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1949, 1950, 1951, 1952, 1953, 1954, 1955, Campeonato Carioca, Esquerdinha, Flávio Costa, Fleitas Solich, Madureira, Olaria
Embora não costume ser um dos jogadores mais incensados do elenco do segundo tri carioca do Flamengo, em 1953/54/55, Esquerdinha teve papel importante na solidificação daquele esquadrão. Jogador mais veterano e com mais tempo de clube daquele grupo, o ponta-esquerda atravessou incólume as glórias e as agruras rubro-negras na virada dos anos 1940 para os 1950, até chegar como capitão do time ao título que encerrou um jejum de nove anos – desde o tri anterior – e iniciou uma nova sequência de conquistas.
DE BELÉM A MADUREIRA, VIA ESTADOS UNIDOS
Foi por volta dos 11 anos de idade, nas peladas no campinho que havia nos fundos da sua casa na Travessa Blandina, em Oswaldo Cruz, subúrbio carioca, que o paraense William Kepler Santa Rosa ganhou o apelido pelo qual seria conhecido no futebol: Esquerdinha. Os gols e dribles com a perna canhota logo chamaram a atenção para o garoto, cuja vida até ali, meados dos anos 1930, havia sido agitada. Nascido em Belém em 1º de março de 1924, Esquerdinha já havia perdido o pai e até morado no exterior quando veio para o Rio.
Os dois fatos se deram nos turbulentos Estados Unidos dos anos 1920, tempos dos gangsters e da Lei Seca. Seu Raimundo, pai de William, tinha ido a Nova York tratar de assuntos da família e fazia uma refeição num bar quando morreu baleado durante um assalto ao estabelecimento. A tragédia fez com que sua mãe, Terezina, embarcasse com os filhos para a cidade de Perth Amboy, no estado vizinho de Nova Jersey, onde seus pais (avós maternos de Esquerdinha) residiam há algum tempo. Por lá, a família paraense ficou até 1930.
Em Perth Amboy, Dona Terezina conheceu outro brasileiro, casou-se novamente e decidiu voltar a Belém. Porém, ainda naquele ano de 1930 a família pegou um “ita” – famosa embarcação que fazia o transporte de passageiros subindo e descendo a costa brasileira – com destino ao Rio de Janeiro, então capital federal. A princípio foram morar em Santo Cristo, na zona portuária, mas logo se estabeleceram em definitivo em Oswaldo Cruz. Enquanto isso, o garoto William estudava no bairro vizinho de Madureira e depois Marechal Hermes.
Além do futebol, Esquerdinha desenvolveu outros talentos no Rio. Um deles era a fluência no idioma de seu homônimo William Shakespeare. O inglês que grudara em seus ouvidos ainda nos tempos de Perth Amboy foi aprendido por interesse próprio até adquirir fluência. Outro era o desenho técnico (sugerindo um elo com mais um homônimo: Johannes Kepler, astrônomo e matemático alemão do Século XVII), aprimorado no curso da Escola Profissional Visconde de Mauá, em Marechal Hermes, onde foi matriculado aos 13 anos.
O diploma de desenhista lhe valeria um emprego na fábrica da Standard Electric, em Vicente de Carvalho, outro bairro vizinho. E Esquerdinha, que aos 17 anos já se destacava no time da Escola Visconde de Mauá, passou a atuar regularmente pela equipe da fábrica aos sábados. No mesmo ano, 1941, ele foi levado ao Madureira e passou a defender o Tricolor Suburbano na categoria infantil, subindo logo aos juvenis e, mais tarde, aos aspirantes. Até que, em 1944, uma suspeita de “sopro no coração” pôs sua carreira em suspenso.
Esquerdinha ficou sob observação médica durante todo aquele ano e parte de 1945. Mas nem a longa ausência impediu sua rápida ascensão. Ao retornar, além de seguir no time de aspirantes, faria seus primeiros jogos pela equipe principal. Coincidentemente, sua estreia no Campeonato Carioca seria contra o Flamengo em Conselheiro Galvão, em 22 de julho. Ainda naquele primeiro turno da competição, ele atuaria em mais duas partidas. E já no ano seguinte, com a venda do antigo titular Murilinho, ele se tornaria no novo dono da posição.
