A tragédia aérea da última terça-feira, que vitimou praticamente toda a delegação da Chapecoense (jogadores, comissão técnica e dirigentes), além de profissionais da imprensa, a caminho de Medellín, na Colômbia, chocou não só o futebol brasileiro como o do mundo inteiro e provocou gestos emocionados até mesmo de torcedores do Atlético Nacional, adversário do clube catarinense na então iminente decisão da Copa Sul-Americana.
O acidente também evocou traumas de outros clubes que sofreram perdas humanas irreparáveis em desastres semelhantes. O presidente do Torino, clube que perdeu todo o seu elenco multicampeão italiano na colisão da aeronave que transportava sua delegação contra a capela de Superga, em Turim, em 1949, prontificou-se até a acertar um jogo amistoso em compadecimento à dor da Chape. No Brasil, o Flamengo – um dos primeiros clubes a se pronunciar, lamentar o ocorrido e oferecer apoio ao time catarinense nas redes sociais – já viveu seu luto particular pelas mesmas causas: a morte do zagueiro Figueiredo, jovem promissor que fez parte do elenco mais vitorioso da história rubro-negra.
A dor
Na manhã de sábado, 22 de dezembro de 1984, o Rio de Janeiro acordou lendo na primeira página dos jornais – em meio a notícias sobre a sucessão presidencial após a última eleição indireta do regime militar e as novidades a caminho do primeiro Rock In Rio, a ser realizado no mês seguinte – uma nota sobre o desaparecimento do zagueiro Figueiredo, do Flamengo. O monomotor em que viajava do Rio para a Bahia, ao lado do piloto, de uma amiga e de Niltinho, irmão do atacante Bebeto, sumira dos radares. E uma testemunha, um lavrador de Cachoeiras de Macacu, então distrito de Nova Friburgo, vira uma pequena aeronave se chocar contra o Pico da Caledônia.
As buscas duraram dois dias, dificultadas pelas chuvas e a forte neblina no local. Mas logo os responsáveis do Parasar e do corpo de bombeiros já desenganaram a família, os amigos, os colegas de clube e os torcedores. O corpo do jogador foi trazido para o Rio na tarde do domingo, 23. E rapidamente o velório foi seguido do enterro no Cemitério São João Batista, em Botafogo.
Entre os presentes, Zico lembrava que o zagueiro “encarnava a fibra rubro-negra. Para ele, treino era jogo”. Já o técnico Zagallo, muito abalado, não se conformava com a decisão do jogador de realizar a longa viagem num avião tão pequeno. Mas foi Andrade quem se lembrou do mais triste: Figueiredo foi enterrado no dia de seu aniversário. Completaria 24 anos naquele domingo.
O início da carreira
Nascido na capital paulista, Cláudio Figueiredo Diz era filho do espanhol Antonio Lago Diz e de Suzana Figueiredo. Depois de passar pela base do Palmeiras e do Nacional paulistano, chegou ao Flamengo em 1978, para atuar nos juvenis, sendo contemporâneo do zagueiro Mozer, do volante Vítor, dos centroavantes Anselmo e Ronaldo Marques, do ponta Édson e de outros jogadores revelados pela sempre prolífica fábrica rubro-negra de talentos daquele tempo. Integrou seleções cariocas e brasileiras da categoria. Chegou a fazer uma precoce aparição no time de cima, em abril de 1979, numa goleada sobre o Fluminense de Nova Friburgo pelo Campeonato Carioca Especial. Seria a primeira de suas 152 partidas vestindo o manto rubro-negro.
No fim de junho de 1980, ainda nos juniores, despertou a atenção de um visitante ilustre após atuar numa vitória rubro-negra sobre o Botafogo por 2 a 0 na Gávea pelo Estadual da categoria: o veterano técnico franco-argentino Helenio Herrera, que dirigia o Barcelona e vinha ao Brasil para observar jogadores (no Flamengo, depois de saber que Zico era inegociável, sondou Tita e Nunes). Herrera gostou muito do zagueiro, mas a negociação não passou do interesse, já que o Fla também não pretendia vender seu jovem talento.
As qualidades que impressionaram o velho Herrera começavam pela excelente impulsão – apesar da baixa estatura (1,77 metro) – conquistada à base de muito treinamento com colete de peso. Além disso, Figueiredo era um zagueiro inteligente, com boa leitura do jogo e do adversário, muito bom nas antecipações e com facilidade de se adaptar ao estilo do atacante que teria pela frente. Era também um marcador duro até nos treinos, mas nunca desleal. Era mais garra, ímpeto, vontade de vencer do que violência pura e simples.
Promovido em definitivo ao elenco principal em 1981, era a quinta opção para o setor: o elenco ainda contava com Luís Pereira (trazido a peso de ouro do Atlético de Madrid em meados do ano anterior), Rondinelli, Marinho e Mozer (este, já há alguns meses entre os profissionais).
