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Existiu Perácio, o craque, ídolo e artilheiro. Existiu Perácio, o personagem de anedotas. E existiu Perácio, pracinha brasileiro que serviu na Segunda Guerra Mundial. Todos eles, no entanto, foram um só, José Perácio, mineiro de Nova Lima, nascido há exatos 100 anos, em 2 de novembro de 1917. O atacante que aportou desacreditado no Flamengo e, homem simplório e ingênuo, fez-se ídolo do povo rubro-negro e tricampeão carioca na Gávea em 1942, 43 e 44 – com participação especialmente decisiva no segundo dos três – foi condecorado também como herói por outra nação, a brasileira, após ser convocado para integrar a Força Expedicionária Brasileira na Itália, em 1944. É um nome singular na história do Mais Querido.
Perácio, o craque, foi revelado pelo alvirrubro Villa Nova de sua cidade, clube que fazia frente aos grandes de Belo Horizonte. Era meia-esquerda, um dos cinco integrantes da linha ofensiva do velho esquema 2-3-5, ou “pirâmide”. Ou ainda ponta-de-lança, de acordo com a nomenclatura instituída após a adaptação do sistema WM inglês no Brasil por Flávio Costa, a chamada “diagonal”. Fosse qual fosse o nome da posição, Perácio era um portento no ataque, um verdadeiro tanque. Imparável nas arrancadas, arrastando marcadores, e culminando quase sempre com um chute fortíssimo ou uma cabeçada certeira.
Perácio, o personagem, era homem feito com ingenuidade de menino. O que trocava as palavras (“fui ao dentista para ele distrair meu dente”, em vez de “extrair”). O contador de histórias fantasiosas, o simplório, o brincalhão, o naïve. Eram tantos os casos que mais pareciam piadas envolvendo seu jeito de ver o mundo que Mário Filho, cronista imortal do nosso futebol, separou um capítulo inteiro de seu livro Histórias do Flamengo para registrar dezenas delas, intitulado “Perácio através das anedotas”.
O interlocutor costuma variar – às vezes Leônidas, às vezes Martim, às vezes Perrota – mas a história é a mesma, e popularíssima. Perácio dava carona a um deles em seu Packard quando parou num posto de gasolina para reabastecer. De pronto, acendeu um cigarro e jogou fora o fósforo, que caiu bem perto da mangueira de combustível. Ao ver o gesto, o outro passageiro se desesperou: “Mas como você faz uma coisa dessas, Perácio?!”. Ao que o atacante respondeu: “Ué, não sabia que você era supersticioso!”.
Corria o primeiro semestre do ano de 1937 quando o Villa Nova andou pelo Rio de Janeiro, então capital federal, excursionando e exibindo seus craques pelos campos cariocas. Muitos deles ainda remanescentes do incrível tetracampeonato mineiro obtido pelo clube entre 1932 e 1935. Um deles era Perácio, sem nem 20 anos de idade completos e já titular desde os 17, chamando atenção o suficiente para merecer destaque na nota do Jornal dos Sports que registrou a iminência da vinda do Alvirrubro.
Perácio já era velho conhecido não só dos clubes cariocas como também dos paulistas, já que ambos jogavam regularmente contra o Villa Nova por essa época. O atacante esteve perto de se transferir para o Palestra Itália de São Paulo (atual Palmeiras), junto com o médio e amigo Zezé Procópio, numa movimentação conturbada que ganhou ares de escândalo por deserção. O Fluminense também sondou sua contratação. Mas naquele ano de 1937, ele acabaria seguindo para o Botafogo, para onde já tinha ido Zezé. O clube se impressionara com a atuação do jogador ao ser batido pelo Villa Nova por 3 a 2 num amistoso jogado no campo do São Cristóvão, em Figueira de Melo.
