e Alfinete (campeão brasileiro com o Vasco em 74) e o centroavante Antunes (irmão mais velho de Zico).

Já o rubro-anil contou com o então iniciante zagueiro Moisés (futuro Vasco, Botafogo, Bangu, Corinthians, Flamengo, entre vários outros clubes), o também zagueiro Paulo Lumumba, o goleiro Jonas (futuro America) e o meia Amaro (campeão carioca com o America em 1960, e que também defendeu a Juventus, da Itália).

O autor do gol da vitória foi do atacante Paulo Mata. Aquele mesmo que em 1997, como técnico do Itaperuna, invadiu o campo e baixou as calças em protesto contra uma desastrosa arbitragem numa partida contra o Vasco.

* * * * *

Ficha do Clássico dos Milhões:

Vasco 1 x 2 Flamengo
Campeonato Carioca
Data: 1º de maio de 1968
Local: Maracanã
Árbitro: Armando Marques
Público: 155.098
Renda: NCr$ 416.930,00
Gols: Bianchini (1-0) aos 6, Onça (1-1) aos 35 do 1º tempo; Dionísio (1-2) aos 5 do 2º tempo

Vasco: Pedro Paulo; Ferreira (Jorge Luís), Brito, Sérgio e Lourival; Buglê e Danilo Menezes; Nado, Nei, Bianchini e Silvinho. Técnico: Paulinho de Almeida.

Flamengo: Marco Aurélio; Murilo, Onça, Manicera e Paulo Henrique; Carlinhos e Liminha; Luís Carlos, Dionísio (Zanata), Silva (Fio), Rodrigues Neto. Técnico: Válter Miraglia.

Quarenta anos de Zico no Fla, e o Fla há quarenta anos

29 sexta-feira jul 2011

Posted by Emmanuel do Valle in ídolos

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1971, Fio, Fleitas Solich, Taça Guanabara, Vasco, Zico

O Fla na partida contra o Botafogo, pelo Brasileiro. Em pé: Ubirajara, Aloísio, Fred, Reyes, Liminha e Paulo Henrique. Agachados: Rogério, Samarone, Zé Eduardo, Zico e Rodrigues Neto.

Em 29 de julho de 1971, uma quinta-feira há exatos 40 anos, os brasileiros acompanhavam pela televisão a estrela ascendente Regina Duarte na novela “Minha Doce Namorada”. Ainda vigorava o acento diferencial (“êste”, “nôvo”, “jôgo”, “fôrça”, etc). O Rio ainda era a capital do estado da Guanabara. E a construção da Ponte Rio-Niterói caminhava lentamente.

Onze dias antes, Pelé havia se despedido da Seleção num amistoso contra a Iugoslávia no Maracanã. Ainda naquele mês, dois outros gênios, Jim Morrison e Louis Armstrong, deixavam a vida para adentrar a eternidade. No mesmo ano, Roberto Carlos lançava o LP com “Detalhes”. Chico Buarque lançava “Construção”. E Caetano estava exilado em Londres.

Também naquele 29 de julho de 71, num Flamengo x Vasco pela Taça Guanabara, no Maracanã, o então técnico rubro-negro, o paraguaio Fleitas Solich, lançou entre os profissionais, com a camisa 7, um menino miúdo e bom de bola chamado Zico. Sabem quem é?

Para este blog, mais importante do que citar os títulos conquistados – incluindo o Mundial Interclubes, dez anos depois – e o patamar estratosférico ao qual Zico alçou o clube é contar um pouco do contexto da estreia do Galinho. Como estava o Flamengo naquele 1971.

E decididamente não estava bem. Solich retornara ao clube (o qual comandara por quase 400 partidas entre abril de 1953 e janeiro de 1962, levantando um tri carioca e um Rio-São Paulo) há pouco mais de um mês, e tinha nas mãos um elenco destroçado.

Depois de um 1970 atravessado como uma montanha-russa de emoções (que em breve serão contadas aqui), as relações de dirigentes, torcida e jogadores com o técnico anterior, Yustrich, estavam as piores possíveis. Como exemplo, o atacante argentino Doval, um dos ídolos, havia brigado com o treinador por conta dos métodos extenuantes de preparação física, e acabou emprestado até o fim do ano ao Huracán portenho.

Para compensar as baixas, o time – sem dinheiro e sem levantar o título carioca desde 1965 – se reforçou modestamente ao longo do ano. Trouxe o centroavante Roberto Miranda, do Botafogo, trocado por empréstimo até o meio do ano pelo lateral Paulo Henrique; o ponta Buião (ex-Atlético-MG) e o meia Tales, vindos do Corinthians, e o atacante Zé Eduardo, promessa do Bahia, trocado por empréstimo por um ataque inteiro (!), que incluía o ex-titular Dionísio.