O Madureira era, naquele tempo, um grande celeiro de craques do futebol carioca. Foram muitos os nomes que ganharam projeção no Tricolor Suburbano e saíram para os grandes da cidade entre o fim dos anos 1930 e a primeira metade da década de 1940. O trio de centro de ataque formado por Lelé, Isaías e Jair Rosa Pinto, apelidado “Os Três Patetas”, foi para o Vasco (Jair, mais tarde, esteve também no Flamengo). E o beque Norival e o ponta-direita Adílson logo defenderiam a dupla Fla-Flu, além de passarem pela Seleção Brasileira.
O time de 1947, dirigido pelo antigo atacante e ídolo do America Plácido Monsores, não era diferente. Além de Esquerdinha, nele figuravam o beque Arati, que logo sairia para o Botafogo, e o meia Didi, que brilharia vestindo as camisas de Fluminense, Botafogo e Seleção Brasileira. Naquele campeonato, em que o Madureira foi o melhor dos pequenos e terminou na sexta colocação, Esquerdinha foi titular absoluto no primeiro turno, mas atuou em apenas três dos dez jogos do segundo, sendo substituído por Adir nas demais partidas.
UM GOSTINHO FUGAZ DE FLAMENGO
Aquela seria, no entanto, sua última temporada em Conselheiro Galvão. Convidado para disputar um torneio quadrangular no Chile em janeiro de 1948, o Flamengo havia batido à porta do Madureira um mês antes para tentar contratar três jogadores para a excursão: o médio Hermínio e o centroavante Durval, além de Esquerdinha. As negociações se alongaram, e no fim, apenas Durval acabou negociado em definitivo. Quanto aos outros dois, o clube da Zona Norte aceitou apenas emprestá-los com data marcada para retornar.
Esquerdinha já havia sido levado para treinar na Gávea no início de 1946, quando ainda defendia o time de aspirantes do Madureira, sendo aprovado por Flávio Costa, então treinador rubro-negro. O clube suburbano, no entanto, resolveu se precaver contra a perda do jogador e tratou de fazê-lo assinar seu primeiro contrato profissional – o que, aliás, acabou obrigando o ponta a pedir demissão de seu emprego na Standard Electric, já que não conseguiria mais conciliar os jogos pelo time da firma no sábado e pelo clube no domingo.
Dirigido por José Ferreira Lemos, o “Juca da Praia” (homem ligado ao Botafogo, ex-jogador alvinegro e ex-árbitro), o Fla fez campanha oscilante no Chile: na estreia perdeu por 4 a 3 para a chamada Seleção Universitária do país, um combinado de jogadores da Universidad de Chile e da Universidad Católica. Em seguida empatou em 2 a 2 com o Magallanes – na época um dos maiores campeões chilenos – jogando com um a menos desde o primeiro tempo após a expulsão de Biguá. Por fim, venceu o Olimpia, campeão paraguaio, por 1 a 0.
Para Esquerdinha, as maiores lembranças daquela excursão foram a cusparada no rosto que levou de um chileno na primeira partida (com o capitão rubro-negro Jayme de Almeida refreando seu impulso de revidar); a solada que deu no violento lateral Barrera, do Magallanes, que entrara para rachar em alguns jogadores do Fla; e a reprimenda que levou de Juca da Praia após aquele gesto, com o treinador lembrando a Esquerdinha que ele “não estava em Madureira, e sim no Chile, um país estrangeiro”, temendo maiores represálias dos locais.
Na volta, porém, a esperada transferência em definitivo para o Flamengo não se concretizou. Os valores propostos pelos rubro-negros não alcançaram a pedida do Madureira, embora na época se comentasse que o desentendimento entre Esquerdinha e o técnico Juca também pesou no desfecho das conversas. Assim, de maneira surpreendente, quem acabou levando o ponta foi o pequeno Olaria, que só no ano anterior havia voltado a disputar o Carioca após uma década de ausência. E desembolsando cifras até inferiores às oferecidas pelo Fla.