Pelo clube de General Severiano, Perácio atuaria entre 1937 e 1940. Chegou com o peso de craque mais caro do Brasil, comprado por 30 contos de réis. Formou com o ponta Patesko uma “ala esquerda” que chegaria junta à Seleção, na Copa do Mundo de 1938, na França. Naquele Mundial, o meia-esquerda atuaria em quatro dos cinco jogos do Brasil e marcaria três gols (dois contra a Polônia e um contra a Suécia), terminando como vice-artilheiro da Seleção, ao lado do tricolor Romeu Pelicciari, ainda que bem distantes dos sete tentos do rubro-negro Leônidas da Silva, goleador máximo da competição.
Na Copa de 1938, a delegação brasileira ficou hospedada num hotelzinho em Saint Germain, perto de Paris, achado pelo dirigente Irineu Chaves. Ao acordar, no dia seguinte à chegada, Perácio sentiu fome e apanhou o telefone. Do outro lado da linha, a recepção do hotel. Perácio então fez o pedido – em português, naturalmente: “Ô, rapaz, mande cá em cima uma média com pão e manteiga”. O recepcionista, atônito, apenas dizia “je ne comprend pas, je ne comprend pas…”. Perácio bateu o telefone, virou-se para Martim, seu companheiro de quarto, e, indignado, protestou: “Veja só pra que tipo de hotel nos levaram! A esta hora do dia e ainda não compraram pão!”.
Nos quatro anos em que jogou pelo Botafogo, no entanto, Perácio não conseguiu ser campeão. O mais perto que os alvinegros chegaram foi um vice em 1939, três pontos atrás do Flamengo. Tiveram o ataque mais positivo (com o meia-esquerda balançando as redes 13 vezes), mas não evitaram o título rubro-negro com uma rodada de antecipação. Ao fim da temporada seguinte, após mais um dos muitos desentendimentos que teve com o presidente botafoguense João Lyra Filho, Perácio foi afastado do elenco. O Flamengo se interessou, mas Lyra Filho pediu alto, além de vetar o empréstimo temporário do jogador aos rubro-negros, que excursionariam pela Argentina.
No fim de maio de 1941, Perácio foi enfim negociado – ou melhor, exilado. Após longas negociações, teve acertada sua venda ao Canto do Rio. O clube niteroiense recebera naquele ano a licença especial da Liga de Football do Rio de Janeiro (logo transformada em Federação Metropolitana de Futebol) para disputar o Campeonato Carioca, inaugurava o estádio de Caio Martins e pretendia montar um time que justificasse sua presença no torneio. Perácio chegou com o certame em andamento e se machucou logo na estreia, contra o São Cristóvão. E não fez uma temporada tão brilhante quanto as que costumava fazer e que o levaram à Seleção.
Gordo, fora de forma após o longo período de inatividade entre o afastamento do Botafogo e a chegada ao Canto do Rio, desmotivado, sentindo-se chutado do clube no qual era o responsável por alegrar o ambiente, Perácio se entristeceu. Sentiu apenas uma ponta de revanche na última rodada do returno, em 31 de agosto, quando o Canto do Rio, já sem chances de se classificar para o terceiro e quarto turnos, recebeu o Botafogo de Heleno de Freitas e de seus velhos companheiros Zezé Procópio e Patesko em Caio Martins. O meia-esquerda abriu o placar na goleada cantorriense por 6 a 3.
Findado o campeonato, o Canto do Rio cedeu alguns de seus jogadores a outros clubes para disputarem amistosos. Perácio defendeu primeiro o America diante do Palestra Itália paulista. E em seguida, no dia 12 de dezembro de 1941, vestiria pela primeira vez a camisa do Flamengo, no estádio do time rubro, em Campos Salles, enfrentando o Sport, campeão pernambucano. Mesmo desfalcado de vários titulares, que defendiam naquele momento a seleção carioca no Campeonato Brasileiro, e contando com atletas emprestados em caráter experimental, o Fla não teve dificuldade para vencer por 3 a 1.