No começo de junho, porém, o Flamengo vivia processo de renovação de sua zaga. Luís Pereira já tinha deixado a Gávea para retornar ao Palmeiras, onde fez seu nome. Rondinelli vivia seus últimos meses no clube antes de receber boa proposta do Corinthians e sair em agosto. Havia o retorno de Manguito, que havia embarcado rumo ao Al Nassr, da Arábia Saudita, após o Brasileiro de 1980 e agora estava de volta, mas sem contrato e acima do peso.
Foi quando o técnico Dino Sani resolveu relacionar mais o jovem Figueiredo, utilizando-o a princípio durante os jogos e depois como volante, num curto período em que Andrade e Vítor estiveram lesionados. No jogo contra o Olimpia, no Maracanã, pela Libertadores, enfim começou jogando em sua posição. E daí em diante virou figura frequente na escalação do time (agora dirigido por Paulo César Carpegiani). Chegou inclusive a disputar como titular nada menos que dez dos 14 jogos da campanha vitoriosa na Libertadores – número inferior apenas ao de Mozer entre os zagueiros –, além de outros dois vindo do banco. E participou também desde o início de jogos importantes do Fla no período, como a histórica goleada de 6 a 0 sobre o Botafogo pelo Campeonato Carioca.
Nas três grandes decisões daquele fim de ano, porém, ele quase não esteve em campo. Depois de enfrentar o Cobreloa no Maracanã e em Santiago, um estiramento no músculo adutor o tirou do terceiro jogo, em Montevidéu. No jogo do título carioca, a vitória de 2 a 1 sobre o Vasco, Figueiredo entrou em campo só no segundo tempo, no lugar de Junior. E em Tóquio, contra o Liverpool, acabou assistindo do banco a conquista do título mundial, devido ao mesmo problema no adutor. De marcante, além da comemoração com os companheiros, apenas a tatuagem no braço direito (um golfinho) que fez durante a escala em Los Angeles, junto com Leandro e Mozer.
A primeira grande decisão
No ano seguinte, Carpegiani decidiria manter de início a dupla de zaga das decisões. Nas primeiras fases do Brasileiro de 1982, Figueiredo fez apenas uma partida – e jogou mal. Escalado de improviso na lateral-direita contra o Atlético Mineiro no Maracanã, foi expulso ainda no primeiro tempo após uma falta em Reinaldo. Mesmo assim, o Fla (que perdia por 1 a 0) viraria o jogo com um a menos e venceria por 2 a 1. Mas quando Mozer se lesionou na partida de ida das quartas de final contra o Santos no Maracanã (outra vitória rubro-negra de virada por 2 a 1) e acabou afastado do restante da competição, Figueiredo ganhou sua grande chance.
E não desapontou: a grande atuação na partida de volta – empate em 1 a 1 no Morumbi – credenciaria o jovem zagueiro de 21 anos a permanecer no time. O Jornal do Brasil avaliou assim seu jogo: “Teve uma atuação seguríssima e foi, logo depois de seu companheiro de zaga Marinho, o melhor do time”. Na semifinal, contra o Guarani, mais duas grandes atuações, anulando Careca completamente, tanto no Maracanã quanto no Brinco de Ouro. No jogo da volta, em Campinas, sofreu inclusive um pênalti claro não marcado pelo árbitro, numa raríssima projeção ao ataque.
Nos jogos finais contra o Grêmio voltou a ter grandes atuações, crescendo a cada jogo, até a partida irretocável no terceiro e último jogo, no Olímpico. E o mesmo Jornal do Brasil o apontou como o melhor da zaga, superior até a Marinho: “Irrepreensível nas disputas altas ou rasteiras, não perdeu um lance”.
Em agosto, no entanto, uma torção no tornozelo o tirou do time por um mês, propiciando o retorno de Mozer, já recuperado de sua lesão. Mas os papeis se invertem no começo do mês seguinte, quando Mozer se lesiona em um amistoso em Fortaleza, e Figueiredo retorna à zaga a partir da vitória sobre o America por 3 a 2, pela Taça Guanabara, permanecendo até o fim do ano, atuando em 19 das 22 partidas da equipe no período.
Veio 1983, e Mozer e Marinho voltaram a estar em alta. Tanto que ambos ganharam uma chance na Seleção Brasileira do novo técnico Carlos Alberto Parreira. Mas novamente Figueiredo arranjaria um jeito de sair na foto de campeão. Entraria em campo 21 vezes (17 como titular) nas 32 partidas oficiais do Flamengo naquele primeiro semestre, entre Campeonato Brasileiro e Taça Libertadores. E na final do Brasileiro, nos 3 a 0 impostos ao Santos no Maracanã, lá estava ele substituindo Mozer no time titular e cumprindo atuação cinco estrelas, pela avaliação do Jornal do Brasil. Anulou o centroavante Serginho Chulapa a ponto de o camisa 9 santista se irritar após o fim do jogo e agredir jornalistas à beira do campo.