No segundo semestre, para o Brasileiro, vieram outro ponta, Rogério, do Botafogo, juntamente com o meia Renato (irmão de Amarildo, o “Possesso” da Copa de 62), emprestado pelo America, e o meia-atacante Samarone, ex-ídolo do Fluminense, entre outros.

De camisa branca, na partida contra o São Paulo (hein?!?), no Morumbi, também pelo Brasileiro. Em pé: Ubirajara, Aloísio, Fred, Reyes, Liminha e Paulo Henrique. Agachados: Buião, Renato, Zico, Samarone e Rodrigues Neto.

A esses jogadores se juntavam nomes como o goleiro Ubirajara, o lateral Murilo (patrimônio do clube, assim como Paulo Henrique), o zagueiro paraguaio Reyes, o volante Liminha, o meia Zanata, e os atacantes Nei (que também defendeu Corinthians e Vasco e é pai do ex-jogador Dinei, aquele) e Fio (que no ano seguinte viraria “Maravilha” na canção de Jorge Ben). Havia ainda o então curinga Rodrigues Neto, posteriormente fixado na lateral-esquerda, e jogadores folclóricos como o zagueiro Onça e o lateral Tinteiro, tido como revelação na época.

Além disso – e como quase sempre acontece na história do clube – havia uma penca de talentos das categorias de base prestes a ser lançada (e queimada, como também quase sempre acontece na história do clube, ainda mais pelo momento ruim de então). Nesse balaio estava Zico, então com 18 anos de idade.

A Taça Guanabara, pela qual Fla e Vasco jogaram (na preliminar de Fluminense x Botafogo – que coisa, não?) era, diferentemente de hoje, um torneio separado do Campeonato Carioca, e jogada às vezes antes, às vezes depois do certame principal, como foi o caso de 71. Foi disputada em pontos corridos, turno único, pelos seis principais times (ou cinco, depois que o Bangu abandonou o torneio para excursionar pelos Estados Unidos) e conquistada pelo Fluminense, menos irregular que os outros.

Antes disso, no Carioca, o rubro-negro havia terminado na quarta posição, atrás de Flu (campeão), Bota (vice) e… Olaria! O time anil, que contava com o zagueiro Miguel e os meias Afonsinho e Roberto Pinto, fez sua melhor campanha na história da competição. E o nosso rival daquele 29 de junho? O Vasco terminou em oitavo, na lanterna do turno final.

Foi nesse clima de “salve-se quem puder” que Fla e Vasco entraram em campo naquela tarde-noite, diante de apenas 18.603 espectadores. Nei abriu o placar para o Fla na metade do primeiro tempo, e Rodrigues empatou pro Vasco pouco antes do intervalo. Na etapa final, Fio nos deu a vitória em cima do laço. O rubro-negro seguiu com chances na mini-competição, e mandou um bye bye, so long, farewell pro cruzmaltino.

No primeiro Brasileirão, que começaria dali a dez dias, o Galinho de Quintino disputou 15 das 19 partidas da equipe, todas como titular, e marcou dois gols, ambos no Nordeste (contra o Bahia – seu primeiro com a camisa do Fla – e contra o Santa Cruz). Mas como a fase era horrorosa e a bagunça imperava (além da ponta-direita, Zico foi testado em todas as posições do ataque), o time não conseguiu se classificar entre os 12 que seguiriam para a etapa seguinte da competição, e acabou na 13ª colocação.

* * * * *

No ano seguinte, o garoto jogou poucas vezes. O novo técnico do Fla, Zagalo, decidiu que Zico retornaria ao time juvenil (com a qual acabou campeão carioca). Só em 1974, liderando uma jovem equipe treinada pelo ex-zagueiro do clube Joubert, é que o Galinho se firmou definitivamente como craque. A boa campanha rubro-negra no Brasileiro daquele ano, a Bola de Ouro da revista Placar e o título do Campeonato Carioca, em dezembro, atestavam que a camisa 10 já lhe vestia muito bem. E o resto, como vocês sabem, é história. E que história.

* * * * *

Ficha do jogo de estreia de Zico:

Flamengo 2 x 1 Vasco
Local: Maracanã (preliminar de Botafogo x Fluminense)
Juiz: Aírton Vieira de Morais
Gols: Nei 20, Rodrigues 44 do 1º tempo; Fio 45 do 2º tempo.
Flamengo: Ubirajara; Murilo, Washington (Onça), Fred e Tinteiro; Liminha e Tales (Chiquinho); Zico, Nei, Fio e Rodrigues Neto. Técnico: Fleitas Solich.
Vasco: Andrada; Fidélis, Moisés, Renê e Batista; Gaúcho (Benetti) e Pastoril; Jaílson (Valfrido), Ferretti, Dé e Rodrigues. Técnico: Paulo Amaral.

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