O Canto do Rio não cedeu Perácio para uma excursão a São Paulo que o Fla pretendia fazer. Mas seus dirigentes e os do Rubro-Negro acertariam a transferência do jogador para a Gávea para a próxima temporada. Só faziam questão de que o jogador só deixasse o clube após o dia 28 de dezembro, quando as duas equipes se enfrentariam pelo Torneio Extra, competição sem grandes atrativos, a qual o Fla disputava com time misto, sem vários de seus astros. Mas Perácio se despediria honrosamente do clube niteroiense ao mesmo tempo em que apresentava um belo cartão de visitas à torcida rubro-negra: o Canto do Rio venceu por 3 a 0, e ele marcou o gol que fechou a contagem.
A temporada de 1941 começara brilhante para o Flamengo, mas terminara amarga. Nos dois primeiros turnos, a equipe dirigida por Flávio Costa voou: venceu 15 de seus 18 jogos, somou 34 pontos em 38 possíveis e terminou na liderança, quatro pontos à frente do Fluminense, segundo colocado. Porém, ao fim do terceiro turno, disputado por apenas seis equipes, a vantagem na ponta já havia desaparecido. Na última rodada do quarto turno o Fluminense já chegava com vantagem de empate para o Fla-Flu da Gávea. Abriu 2 a 0, mas o Fla chegou à igualdade na raça. Porém, no jogo que ficaria conhecido como o das “bolas na Lagoa” (para fazer cera após a reação rubro-negra, os tricolores chutavam a bola para a Lagoa Rodrigo de Freitas, que então margeava o estádio do Fla), o título acabaria seguindo para as Laranjeiras.
A queda de rendimento do time rubro-negro na reta final do torneio era explicada em grande parte pelos problemas na meia-esquerda. O baiano Nandinho, dono da posição, não convencia. Flávio Costa chegou a deslocar o médio Jayme de Almeida e o ponta-esquerda Vevé para a função, mas nenhum dos dois se sentiu à vontade. Num último recurso, o clube trouxe da Argentina o meia Emilio Reuben, ex-Vélez Sarsfield, Independiente e Lanús. Mas ele não teve tempo de se adaptar ao estilo de jogo, e o jeito foi lamentar a perda de um título que pareceu iminente. Para tentar mais uma vez solucionar o problema é que os dirigentes apostaram suas fichas em Perácio.
Flávio Costa, ao ver o jogador chegar à Gávea com alguns quilos a mais, prontamente o colocou para perder peso. Perácio treinava todos os dias usando duas camisas de lã. Também havia deixado de lado definitivamente a vida boêmia pela qual se notabilizou ao lado dos colegas de Botafogo. Seu passatempo agora era pescar na Lagoa, ali na rampa do Flamengo, em frente ao estádio da Gávea. Almoçava numa pensão vizinha e frequentava apenas as redondezas, recolhendo-se cedo para ser o primeiro a aparecer nos treinos.
Foi incluído no time que iria a São Paulo disputar a Quinela de Ouro, torneio pentagonal que também contou com o Fluminense e os três grandes da capital paulista. O Fla voltou invicto, mas sem a taça – teve de se contentar com um segundo posto. E Perácio marcou um gol no empate em 2 a 2 com o Palmeiras. Voltaria a marcar na estreia pelo Campeonato Carioca, numa goleada sobre seu ex-clube, o Canto do Rio, por 6 a 0 nas Laranjeiras (disputava-se o chamado “turno neutro” do campeonato).
Mas embora o nível das atuações não tivesse piorado, os rubro-negros não seguiram bem naquela etapa, oscilando e perdendo muitos pontos. Terminaram o turno em terceiro, empatado com o Madureira, mas cinco pontos atrás do vice-líder Botafogo e sete atrás do líder Fluminense. Perácio saiu do time, retornou e depois foi para a reserva novamente, voltando Nandinho a ocupar a meia-esquerda. No returno as coisas voltaram a dar certo, e o Flamengo engrenou uma sequência de triunfos.