O melhor momento
Entretanto, logo após o fim do Brasileiro, voltaria ao banco de reservas. O que o ajudaria, porém, a passar quase incólume pela crise técnica (e até administrativa) na qual o clube mergulharia após a saída de Zico. Sua sorte – e a do Flamengo – começaria a mudar com a chegada do técnico Cláudio Garcia na virada da Taça Guanabara para a Taça Rio. Durante a passagem do novo comandante, entre o fim de setembro de 1983 e o de maio de 1984, viraria titular absoluto. Disputaria, sempre desde o início, nada menos que 41 das 46 partidas do Flamengo sob a direção do treinador. A ponto de Marinho, outrora dono da posição, ser negociado com o Atlético Mineiro.
Nesse período, Figueiredo fez grande dupla com Mozer, mais ou menos delineando a velha ideia de “beque central” e “quarto zagueiro” e suas simbologias. Enquanto seu companheiro de miolo de zaga vivia talvez seu melhor momento no Flamengo, física e tecnicamente exuberante, dando-se ao luxo de sair jogando como se fosse um meia, em espetaculares arrancadas para o ataque, e de ser um dos cobradores de falta daquela equipe, Figueiredo era seu contraponto: raramente se aventurava à frente (menos até do que Marinho), mas se mostrava impecável nas tarefas defensivas, perfeito pelo alto, firme e preciso nos desarmes e inteligente na antecipação. Era como se Mozer fosse o zagueiro “louco” e Figueiredo, o “sério”.
Fora dos gramados, o jogador viveu experiência inusitada nessa mesma época. Em todo o país, vivia-se o tempo das manifestações populares pelo retorno das eleições diretas para a Presidência da República e o chamado movimento “Diretas Já”. Os torcedores rubro-negros (que já haviam criado a torcida Flanistia, em 1979) não poderiam ficar de fora: um grupo fundou, no início de 1984, a torcida Fla-Diretas e escolheu – pela ironia envolvendo os sobrenomes do jogador e do presidente militar João Baptista de Oliveira Figueiredo – o zagueiro como padrinho (ao lado do ex-mandatário rubro-negro Márcio Braga e da atriz Christiane Torloni). Convencido pelo ponta Lico, seu companheiro do Fla e interessado em política, o jovem central rubro-negro acabou topando.
Em meados de 1984, no entanto, uma combinação de fatores acabaria por encerrar sua grande fase. Primeiro veio a demissão de Cláudio Garcia – apesar da campanha irretocável na primeira fase da Libertadores – pouco depois da eliminação nas quartas de final do Brasileiro, após uma derrota desastrosa para o Corinthians no Morumbi. O veterano Zagallo entraria em seu lugar. Depois, uma sequência de lesões: Figueiredo teve afundamento do malar e fratura da mandíbula num choque sofrido em amistoso contra o Treze, em Campina Grande (PB), e logo após retornar, quebrou o punho na partida em que o Fla venceu o Grêmio por 3 a 1 no Maracanã pela fase semifinal da Libertadores.
Na despedida, um presente do acaso
Quando finalmente se livrou das lesões, Figueiredo encontrou a defesa rubro-negra já inteiramente reconfigurada por Zagallo. Contratado do America para suprir a saída de Junior para o Torino, o jovem Jorginho se firmava, mas não na lateral-esquerda (onde o garoto Adalberto, da base rubro-negra, crescia a olhos vistos) e sim na direita. Enquanto isso, daquela posição, Leandro finalmente tinha atendido seu desejo de passar definitivamente para a zaga central – por conta dos velhos problemas nos joelhos, era impossível continuar apoiando o ataque com a mesma frequência e qualidade. E Mozer, ainda irretocável, era o dono da quarta-zaga.
Jorginho, Leandro, Mozer e Adalberto formariam, assim, a linha defensiva rubro-negra para aquele segundo semestre de 1984. Figueiredo teria poucas oportunidades de jogar. Entraria em campo apenas quatro vezes pelo Campeonato Carioca, sendo duas como titular. A última delas, no entanto, seria marcante – apesar da derrota para o Fluminense por 2 a 1, na última rodada da Taça Rio.
Naquele dia, Figueiredo ficaria mais uma vez no banco. Mas o destino teria outros planos: Tita sentiu lesão e não passou no teste físico no vestiário, minutos antes de o time entrar em campo. Zagallo então, decidiu deslocar Leandro como meia-armador. E Figueiredo entrou na zaga – com a camisa de Tita. E aí deu-se a incrível coincidência, como uma espécie de homenagem, antes que qualquer pessoa e que o próprio zagueiro soubesse do que aconteceria dali a algumas semanas. No último jogo de sua vida, Figueiredo entrou em campo no Maracanã vestindo a lendária camisa 10 rubro-negra.
(Relembre aqui a matéria do Globo Esporte sobre a última homenagem a Figueiredo em dezembro de 1984)