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1982, Adílio, Andrade, Campeonato Brasileiro, Carpegiani, Figueiredo, Grêmio, Junior, Leandro, Lico, Marinho, Mozer, Nunes, Raul, Taça de Ouro, Tita, Vítor, Zico
A conquista do bicampeonato brasileiro pelo Flamengo em 25 de abril de 1982 desatou uma série de simbolismos. Ao vencer o Grêmio por 1 a 0, gol de Nunes, dentro do Olímpico, em Porto Alegre, o time consagrava uma campanha repleta de viradas marcantes. Recuperava o título levantado em 1980 e que havia deixado escapar em 1981. Encerrava de uma vez por todas o falso estigma de “time de Maracanã”. E ainda se tornava o atual detentor de todos os troféus que poderia disputar: Taça Guanabara, Estadual, Brasileiro, Libertadores e Mundial. Como no boxe, “unificava os cinturões”. Era, assim, campeão de tudo.
O PANORAMA ANTES DO TORNEIO
Talvez pela primeira vez era possível dizer que o Flamengo entrava num Brasileirão como o time a ser batido. Afinal, tratava-se do campeão carioca, da Libertadores e do Mundial, títulos vencidos nos dois últimos meses do ano anterior e ainda vivos na memória. E não mudara quase nada de 1981 para 1982 (o ponta Baroninho, emprestado pelo Palmeiras e que havia se destacado na conquista continental, acabou não sendo contratado em definitivo). De “problemas”, só alguns contratos a serem renovados.
As principais pedras no caminho rubro-negro rumo à glória completa seriam precisamente os dois finalistas do torneio no ano anterior: Grêmio (campeão) e São Paulo (vice). Procurando esquecer a perda do estadual para o Internacional, o Tricolor gaúcho de Ênio Andrade tirara do arquirrival o volante Batista, além de repatriar um ex-rubro-negro: o ponta-esquerda Julio César “Uri Geller”, que vinha de uma boa temporada na Argentina pelo Talleres. Nos Pampas também se falava em conquistar tudo em 1982.
Já o outro Tricolor, o paulista, vivia o caso oposto: procurava converter seu sucesso regional (era o bicampeão estadual) em nacional, missão na qual falhara em 1981 na condição de favorito. Mas com um esquadrão chamado pela imprensa paulista de “Máquina Tricolor” (apelido emprestado do Fluminense de meados da década anterior), contando com jogadores de nível de Seleção em quase todas as posições, a afirmação deste poderio passava necessariamente pela conquista do principal título do país.
Um pouco abaixo, mas também credenciados ao título, vinham Vasco e Atlético-MG. Depois de ameaçarem superar o Flamengo nas finais do Estadual, os cruzmaltinos chegavam fortes para a disputa nacional. Entre os reforços de peso, dois ex-rubro-negros: o zagueiro Rondinelli (trazido do Corinthians) e o centroavante Cláudio Adão (comprado do Fluminense), que prometia uma dupla goleadora ao lado de Roberto Dinamite, além do lateral-esquerdo Pedrinho, ex-Palmeiras e reserva de Junior na Seleção.
O Galo, por sua vez, mantinha seus selecionáveis (João Leite, Luizinho, Cerezo, Reinaldo e Éder), mas depois de ter mais decepções que alegrias, descartara os encrenqueiros Chicão e Palhinha, escanteados para o Santos, e apostava em garotos para preencher as lacunas. O próprio Peixe vinha numa prateleira abaixo, ao lado do Inter – que naquele período pós-Falcão não conseguia replicar no âmbito nacional seu domínio estadual – e do Fluminense – em declínio desde que conquistou o Carioca em 1980.
