Abril de 1983. Um campeão se debate em crises. Depois de chegar ao topo, a conquistar todos os títulos possíveis e em sequência num intervalo de 14 meses, o Flamengo parece viver o outro lado da moeda. A má fase vem desde a eliminação da Libertadores, com a derrota para o Peñarol em pleno Maracanã, em novembro do ano anterior. Em dezembro, novas perdas: a do título carioca para o Vasco e a do supervisor Domingo Bosco – responsável por aparar arestas do elenco com a diretoria e entre eles mesmos, além de fazer o papel de motivador e de “relações públicas” do time – vitimado por uma trombose cerebral, oriunda de complicações cardíacas.
Sem Bosco, os atritos aparecem: Tita e Nunes brigam com o técnico Paulo César Carpegiani e deixam o clube, emprestados ao Grêmio e ao Botafogo, respectivamente. Antes, o treinador já havia se desentendido com o preparador físico José Roberto Francalacci, há 12 anos no clube, e que acabou demitido. Caminhando ele próprio no fio da navalha, apesar do contrato recém-renovado, Carpegiani não consegue fazer o time render naquele começo de Taça de Ouro, o Brasileiro de 1983. Cai após 12 partidas.
Entra Carlinhos, futuro multicampeão na Gávea, mas que não livra o Fla de uma campanha desastrosa na Bolívia pela Libertadores (empate em 0 a 0 com o Blooming e derrota por 3 a 1 para o Bolívar), e o time volta ao Rio praticamente eliminado. Carlinhos cai. Entra o auxiliar Cléber Camerino, que treina a equipe apenas no empate sem gols com o Guarani em Campinas. “O grande time do Flamengo acabou”, ri nas entrelinhas e esfrega as mãos boa parte da imprensa, em especial a paulista.
Em especial a paulista porque os principais favoritos ao título brasileiro vêm de São Paulo. Desde 1978, um time do estado não conquista a taça, e acredita-se que chegou a hora de acabar com o jejum. O São Paulo de Careca entra na terceira fase invicto, com a melhor defesa e um dos melhores ataques (embora ninguém lembre que ele ainda não enfrentou nenhum dos grandes do país). O Palmeiras investiu pesado no começo do ano, tirou Batista do Grêmio, tinha um técnico (Rubens Minelli) frequentemente cotado para a Seleção e já havia derrotado o Flamengo na fase anterior, 3 a 1 no Morumbi. O Santos tem Serginho Chulapa, Paulo Isidoro e Pita, num time considerado seu melhor desde a Era Pelé. Batera com autoridade o Peñarol (então tido como “carrasco dos brasileiros”) dentro do Uruguai num torneio no começo do ano. E há o Corinthians, campeão estadual, de Sócrates, Wladimir e Casagrande.
Entre os grandes cariocas, Fluminense e Botafogo ficaram pelo caminho na segunda fase. O Vasco, irregular, classificara-se empatando com o Bahia no Maracanã graças a um pênalti polêmico. Mas o mais cotado é – acredite – o America, que tem um time arrumado, de bom toque de bola, treinado por Edu Antunes, irmão de Zico, além dos gols de Luisinho Lemos.
É nesse contexto que o Flamengo anuncia seu novo técnico: Carlos Alberto Torres, o Capitão do Tri da Seleção Brasileira no México em 1970. De carreira nos gramados recém-encerrada, ele tem na Gávea sua primeira oportunidade no comando de uma equipe. “Meu pai entrou numa fria”, chegou a dizer seu filho, o futuro zagueiro Alexandre Torres.
Mas Carlos Alberto não liga. Inspirado na experiência da Democracia em vigor no Corinthians, rival naquele 17 de abril no Maracanã, anuncia o fim das concentrações. Os jogadores se apresentarão apenas no estádio, horas antes da partida. Anuncia também que não há grandes invenções táticas. Pede apenas que os garotos Élder e Júlio César, promovidos da base, corram e combatam para que Zico e Adílio tenham toda a liberdade para criar as jogadas.
O Corinthians entra em campo com quatro desfalques: Casagrande, Biro-Biro, o atacante Ataliba e o volante Paulinho. O Fla não fica muito atrás: além das perdas de antes do início do torneio, não tem Andrade e Lico, que operam o joelho e ficam de fora até o fim do Brasileiro, e o ponta Robertinho, que cumpre suspensão, após ter sido expulso contra o Guarani.
O jogo começa bem disputado e, aos 15 minutos, o Flamengo chega às redes pela primeira vez, mas o lance é invalidado. Após cobrança de escanteio de Zico, Mozer sobe apoiando-se em Vidotti e cabeceia para o meio. Adílio pega a sobra e marca, mas antes mesmo do chute, o árbitro já apitara a falta do camisa 4 rubro-negro, corretamente.
O Corinthians começa a gostar do jogo por volta dos 23 minutos. Também após um escanteio, batido por Paulo Egídio, Sócrates desvia de Raul pelo alto, mas Júnior salva, também de cabeça, quase em cima da linha. Cinco minutos depois, Mozer comete falta em Vidotti perto da área. Zenon cobra e a bola explode no travessão.
Mas para o azar do alvinegro paulistano, a resposta do Flamengo é inclemente. Empurrado pela torcida, o time rubro-negro vai à frente. Aos 38, Leandro recebe de Vítor na ponta direita, cruza, a bola bate no cotovelo de Wladimir e volta para Leandro, que joga na área novamente, dessa vez de canhota e rasteiro. Júlio César levanta meio com o calcanhar e a bola encontra Zico, que cabeceia tirando de Leão. Fla 1 a 0. Está aberta a contagem.