O acerto entre os presidentes Ângelo Filpi, do Madureira, e Álvaro da Costa Mello, do Olaria, foi anunciado pela imprensa no dia 20 de fevereiro de 1948. E embora o clube da Leopoldina fizesse campanha bastante humilde, terminando na penúltima colocação (ironicamente só à frente do Tricolor Suburbano), Esquerdinha fez uma excelente temporada individualmente: anotando nada menos que 14 gols, mesmo número dos craques rubro-negros Zizinho e Jair Rosa Pinto, ele se sagrou, com folga, o goleador da equipe no campeonato.
O maior momento da campanha olariense, aliás, foi a vitória de 4 a 2 sobre o Flamengo na Rua Bariri na abertura do returno, em 3 de outubro. Naquele dia coube a Esquerdinha encerrar a contagem marcando aos 44 minutos do segundo tempo. O ponta repetia naquela ocasião o que fizera com certa regularidade nos tempos de Madureira: balançar as redes rubro-negras. Dos seis confrontos dos quais participou pelo Torneio Municipal e pelo Campeonato Carioca (os principais da época) entre 1945 e 1947, ele marcou em quatro – um gol em cada.
RUBRO-NEGRO EM DEFINITIVO
O hábito só fez aguçar ainda mais o interesse do Flamengo por Esquerdinha, e o ponta enfim se juntaria ao elenco rubro-negro em janeiro de 1949, contratado junto com o médio Válter Miraglia (nome que permaneceria ligado ao clube mesmo depois de pendurar as chuteiras) por Cr$ 200 mil. Coincidentemente, Esquerdinha chegava para o lugar de outro paraense, o lendário Vevé, cujo declínio físico e técnico já se fizera sentir na temporada 1948, em que o Fla teve de recorrer com frequência a improvisos na posição para cobrir sua ausência.
A situação de Vevé, aliás, era um retrato do próprio Flamengo naquele fim da década de 1940, enfrentando ano após ano o nítido e acentuado declínio – à exceção de Zizinho – do esquadrão do primeiro tricampeonato carioca em 1942/43/44, uma das equipes mais poderosas do país em seu tempo. E agora suportando uma prolongada entressafra, entre trocas frequentes de técnico e seguidos fracassos com reforços que não estavam à altura dos velhos ídolos ou até ótimos jogadores engolidos pelo contexto ruim, como Jair Rosa Pinto.
A passagem definitiva de Esquerdinha pelo Flamengo começaria em 6 de fevereiro de 1949, num amistoso contra a equipe mineira da Associação Atlética Passense, na cidade de Passos, vencido pelos rubro-negros por 4 a 1. O ponta encerrou a goleada a favor do time então dirigido por Togo Renan Soares, o Kanela, nome que faria história na Gávea, mas à frente de outro esporte, o basquete. Na ala esquerda do ataque rubro-negro, o ponta paraense teve como companheiro o próprio Jair Rosa Pinto, revelado pelo Madureira como ele.
A dupla atuaria junta por 15 partidas, até agosto daquele ano. Entre elas, duas vitórias marcantes do Flamengo sobre prestigiosas equipes europeias em São Januário: os históricos 3 a 1 diante do Arsenal no dia 29 de maio e os 2 a 1 sobre o Rapid Viena em 19 de junho, num confronto lembrado pelo anedótico incidente à beira do campo envolvendo Zizinho (que retornava de uma cirurgia no apêndice) e alguns torcedores vascaínos que o vaiavam. Nesta partida contra os austríacos, Esquerdinha sofreu o pênalti que resultou no gol da vitória do Fla.