Às vésperas do Fla-Flu de 9 de agosto, pela última rodada do returno na Gávea, o centroavante Pirillo se lesionou. Precisando de um substituto de última hora, Flávio Costa trouxe de volta Perácio. Deslocado para uma posição que não era a dele, mas sem por isso deixar de se esforçar, o atacante acabou premiado: marcou o gol da vitória, completando numa cabeçada certeira um cruzamento de Vevé. Sete pontos atrás dos tricolores no turno, o Flamengo agora ultrapassava os rivais graças a aquela vitória, entrando no terceiro e último turno um ponto à frente.
O alvo a ser perseguido agora era o Botafogo, novo líder. E Perácio continuou contribuindo enormemente. Depois de ficar de fora da estreia no terceiro turno, contra o Canto do Rio, ele voltaria justamente no confronto direto entre os ponteiros, agora em sua verdadeira posição. E com uma atuação extraordinária, marcou dois gols ainda no primeiro tempo, com Pirillo e Jayme completando a goleada categórica por 4 a 0, placar tão desconcertante que irritou o ídolo alvinegro Heleno de Freitas, expulso perto do fim do jogo, com a contagem já definida. O Fla agora empatava na liderança. A briga estava em aberto.
A vitória sensacional sobre o Botafogo na Gávea naquela tarde de 23 de agosto deixou muitos torcedores eufóricos, inclusive alguns sócios rubro-negros. Homens endinheirados, eles fizeram questão de mostrar sua alegria com o resultado abrindo a carteira para homenagear Perácio, o artífice da goleada. Depois do jogo, o atacante mineiro entrou no vestiário com uma nota de 500 mil-réis pendurada uma orelha e outra de 200 mil-réis na outra, bem enroladinhas. E comentou, entre gargalhadas, com os companheiros de time: “Olhem os brincos que me deram!”.
Na partida seguinte, contra o Vasco em São Januário, o Flamengo perdia por 1 a 0 até a dez minutos do fim. Foi resgatado por Perácio, autor do gol de empate que incendiou o time: aos 42, o Fla viraria o placar com gol de Pirillo, seguindo na briga pelo título. O atacante mineiro ainda marcaria nos três jogos seguintes, três vitórias: um contra o Madureira (4 a 1), outro sobre o America (incríveis 8 a 5) e dois contra o Bonsucesso (7 a 0). Até que uma crise de apendicite o tirou do campeonato. Nandinho voltou ao onze titular nas rodadas finais, e os rubro-negros se sagraram campeões ao empatarem com o Fluminense nas Laranjeiras em 1 a 1 – uma espécie de troco da decisão do ano anterior.
Perácio não voltaria a defender a Seleção Brasileira como jogador do Flamengo. Mas encontraria uma outra forma de servir ao Brasil. Entrou em cena Perácio, o pracinha. Convocado para se alistar na Força Expedicionária Brasileira que seguiria para a Itália lutar na Segunda Guerra Mundial, seguiu para o Recife no começo de 1943, onde recebeu treinamento militar e participou de exercícios que simulavam conflito.
Na volta ao Rio, Perácio conversava com a filha de um cartola rubro-negro durante um jantar. Contava suas experiências no Exército, onde vira pela primeira vez um submarino. “A senhorita já deve ter visto um no cinema. Eu achava que era coisa só de filme, mas lá eu vi um submarino de carne e osso”. A mocinha estranhou, mas manteve o papo: “De carne e osso? Que interessante!”. “Eu entrei no submarino, e ele mergulhou”, prosseguiu o jogador. “E o que aconteceu?”, retrucou a moça. “Ah, quase que eu não estou aqui pra contar a história. Pensei que morreria asquificiado!”.