Antes do fim do primeiro tempo tem mais. Adílio tabela com Mozer e é derrubado por Daniel González que ainda corta o lance com o braço, um pouco à frente da risca da área. O beque uruguaio reclama sem razão, mas a arbitragem confirma a falta… só que bem mais para trás do lugar onde realmente ocorreu. Mas para quem tem Zico, não há problema. Leão arma a barreira e espera o chute colocado, no ângulo, mas o Galinho surpreende e bate rasteiro, lá no canto oposto ao arqueiro de camisa e meião zebrados.
Na volta do intervalo, o Flamengo já sai matando. Aos sete, Zico vê Júnior invadindo pelo meio. O Capacete toca de cabeça para Adílio, que passa pelo alto a Élder, que mata no peito e entrega a Baltazar na área. O centroavante se complica e perde o ângulo para finalizar. Porém, vai à linha de fundo, ginga na frente do zagueiro Mauro e cruza para Adílio, livre, cabecear certeiro.
Descoordenado, entregue, o Corinthians assiste ao passeio do Flamengo. Zico recebe de Gilmar e acha Adílio, que entra na área fazendo fila, dribla Leão, mas perde o ângulo e passa a Vítor. O volante chuta prensado por Wladimir, e a bola vai bem por cima do gol. Furioso com a chance perdida por preciosismo, o Galinho gesticula, enquanto corre para bater o escanteio. A bola viaja até a cabeça de Mozer, que sobe mais que a defesa. Leão só olha. Se não vai com enfeite, vai com simplicidade. 4 a 0.
A defesa do Corinthians se utiliza da estratégia da linha de impedimento para tentar parar o ataque rubro-negro. E funciona em alguns momentos. Mas não funciona quando Zico recebe de Vítor na intermediária e, de primeira, lança Élder livre, num buraco pelo meio da defesa paulista. O garoto dribla Leão na meia-lua e toca para o gol vazio. Já não é goleada. É massacre. 5 a 0.
Inflamada, a torcida do Fla presente ao Maracanã não se contém: canta “Mengo! Mengo!”, e a festa não termina nem mesmo quando Sócrates recebe de Alfinete pela direita e bate cruzado para descontar um minuto depois. Mas uma pessoa tem o poder de irritar a massa rubro-negra: o árbitro gaúcho Roque José Gallas.
Júnior lança Gilmar na entrada da área, a zaga corta e a bola volta para o mesmo Capacete. Ele ganha a disputa com Wagner, dá um drible da vaca em Daniel González, passa por um desesperado Leão e só empurra para o gol vazio. O árbitro anula.
Depois Élder recebe na ponta esquerda e cruza para Baltazar subir no terceiro andar e cabecear da linha de fundo para a pequena área, onde Zico está sozinho e atrás da linha da bola. O Galinho só escora e comemora. O bandeira corre para o meio do campo. Mas o árbitro anula.
Ninguém entendeu. Na crônica da partida, os jornais divergem ao tentar encontrar razões para a anulação dos dois tentos, mas são unânimes em criticar o árbitro. Mesmo a Folha de São Paulo (clique na foto acima para ampliar), analisando a débacle corintiana no Maracanã, não poupa Roque José Gallas pelos gols erroneamente invalidados. Ficou até feio.
Mas nem mesmo o árbitro conseguiu estragar a festa rubro-negra que enlouquece o Maracanã e põe o time de novo no centro das atenções. O Fla embalou de vez. Quem há de segurar a Democracia Rubro-Negra?
Ah, e os favoritos paulistas? Naquela mesma tarde de 17 de abril em que o Corinthians levou um baile no Maracanã (mais tarde, morreria abraçado com outro paulista, o Guarani, ainda na terceira fase), o São Paulo foi a Porto Alegre e apanhou do Grêmio pelos mesmos 5 a 1. O Tricolor paulista até avançaria, mas cairia nas quartas-de-final diante do Atlético-PR (que eliminara o America, o “mais cotado” carioca). Enquanto isso, no Recife, o Náutico fazia 3 a 0 no Palmeiras, outro que parou naquela terceira fase. Só o Santos venceu: 1 a 0 no Vasco. E só o Santos chegaria longe. Perderia a final por categóricos 3 a 0 para o “acabado” Flamengo.
FICHA TÉCNICA:
FLAMENGO 5 X 1 CORINTHIANS
Maracanã – 17 de abril de 1983 – Campeonato Brasileiro – terceira fase
Árbitro: Roque José Gallas (RS)
Público: 91.120 pagantes / Renda: Cr$ 47.491.200,00
Cartões amarelos: Raul, Mozer e Élder (Flamengo); Wagner, Paulo Egídio e Vidotti (Corinthians).
Gols: Zico 39 (1-0) e 45 (2-0) do primeiro tempo; Adílio 7 (3-0), Mozer 30 (4-0), Élder 33 (5-0) e Sócrates 34 (5-1) do segundo tempo.
FLAMENGO: 1. Raul; 2. Leandro (15. Adalberto), 3. Marinho, 4. Mozer e 5. Júnior; 6. Vítor, 11. Élder e 10. Zico; 7. Júlio César (14. Gilmar), 9. Baltazar e 8. Adílio. Técnico: Carlos Alberto Torres.
CORINTHIANS: 1. Leão; 2. Alfinete, 3. Mauro, 6. Daniel González e 4. Wladimir; 5. Wágner, 10. Zenon e 8. Sócrates; 7. Eduardo, 9. Vidotti e 11. Paulo Egídio. Técnico: Zé Maria.