Outro momento notável daquele ano de resto fraco (o Flamengo terminaria o Carioca em terceiro lugar, 11 pontos atrás do campeão Vasco) foi a excursão à Guatemala em outubro, já após as saídas de Jair (vendido ao Palmeiras) e do técnico Kanela. O Fla fez cinco jogos contra as seleções A, B e olímpica do país e venceu todas, marcando 19 gols e sofrendo seis. E, num gesto de admirável nobreza, chegou a jogar de graça uma das partidas, que teve renda revertida às vítimas de uma tempestade que deixara muitos desabrigados no país.
O gesto fez com que o Flamengo retornasse ao Brasil com o título simbólico de “campeão da Fidalguia e do Cavalheirismo”. Esquerdinha, por sua vez, sagrou-se o artilheiro da excursão com cinco gols, ao lado do meia Lêro, seu novo colega na ala esquerda do ataque. E após a frustrante campanha no Carioca, o time até que fechou bem a temporada, vencendo o sueco Malmö por 3 a 0 em amistoso nas Laranjeiras (com dois gols de Esquerdinha) e goleando o Corinthians por 6 a 2 em São Januário na precoce abertura do Torneio Rio-São Paulo de 1950.
Mas quem acreditava que essas vitórias serviriam de prenúncio para uma grande temporada em 1950 passou longe, muito longe de acertar. Foi um ano desastroso do começo ao fim, desde a campanha fraca no Torneio Rio-São Paulo até o desempenho simplesmente pavoroso no Carioca (o Fla terminou em sétimo, atrás até do Olaria, e perdendo nada menos que metade de seus 20 jogos), tendo ainda, no meio do caminho, a perda traumática e até estúpida de Zizinho, vendido ao Bangu pouco antes da Copa do Mundo disputada aqui.
Para Esquerdinha, entretanto, pelo menos um momento daquela temporada foi especial: entre o fim de março e o início de julho, o Flamengo empreendeu várias viagens ao Norte e ao Nordeste do país, incluindo sua primeira visita a Belém, terra natal do ponta, desde 1916. O Fla enfrentou os três grandes do estado (Paysandu, Tuna Luso e Remo) antes de seguir ao então território do Amapá e ao Amazonas e depois retornar ao Pará e jogar em Santarém contra o time local e mais uma vez em Belém contra um combinado Tuna-Remo.
Nem tudo foi tão maravilhoso como Esquerdinha esperaria, porém: no primeiro jogo, em que o Fla bateu o Paysandu por 3 a 2, o ponta foi não só expulso como agredido pelo árbitro local Dimas Teles logo aos 15 minutos. Tamanha foi a parcialidade de Dimas, apitando tudo contra os rubro-negros, que ele acabaria substituído no intervalo por ordem do governador do Pará, Luiz de Moura Carvalho. Em seu estado, Esquerdinha anotaria cinco gols: um na Tuna Luso, um no combinado Tuna-Remo e três na goleada de 11 a 1 sobre o Santarém.
Ainda naquele ano, o ponteiro-esquerdo rubro-negro também pôde sentir o gosto de defender uma seleção – não a brasileira, para a qual não chegaria a ser convocado, mas a carioca de novos. De todo modo, a ocasião se deu num jogo marcante: o da inauguração do estádio do Maracanã, enfrentando o escrete paulista da mesma categoria, que, aliás, contava com um futuro companheiro de Gávea e ídolo da torcida do Flamengo: o meia Rubens, o “Doutor Rubis”. Na partida disputada em 16 de junho, os visitantes venceram por 3 a 1.
O INÍCIO DO RENASCIMENTO
Flávio Costa havia permanecido à frente do time do Flamengo por pouco mais de oito anos, entre setembro de 1938 e o fim da temporada 1946. Nos quatro anos seguintes, em que esteve ausente dirigindo o Vasco, os rubro-negros tiveram cinco treinadores diferentes no comando, sem contar as várias passagens de Jayme de Almeida e Jarbas Baptista como interinos. Assim, tão logo assumiu a presidência do Fla no início de 1951, Gilberto Cardoso logo tratou de recontratar o “Alicate” para tirar o futebol do clube do fundo do poço em que se metera.
