Tags
1953, 1954, 1955, 1961, 1971, Campeonato Carioca, Carlinhos, Dida, Fleitas Solich, Gérson, Paulinho, Torneio Rio-São Paulo, Zico
Eis um punhado e meio de histórias do paraguaio Manuel Agustín Fleitas Solich, ou simplesmente Fleitas Solich, um dos maiores técnicos da história do Flamengo, clube o qual treinou em três passagens: 1953 a 1959, 1960 a 1962 e 1971. A morte do “Feiticeiro”, como era conhecido, completou trinta anos na última quinta-feira, dia 20.
UM:
Tarde abafada, essa de 4 de outubro de 1953 na Rua Bariri, em Olaria. Em seu notório alçapão, o alvianil da Leopoldina treinado pelo mitológico zagueiro Domingos da Guia vai derrotando o Flamengo por 1 a 0 pelo returno do Campeonato Carioca. No time da Gávea, Rubens, o “Doutor Rúbis”, é o desfalque. Em seu lugar na meia-direita joga o garoto Maurício, 21 anos, que, definitivamente não vai bem, sobrecarregando o centromédio Dequinha na criação de jogadas. Faltam pouco mais de dez minutos para o fim do jogo e a vitória olariense parece líquida e certa. Até que…
Até que, sem poder fazer substituições (proibidas na época), Fleitas Solich mexe as peças que tem no seu tabuleiro ofensivo. Esquerdinha – como o próprio apelido diz, o extrema-esquerda do time – é deslocado para a ponta direita. Joel, o ponteiro por esse lado, vai jogar de centroavante. Índio, o centroavante, passa para a meia-direita. Benítez fica na meia esquerda. E Maurício, que não vinha bem na meia direita, passa a fazer a função de ponta-esquerda. “O gringo enlouqueceu”, pensa o torcedor ao pé do rádio ou nas arquibancadas do acanhado estádio.
Só que a ‘loucura’ começa a dar resultado aos 36 minutos do segundo tempo. Índio dribla Ananias pelo lado direito do ataque e chuta cruzado para empatar. Aos 39, Benítez pega sobra da defesa e dispara um foguete para virar o placar. E aos 43, Esquerdinha cria a jogada pela direita para servir Benítez, que faz seu segundo e o terceiro do Flamengo no jogo. Três gols em sete minutos. O diretor de futebol Fadel Fadel vai às lágrimas na beira do campo. Rubro-negros, não duvidem do Feiticeiro.
DOIS:
Jogo contra o Vasco, antepenúltima rodada do returno do Carioca de 1954. o Flamengo domina amplamente, mas o placar segue em branco até o fim. Pior mesmo, só a fratura na perna sofrida por Joel, uma das principais armas ofensivas do time, num choque com o (ou, para alguns, carrinho do) goleiro vascaíno Victor González. O ponta ficará afastado do time por todo o resto do campeonato. Para o jogo seguinte, contra o Madureira em Conselheiro Galvão, Solich puxa dos juvenis um atacante chamado Paulinho, que ainda não havia feito nenhum jogo naquele torneio. E o Flamengo vence por 3 a 0. Paulinho dá o passe para o primeiro gol, de Índio, e marca ele mesmo o terceiro.
Outro jogo contra o Vasco, penúltima rodada do turno extra daquele mesmo Carioca de 1954. o Flamengo derrota o rival por 2 a 1 de virada e se sagra campeão com uma rodada de antecipação. Quem marca o gol da virada, da vitória e do título? Paulinho, aquele que o ‘Feiticeiro’ lançou…
TRÊS:
No campeonato seguinte, Paulinho já está efetivado ora na meia-direita ora como centroavante do time titular. Mais: é o artilheiro absoluto do torneio, com 23 gols em 29 jogos. O problema é que está fora da terceira partida da decisão contra o America. O Flamengo havia vencido o primeiro jogo por 1 a 0 e perdido o segundo por 5 a 1, o que tornava o rival o favorito na terceira partida.
Mas Solich tem uma carta na manga: um garoto alagoano chamado Dida, meia-esquerda, 22 anos completados há pouco, e que o próprio Feiticeiro havia lançado no time de cima em outubro de 1954. Era reserva de Evaristo. Agora é Evaristo que será deslocado para o comando do ataque, para a entrada do garoto, que jogará ao lado de Duca, seu antigo companheiro nos aspirantes e substituto de Índio na série final.
E Dida arrasa o America. Faz pelo menos três gols na goleada rubro-negra por 4 a 1. “Pelo menos” porque no quarto gol, ele, Evaristo e Duca entram chutando juntos a mesma bola. Até hoje não há consenso sobre a autoria de fato do gol. Mas não importa: a partir daquele jogo, o alagoano entraria de vez para a galeria dos maiores ídolos do Flamengo. E, até o surgimento de Zico, seria o maior goleador da história do clube.