A jovem enrubesceu, constrangida. Mas logo se acostumou ao jeito de Perácio. Ao fim da conversa, elogiou o atacante: “Eu fazia outra ideia dos jogadores de futebol. Espero que essa guerra acabe logo e você volte para o nosso Flamengo. Encantada!”. Perácio se curvou, sacudiu os braços e, entre o entusiasmado e o comovido, agradeceu ao seu estilo: “A senhorita é uma príncipa!”.
O atacante ficou lá no Recife até o início de julho, quando obteve transferência para o Rio. Ficou de fora de todos os jogos do Flamengo no primeiro semestre, jogando em seu lugar Nandinho, Tião, o ex-aspirante Vicente ou o argentino Ricardo Alarcón, que o Flamengo trouxera do Boca Juniors para substituí-lo. Nenhum esquentou lugar. A sorte é que Perácio voltou com fome de bola.
O Flamengo tinha em Pirillo seu goleador atestado e dado fé, o legítimo sucessor de Leônidas da Silva. Em 1941, ano de sua chegada, o gaúcho marcara impressionantes 39 vezes no Campeonato Carioca, recorde até hoje. No ano seguinte, o número de gols (e de jogos) diminuiu, mas com seus 22 tentos foi novamente o artilheiro do time na campanha do título. E não é que em 1943, mesmo estreando só na quinta rodada, Perácio fez ainda mais gols que Pirillo?
A começar pela partida de reestreia, Fla-Flu nas Laranjeiras. Jogo muito disputado no primeiro tempo, como manda a tradição do clássico, mas sem gols. Até que Perácio abriu o placar aos três minutos da etapa final, aproveitando um cochilo da zaga tricolor e chutando fraco, mas sem chances para o goleiro Gijo. O Flamengo completaria o 2 a 0 mais tarde com Zizinho, recuperando-se da derrota para o America na Gávea (2 a 1) da rodada anterior. O próximo desafio era medir forças com o novo líder isolado do campeonato na abertura daquela sexta rodada. Sabem quem? O São Cristóvão.
Perácio não tomou conhecimento e marcou dois gols na impiedosa vitória rubro-negra por 4 a 0 na Gávea. Com seus já famosos “rushes” (arrancadas), foi um tormento para a defesa cadete. Seu retorno, comentava a imprensa, fazia inclusive crescer de novo o futebol de Pirillo, já que agora as retaguardas teriam dois goleadores para ficar de olho. E, com efeito, Perácio seguiu balançando as redes. Abriu a contagem nos 5 a 1 diante do Bonsucesso. Salvou um ponto no complicado empate com o Bangu na Rua Ferrer (2 a 2). Também inaugurou o marcador na revanche contra o America em Campos Sales (Fla 3 a 1).
Veio o Fla-Flu do returno, na Gávea, em 12 de setembro, com o Flamengo um ponto à frente na liderança do campeonato. Mas os tricolores é que abriram o placar, com o argentino Pablo Invernizzi, logo aos sete minutos. Aos 12, Perácio empatou aproveitando centro do ponta-direita Jacy, e minutos depois ainda faria a trave balançar com um chute fortíssimo. Mas perto do fim do primeiro tempo, Carreiro voltou a colocar o Flu na frente. Na etapa final, desde o início os tricolores já faziam cera, recorrendo ao expediente de chutar a bola para o mais longe que desse – se possível na Lagoa Rodrigo de Freitas, como em 1941.
O tempo passava, e o Flamengo seguia pressionando intensamente, apoiado pela torcida, mas um tanto nervoso e sem sorte nas finalizações. Até que, aos 45, o médio tricolor Afonsinho cortou para escanteio um perigoso ataque rubro-negro pela ponta esquerda. Vevé cobrou o corner fechado, com veneno, como era seu costume, e acertou o travessão. O goleiro Gijo deu um tapa e a bola caiu aos pés de Perácio, que entrou como um touro e fuzilou para empatar o jogo, salvando ainda a liderança do Fla.