O retorno de Flávio Costa duraria duas temporadas e não chegaria a tirar o Flamengo do jejum de títulos cariocas, mas ajudaria a fundar as bases do time que logo voltaria a dominar o futebol carioca sob o comando do paraguaio Manuel Fleitas Solich. Nesse biênio em que Flávio dirigiria a equipe, um dos jogadores que cresceram em status dentro do clube foi Esquerdinha, que, além de se firmar como titular, ocupou inúmeras vezes o posto de capitão no lugar dos veteranos Bria e Biguá, que já se aproximavam do fim da carreira.
O ponta rubro-negro também seria um dos destaques do time no primeiro ponto alto da nova era Flávio Costa na Gávea: a célebre excursão europeia realizada entre maio e junho de 1951, na qual o Fla venceu todas as dez partidas que disputou na Suécia, Dinamarca, França e Portugal. Titular em todos os jogos, Esquerdinha foi o vice-artilheiro da série de jogos com sete gols marcados (dois a menos que o meia-direita Hermes), além de participar da construção de vários dos 32 tentos que os rubro-negros marcaram em gramados europeus.
Foi um dos gols nessa turnê, aliás, que Esquerdinha sempre apontou como o seu inesquecível: o da vitória de 1 a 0 sobre o Malmö na abertura da excursão, ao aproveitar uma sucessão de erros da defesa local (o recuo malfeito pelo zagueiro Erik Nilsson e a saída precipitada do goleiro Bror Pettersson) para saltar sobre o arqueiro caído e apenas tocar a bola para a meta vazia. Um gol que Flávio Costa atribuiu à malícia do jogador brasileiro, já que se Esquerdinha tivesse tentado contornar o goleiro, talvez não chegasse a tempo de marcar.
O outro momento memorável daquela temporada para o Flamengo também teve a participação de seu ponta canhoto: a vitória sobre o Vasco por 2 a 1 pelo primeiro turno do Carioca, na estreia de Rubens, em 16 de setembro. O Fla não vencia o rival desde 1945 e saiu atrás com gol de Maneca. Mas aos 20 minutos Esquerdinha desceu pela ponta e cruzou para Adãozinho empatar, aproveitando uma saída em falso de Barbosa. No segundo tempo, o “Doutor Rúbis” faria o lançamento para Índio virar o placar e selar uma tarde inesquecível.
Rubens logo se faria ídolo da massa rubro-negra com seu futebol de pura técnica e malícia. Esquerdinha também era um jogador querido, apesar de seus defeitos: um deles era a pontaria do chute, que, embora forte, nem sempre tinha direção. Chegara a chutar dois pênaltis para fora num mesmo jogo contra o Bonsucesso em 1949. E o mesmo personagem Peladinho (do programa Balança Mas Não Cai, da Rádio Nacional), que cunhara o apelido de Rubens, costumava fazer piada com o ponta, que sempre soube levar na esportiva.
O que fazia de Esquerdinha um jogador consagrado pela torcida era sua aplicação em campo. Era fácil notá-lo em campo não só por seus atributos físicos – a baixa estatura (1,61 metro), o corpo magro, a precoce calvície que o fazia aparentar ter mais idade do que realmente tinha – como também, e principalmente, por sua movimentação que revelava um fôlego inesgotável e pela luta até o fim, algo valorizado desde sempre pelos rubro-negros. Além de sua experiência e liderança na orientação dos companheiros em campo.
Às vezes, porém, o chute de Esquerdinha fazia das suas, como aconteceu no dramático empate em 2 a 2 com Olaria na Rua Bariri em 19 de agosto de 1951 pela segunda rodada do Carioca. Num jogo turbulento, que chegou a registrar invasão de campo por parte de torcedores em um alçapão olariense com lotação acima de sua capacidade, o Flamengo saiu na frente, sofreu a virada, mas foi buscar o empate a dez minutos do fim graças a um antológico gol olímpico de seu ponteiro, pegando de surpresa o goleiro uruguaio Juan Álvarez.