QUATRO:
Entre o fim de 1956 e o começo de 1958, o Flamengo vende mais de um ataque inteiro: Paulinho, o goleador de 1955, vai para o Palmeiras; Rubens, ídolo de anos anteriores, troca o Fla pelo arquirrival Vasco; Índio, centroavante titular da Seleção nas Eliminatórias da Copa de 58, toma o rumo do Corinthians; o cerebral Evaristo de Macedo, homem de Seleção como todos os anteriores, viaja para mais longe: o Barcelona, da Espanha; e Esquerdinha, já em fim de carreira, vai jogar no Bahia. Sem falar em Benítez, negociado com o Náutico, e Duca, que mal teve sequência como titular e acabou também na Espanha, no Real Zaragoza. Problemas, seu Fleitas?
“Qual nada”, responde o Feiticeiro, enquanto alinha o novo ataque para aquele ano: Joel, Moacir, Henrique, Dida e Zagalo. Todos vindos dos aspirantes. Todos, exceto Henrique, convocados para a Seleção que disputaria e ganharia a Copa do Mundo na Suécia. Depois do Mundial, porém, Joel e Zagalo, os mais veteranos, trocam o Fla por Valencia e Botafogo, respectivamente. Mas lá estão, prontos para substituí-los, Luis Carlos e Babá (outro que chegaria à Seleção), com cruzamentos certeiros para fazerem de Henrique e Dida dois dos maiores goleadores da história do clube. Comandada por Solich, a fábrica de craques da Gávea não pode parar.
CINCO:
Em meados de 1959, o Feiticeiro deixa a Gávea atendendo a um chamado para comandar o poderoso Real Madrid de Puskas e Di Stéfano. Coleciona 20 vitórias em 29 jogos no comando dos ‘blancos’, participa da conquista da quinta Copa dos Campeões do clube, mas se indispõe com os figurões do time, pede demissão em abril de 1960 e deixa a capital espanhola.
De volta ao Rio e ao Flamengo, Solich encontra no elenco mais uma leva de garotos lançados por seus antecessores Jaime de Almeida e Modesto Bria, e já prontos para estourarem no time de cima. O Feiticeiro não hesita em manter como titular um volante de classe e toque refinado, legítimo sucessor de Dequinha, chamado Carlinhos. E começa a escalar, ora na meia direita ora na meia esquerda, um armador muito habilidoso com a perna canhota, exímio lançador, chamado Gerson. Além de um extrema-esquerda driblador, vindo de uma familia mineira de jogadores, chamado Germano.
Dentro de pouco tempo esses garotos, junto com os já experientes Joubert, Jadir, Jordan, Luis Carlos, Henrique, Dida e Babá, levantarão no Flamengo de Solich títulos como o do Torneio Rio-São Paulo e o Octogonal de Verão, além de chegarem à Seleção.
SEIS:
“O Botafogo já é o campeão, só resta saber em qual rodada levanta a taça”. “O Botafogo é o campeão, e eu acho que vai ser invicto”. “O Botafogo é um Cadillac, os outros são Fuscas”.
São frases recorrentes entre jogadores, dirigentes, comissão técnica e torcedores alvinegros naquele começo de junho de 1971. O Botafogo tem quatro pontos (o equivalente a duas vitórias) de vantagem sobre o Fluminense na liderança do Campeonato Carioca, faltando três rodadas para o fim. Não perdeu nenhum de seus 17 jogos até então, e quase tudo leva a crer que o próximo jogo, contra um Flamengo destroçado, será o do título.
Quase tudo exceto o fato de que, naquela semana, Fleitas Solich voltara à Gávea, após a demissão de Yustrich, e estreará contra o Alvinegro. Em campo, o time do Flamengo, reconhecidamente inferior em técnica à dita ‘Sele-Fogo’, morde, não dá espaço, abre seus próprios espaços na defesa rival, ataca, contra-ataca, Liminha cola em Paulo César, Arilson e Fio invertem o posicionamento pelo lado esquerdo do ataque, é o Feiticeiro fazendo das suas. O ponta Buião marca 1 a 0 Flamengo. Depois, 2 a 0.
Fim de papo e de invencibilidade. O campeonato volta a ter graça. A ‘Sele-Fogo’ começa a desmoronar ali, aos pés de Solich. Depois empata com o America e perde para o Fluminense, o campeão por um ponto. O velho treinador, no entanto, afirma que seu trabalho está só começando, enquanto volta a olhar a base rubro-negra. Vêm mais garotos por aí…
SETE:
Pouco depois daquele Campeonato Carioca viria a Taça Guanabara, torneio à parte, curto, um aperitivo de meio de temporada. O Fla, com elenco reduzido, tropeça aqui e ali. E chega a hora de enfrentar o Vasco, também já eliminado. É a deixa para Solich lançar no time de cima um garoto loirinho, franzino, de apenas 18 anos, e que tinha feito o gol da vitória sobre o Botafogo nos juvenis, reduzindo a pó uma longa invencibilidade alvinegra na categoria, na preliminar do jogo em que brilhou a estrela de Buião.
O garoto loirinho e franzino se chama Zico. É ele quem dá o passe para Nei abrir o placar para o Flamengo, que ao final vence por 2 a 1. O menino de Quintino faz boa estreia, dizem os jornais. O torcedor talvez nem soubesse na época, mas havia ali um elo unindo dois gigantes da história do Flamengo, ícones de grandes épocas vencedoras do futebol rubro-negro. O Galinho e o Feiticeiro, que encerraria sua última passagem pelo clube no final daquele ano, com a missão pra lá de cumprida.