“É difícil descrever o delírio que se apossou da torcida do Flamengo. A bola mal chegou ao centro do campo, Pereira Peixoto apitou, o match acabara. A multidão continuava a gritar goal, a pular, tudo que era flamengo enlouquecera”, escreveu Mario Filho em sua crônica do jogo para o Jornal dos Sports. “Desde 1941 que o Flamengo esperava por um gol assim”, lembrou Ricardo Serran, outro destacado jornalista esportivo da época, em sua análise para o Globo Sportivo.
Dali a duas semanas, Perácio marcaria novamente em outra goleada de 5 a 1 sobre o Bonsucesso, agora nas Laranjeiras, mantendo os rubro-negros na liderança, de novo ao lado do Fluminense. A duas rodadas do fim do certame, os dois clubes tinham 24 pontos, dois a mais que o Vasco, que vinha numa ascendente, com cinco vitórias consecutivas. Com 21 pontos, o São Cristóvão ainda alimentava esperanças, mas dependia de resultados pouco prováveis. No dia 3 de outubro, os quatro primeiros se enfrentavam: Flamengo e Vasco em General Severiano, São Cristóvão e Fluminense em São Januário.
O Vasco crescia porque já contava com a forte base do time que dominaria o futebol carioca a partir da metade daquela década de 40, o chamado “Expresso da Vitória”. Sete jogadores que entraram em campo naquele 3 de outubro no estádio botafoguense estariam no elenco cruzmaltino campeão dali a dois anos, incluindo o ponta-de-lança Ademir Menezes. Mas o senhor daquele jogo foi o Flamengo de Perácio.
O time abriu o placar com Vevé aos 39 da primeira etapa. E na segunda, veio o baile: em dois petardos de longa distância, aos três e aos quatro minutos, o atacante mineiro batia o goleiro vascaíno Oncinha e ampliava para 3 a 0. Pirillo também anotaria dois, aos 20 e 22. Dois minutos depois, o ponta Chico descontou para o Vasco, mas logo em seguida Zizinho fez o sexto. Já a oito minutos do fim, Lelé tornou a diminuir para os cruzmaltinos, sem, no entanto, deixar de evitar a goleada implacável por 6 a 2. A maior da história do Flamengo sobre o rival em todos os tempos.
A vitória rubro-negra acabara com as chances de título do São Cristóvão, mas o clube cadete contribuiu enormemente para a conquista rubro-negra: venceu o Fluminense por 3 a 1 naquela mesma tarde, deixando os tricolores dois pontos atrás do Flamengo antes da última rodada. O Fla receberia o Bangu na Gávea em 10 de outubro. O Flu jogaria nas Laranjeiras contra o Bonsucesso precisando vencer e torcer por um pouco provável triunfo alvirrubro no estádio do rival.
E o triunfo do Bangu ficaria ainda menos provável quando Perácio abriu o placar com menos de dois minutos de jogo, ampliando ainda aos 23. Pirillo ampliou cobrando pênalti aos 37, fechando o placar do primeiro tempo em 3 a 0. Na volta, Perácio disparou mais um míssil que se aninhou nas redes do arqueiro banguense João Alberto, e outra vez Pirillo completou a contagem na última volta do ponteiro. Em campo, não houve espaço para zebras. Mas sim para outro mamífero quadrúpede. Ídolo do povo, em meio às comemorações, Perácio foi agraciado por um torcedor rubro-negro com um cabrito.