Na temporada 1952, o grande feito rubro-negro seria a primeira conquista no exterior, mais exatamente a do Torneio Quadrangular de Lima, que fez parte de uma excursão de 11 jogos, estendendo-se por 46 dias (entre meados de maio e o início de julho) e passando por Peru, Colômbia e Equador. Esquerdinha atuou em todas as partidas da turnê, entre elas as três da conquista do quadrangular, no qual os rubro-negros enfrentaram três equipes peruanas: o Sport Boys (5 a 1), o Deportivo Municipal (4 a 4) e o Alianza Lima (3 a 1, de virada).
No Carioca, o Flamengo também apresentou progressos. Embora terminasse seis pontos atrás do campeão tal como no ano anterior, o desempenho geral melhorou, e o time ficou em segundo ao lado do Fluminense, superando o quarto lugar de 1951. A rigor, todos os tropeços do time se concentraram em três adversários: o campeão Vasco (duas derrotas), o America (um empate e uma derrota) e o Olaria (um empate e uma derrota). Os demais foram vencidos nos dois turnos, incluindo o Fluminense, o Botafogo e o Bangu de Zizinho.
COMPLETANDO A TRANSIÇÃO
O certame se estenderia até o fim de janeiro de 1953, mas para Esquerdinha ele terminaria mais cedo: no último dia de 1952 o ponta casou-se com Zilda na Igreja de Sant’Ana, no centro do Rio, e saiu em lua de mel logo em seguida. Assim, nas últimas rodadas, seu posto seria ocupado por um destaque dos aspirantes chamado Zagallo. E uma nova fase de transição agitava a Gávea: o contrato de Flávio Costa se encerrara e ele aceitara proposta para voltar ao Vasco, deixando o Flamengo sob o comando interino de Jayme de Almeida.
Zagallo causaria boa impressão nos 14 jogos seguidos que faria vestindo a 11 naquele início de temporada (a maior sequência de Esquerdinha fora do time titular desde que o paraense chegara à Gávea). Até marcaria um gol na vitória de 4 a 2 sobre o Boca Juniors num torneio disputado no Maracanã. Seu bom desempenho levaria o veterano a treinar até durante o Carnaval para recuperar a forma e o lugar no time. O que aconteceria no fim de março, quando o Fla foi a Buenos Aires e levantou o título do Torneio Quadrangular disputado na cidade.
Naquele certame, o Flamengo empatou com o San Lorenzo (2 a 2) e com o Boca Juniors (1 a 1) antes de derrotar o velho rival Botafogo por 3 a 0 e faturar o caneco superando os sanlorencistas pelo critério do goal average. Após essa conquista, o interino Jayme de Almeida entregava o time ao novo treinador efetivo rubro-negro, o paraguaio Manuel Agustín Fleitas Solich, que acabara de levar a seleção de seu país a um surpreendente título sul-americano. Mas que viria a ser, dali a alguns anos, o pivô da saída de Esquerdinha da Gávea.
De início, no entanto, o relacionamento dos dois foi bastante bom: Esquerdinha reconquistou a titularidade e o posto de capitão do time e fez grandes jogos. Como numa das primeiras partidas de Solich no comando: a vitória de virada por 3 a 2 sobre o Santos no Maracanã pelo Torneio Rio-São Paulo. O Fla perdia por 2 a 1 até os 40 minutos da etapa final quando o ponta fez o passe para o estreante Evaristo empatar. E logo no lance seguinte anotou ele próprio o gol da virada, chutando após driblar dois adversários e Evaristo fazer o corta-luz.
A cordial concorrência de Zagallo, novato ascendente tido em alta conta pelo próprio Esquerdinha, servia de motivação para que o já veterano ponta jogasse como nunca. Foi dele, por exemplo, o primeiro gol da campanha que viria a ser a do tricampeonato: um chutaço de pé direito da altura da meia-lua abrindo a goleada de 4 a 0 sobre o Madureira no Maracanã pela primeira rodada do certame de 1953, no dia 12 de julho. E o paraense ainda fecharia a contagem com outro belo gol, após ganhar na corrida da zaga do Tricolor Suburbano.