“Foi rápido. Pereira Gomes apitou dando por findo o jogo. Uma multidão invadiu o campo. Os jogadores do Flamengo, exceto Perácio, conseguiram fugir dos abraços. Perácio ficou para receber o cabrito, para ser carregado em triunfo. O cabrito seguro, bem no alto, pelas duas mãos de Perácio, esperneou, botou a boca no mundo. Perácio nessa hora já não estava com os pés no chão, deitara-se nos ombros da torcida, que o arrastava para lá e para cá. A banda de música atacou o hino do Flamengo. Das arquibancadas de cimento desciam espirais de serpentina. O vento ajudava a espalhar confete por todos os cantos. A Gávea perdera a fisionomia de um campo de football, virara salão de festa. Carnaval em pleno mês de outubro”, escreveu Mario Filho no Jornal dos Sports.
Com os três gols marcados sobre o Bangu, Perácio chegou a 14 tentos em 13 partidas, sagrando-se o artilheiro da vitoriosa campanha do bicampeonato rubro-negro. No tri, em 1944, Perácio participaria de apenas cinco jogos (entre eles uma goleada de 4 a 1 sobre seu ex-clube, o Botafogo, nas Laranjeiras), marcando três vezes: um no empate em 2 a 2 com o São Cristóvão e dois numa goleada de 6 a 1 sobre o Bonsucesso. Depois da difícil vitória por 1 a 0 sobre o Madureira na Gávea, decidida com gol de Pirillo, o atacante mineiro teria de se juntar novamente à FEB, só que agora embarcando para a Itália.
Lá, não chegaria a figurar na frente de batalha. Cumpriu o período como motorista de um marechal, mas pôde acompanhar de perto a tomada de Monte Castelo, ponto histórico da participação brasileira no conflito, em fevereiro de 1945. E não ficou de todo longe da bola, pelo contrário: sendo um dos quase 20 futebolistas brasileiros convocados pela FEB, foi escalado num time dos Aliados que disputou uma taça entre equipes de soldados, e acabou campeão. Alinhou também numa seleção brasileira que bateu oficiais da força aérea britânica, perto do fim do conflito.
Mesmo assim, a guerra provocou nele muitos traumas psicológicos. Não queria embarcar, inventou problemas de saúde, tentou recorrer até ao ministro da Guerra, marechal Eurico Gaspar Dutra, para que fosse dispensado. Mas não conseguiu. Na Itália, viveu em tensão permanente. “Eu tinha pavor de pensar numa batalha a gente é obrigado a matar para não morrer. E, se fosse o caso, teria que fazer isso, porque numa guerra está em jogo a nação”, declarou anos depois em entrevista à revista Placar.
Retornaria ao time do Flamengo apenas em setembro daquele ano, sem conseguir impedir, no entanto, o título carioca do Vasco, pondo fim ao sonho do tetra rubro-negro. Mas continuou jogando um excelente futebol e anotando muitos gols. Seria o artilheiro da equipe na temporada de 1946, com 32 gols, e chegaria a marcar cinco vezes numa mesma partida em duas ocasiões, ambas válidas pelo Torneio Municipal: nos sonoros 12 a 1 no Bonsucesso, naquele ano, e em um maluco 8 a 5 sobre o Bangu em 1947.
O Flamengo, porém, já andava cada vez mais longe das glórias, com a geração do tri envelhecendo aos poucos, Zizinho fraturando a perna duas vezes, Pirillo indo embora para o Botafogo, o técnico Flávio Costa trocando a Gávea por São Januário. O ano de 1947 foi o último de Perácio no elenco rubro-negro. O clube chegou a trazer Jair Rosa Pinto do Vasco para seu lugar. Jair, craque que fosse (e era um mestre da bola, de fato), nunca conseguiu preencher no coração do torcedor a lacuna que Perácio deixara.
O atacante ainda ensaiaria um retorno, disputando um amistoso pelo Flamengo no Espírito Santo em setembro de 1951, mas logo se aposentaria em definitivo, aos 33 anos, após 122 jogos e 97 gols pelo rubro-negro. Após pendurar as chuteiras, viveu como pacato funcionário público até falecer em março de 1977, aos 59 anos. Herói de duas nações, foi sepultado com a bandeira rubro-negra.