Naquele campeonato, Esquerdinha atuaria em 26 das 27 partidas. E além dos dois gols contra o Madureira na estreia, anotaria mais quatro. O último deles abriria a goleada de 4 a 1 sobre o Vasco que daria o título por antecipação aos rubro-negros – embora a imprensa tenha atribuído o gol ao lateral vascaíno Jorge contra as próprias redes, o árbitro registrou o tento como sendo do ponta rubro-negro na súmula. Aquela, porém, seria a única das três campanhas do tri em que Esquerdinha teria participação expressiva quanto ao número de jogos.
No início de março de 1954, pouco mais de um mês após a conquista do título carioca de 1953, Esquerdinha precisou se submeter a uma cirurgia de extração do menisco, que exigiu um corte no ligamento. Em seguida, um mês e meio de gesso, que causou atrofia muscular. Como o ponta já não era mais um garoto (tinha acabado de completar 30 anos), a recuperação foi longa e demandou muita paciência. Sua volta aos treinos se daria somente no fim de julho. Mas com Zagallo em alta, restou ao veterano treinar e jogar com os aspirantes.
Até o fim daquele ano, Esquerdinha só voltaria a atuar pelo time principal em dois amistosos no mês de outubro contra o Americano em Campos e o Marília no interior paulista. Durante o tempo no estaleiro, o ponta aproveitou para colocar em prática mais uma habilidade, a do texto. Em 1951, ele já relatara a excursão rubro-negra à Europa para o Diário Carioca, além de assinar no mesmo jornal uma coluna de curta duração no ano seguinte. Agora, ele escrevia para a revista Esporte Ilustrado e mais tarde viria a integrar a equipe da Tribuna da Imprensa.
OS ÚLTIMOS TEMPOS NA GÁVEA
Curiosamente, após a virada do ano Esquerdinha não só faria enfim sua estreia naquele Carioca como emendaria uma sequência de quatro partidas, pelas últimas rodadas do segundo turno, enfrentando America, Vasco, Madureira e Bangu. Seriam seus únicos jogos naquela campanha. O ponta reapareceria no meio da temporada 1955, entre maio e julho daquele ano, cumprindo elogiadas atuações em amistosos e torneios como o Rio-São Paulo e a Taça Charles Miller, um hexagonal internacional com jogos nas capitais paulista e carioca.
“Gostamos do reaparecimento de Esquerdinha, que revelou muito senso de objetividade, executando passes preciosos para seus companheiros”, escreveu a Esporte Ilustrado na vitória de 2 a 1 sobre o Vasco pelo certame interestadual em 7 de maio. O Jornal dos Sports, por sua vez, saudou sua atuação nos 3 a 2 sobre o Nacional uruguaio em amistoso no Maracanã, no dia 9 de junho, na qual o ponta anotou um gol de pênalti: “Uma grata surpresa. O vovô da equipe esteve lépido destacando-se dos demais vanguardeiros da Gávea”.
Esquerdinha ainda foi citado pela imprensa como um dos destaques do time (ao lado de Evaristo) na grande vitória por 3 a 2 de virada sobre o São Paulo em pleno Pacaembu pelo Torneio Rio-São Paulo, no dia 12 de maio. Já pela Charles Miller, fez o passe para o mesmo Evaristo marcar o único gol na vitória de 1 a 0 sobre o Benfica em 19 de junho e, com um de seus característicos petardos de canhota após receber de Paulinho, abriu o placar logo aos dois minutos nos categóricos 5 a 3 sobre o Palmeiras em 2 de julho – ambos no Maracanã.
Entretanto, no Carioca de 1955 – o do tri, vindo logo a seguir – sua participação se resumiu a um jogo: a vitória de 5 a 2 sobre o Canto do Rio no Caio Martins pela terceira rodada do returno, no dia 30 de novembro. Na ocasião, o atacante balançou as redes duas vezes – a primeira delas, em uma bonita meia-bicicleta. Seriam seus últimos vestindo rubro-negro. O fim do ciclo de sete temporadas no clube para o veterano Esquerdinha já se anunciava ali na virada do ano. E seu capítulo derradeiro dentro de campo seria no Maracanã dois dias após o Natal.
De acordo com o próprio Esquerdinha, seu primeiro atrito com Fleitas Solich viria na partida contra o Racing pelo Torneio Quadrangular Gilberto Cardoso, disputado bem no fim do ano em homenagem ao recém-falecido presidente rubro-negro. O ponta teria aceitado um pedido do técnico para quebrar um galho e atuar improvisado na meia-esquerda. Mas o paraguaio, insatisfeito com a atuação de Esquerdinha, substituiu-o por Babá ainda na metade do primeiro tempo. De fato, o Fla até melhorou no jogo e acabou vencendo por 2 a 1.
Esquerdinha guardou a mágoa, pediu licença ao Flamengo e foi passar um tempo em Nova Friburgo, região serrana do estado do Rio. Lá começou a treinar sem compromisso o time amador do Fluminense local (atual Friburguense) até receber proposta para formalizar o vínculo e se mudar de vez para a cidade. Voltou então à Gávea e procurou Solich. O treinador paraguaio respondeu que ainda contava com ele por sua experiência e liderança junto ao elenco. O ponta então declinou cordialmente do convite do clube serrano e retornou ao Rio.
Dois dias depois, no entanto, tudo havia mudado: Solich veio comunicar a Esquerdinha que seu contrato não seria renovado, o que deixou o ponta furioso: diante de grande parte do elenco, ele fez duras críticas ao treinador, inclusive questionando seu caráter. Foi o rompimento definitivo: em abril ele seria emprestado por alguns meses ao Bahia, pelo qual venceu o primeiro turno do estadual fazendo dupla jornada como jogador e técnico. E no fim de setembro voltou ao Olaria, onde penduraria as chuteiras no fim daquele ano de 1956.
Os detalhes da briga com Solich só seriam revelados publicamente pelo ponta no ano seguinte, em depoimento à revista Manchete Esportiva. A matéria caiu como uma bomba sobre o clube, e as declarações de Esquerdinha foram logo rebatidas na mesma publicação pelo vice-presidente rubro-negro Fadel Fadel. Segundo o dirigente, a dispensa do atacante havia sido definida pelos cartolas, não pelo treinador (que apenas o comunicou do fato), já que havia naquele momento a intenção de promover uma ampla reformulação no elenco.
A alegação de Fadel encontra fundamento numa nota publicada pelo Jornal dos Sports em 12 de janeiro de 1956 – mais de um mês, portanto, antes do desentendimento mais sério entre o jogador e o técnico. Dizia a nota que “jogadores considerados fora do programa de renovação serão dispensados”, antes de citar nominalmente Esquerdinha entre eles. Prestes a completar 32 anos, o ponta já estava numa faixa de idade em que os jogadores de então costumavam encerrar a carreira – o que ele próprio faria naquele ano.
Esquerdinha, porém, nunca esqueceu a mágoa. E, como ele lembraria mais tarde, só reapareceu na Gávea três anos depois para fazer uma cobertura para a Tribuna da Imprensa. Por muito tempo, ainda afirmava ter sido boicotado por Solich. Se por um lado tinha grande número de admiradores dentro do elenco rubro-negro, o técnico paraguaio também teve seus detratores: aqueles que em algum momento perderam espaço, se indispuseram com ele e por isso deixaram o clube, como Rubens, Benítez e García, além do veterano ponta paraense.
De todo modo, Esquerdinha já havia cumprido seu papel e inscrito seu nome na história rubro-negra como jogador e capitão, importante dentro e fora de campo, num período de transição que levaria ao renascimento do Flamengo como força preponderante nos cenários carioca e nacional. Foram 279 partidas e 108 gols vestindo o Manto, somando a rápida primeira passagem e a segunda, bem mais marcante e vencedora. William Kepler Santa Rosa, o Esquerdinha, nos deixou aos 90 anos de idade, no Rio de Janeiro, em 5 de setembro de 2014.