De Cruzeiro e Botafogo não se esperava nada. Arrastando-se em crises técnica e administrativa, os dois viviam de glórias passadas e ainda se viam na iminência de perder seus parcos destaques. Mas os dois, pelo menos, podiam se gabar de terem sido incluídos no grupo de elite. O mesmo não se podia dizer de Corinthians e Palmeiras, os quais o péssimo desempenho no Paulistão de 1981 havia relegado à Taça de Prata, equivalente à segunda divisão nacional – o Alviverde, aliás, pelo segundo ano consecutivo.
Fora do grupo dos grandes, as maiores ameaças vinham de Campinas, onde Guarani e Ponte Preta haviam brilhado no ano anterior. O Bugre conquistou de maneira arrasadora a Taça de Prata e teve em Jorge Mendonça o artilheiro do ano no país. Já a Ponte fizera ainda mais: foi semifinalista do Brasileiro (Taça de Ouro), caindo só para o Grêmio, futuro campeão, e fez a final do estadual com o São Paulo. A dupla campineira, aliás, chegou a decidir num “derby” o primeiro turno do Paulistão, com vitória da Ponte.
O regulamento daquele Brasileiro de 1982 trazia uma mudança quanto à disputa da primeira fase em relação aos dois anos anteriores: agora os 40 clubes que disputavam aquela etapa inicial eram divididos em oito grupos de cinco, em vez de quatro chaves de dez. Os três primeiros passavam direto à fase seguinte, enquanto os quartos colocados jogavam a repescagem. As últimas quatro vagas na segunda fase eram reservadas aos clubes oriundos da Taça de Prata. A partir de então, o formato era o mesmo de 1981.
O Flamengo foi incluído no Grupo C, tendo logo de cara a companhia de um dos outros grandes favoritos ao título: o São Paulo, num aguardado duelo de campeões dos dois principais estaduais do país. O perigoso Náutico corria por fora, cotado à terceira vaga, mas sonhando em arrancar pontos dos papões. O Treze, campeão paraibano, e o Ferroviário, vice-campeão cearense, tinham ambições menores: a classificação já seria lucro, fosse pela repescagem ou até pela terceira vaga direta, caso o Timbu vacilasse.
DE SAÍDA, DUAS VIRADAS ÉPICAS
Como havia entrado de férias mais tarde em 1981, o Flamengo ganhou o benefício de folgar na primeira rodada do Brasileiro, estreando só na segunda, no esperado confronto com o São Paulo no Maracanã em 20 de janeiro, feriado do dia de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro. No time do Fla, a única ausência em relação ao time que demolira o Liverpool por 3 a 0 em Tóquio na final do Mundial era Tita, ainda sem contrato renovado. Chiquinho, ponta autêntico, entrava em seu lugar. De resto, a mesma equipe.
No primeiro tempo, porém, não se viu o futebol de campeão do mundo do Flamengo. O São Paulo congestionou o meio-campo contando com o apoio do lateral Marinho Chagas e do falso ponta Mário Sérgio, e envolveu o time rubro-negro, fora de ritmo e de sintonia, com erros banais de marcação. Assim, foi até lógica a vantagem tricolor no placar no primeiro tempo: Serginho marcou aos 14 e aos 41 minutos (o segundo numa grande jogada de Renato) e deixou a torcida rubro-negra atônita na saída para o intervalo.
Pouco antes do fim da primeira etapa, o Flamengo já havia feito uma alteração quando Chiquinho sofreu estiramento e teve de ser substituído. Vítor entrou no meio-campo com Adílio passando à ponta esquerda e Lico invertendo seu lado. O efeito dessa mudança, entretanto, só seria sentido no segundo tempo, quando o jogo se transformou completamente. Mais acertado na marcação e com desejo de reagir para não decepcionar os mais de 85 mil torcedores presentes, o Flamengo foi para cima do São Paulo com garra.
E a reação começou aos 14 minutos, numa tabelinha pela meia direita entre Zico e Lico finalizada pelo Galinho com um chute forte, com raiva, estufando as redes de Waldir Peres. Um gol para deixar claro que a partir dali era outro Flamengo. A pressão seguiu e o empate veio aos 25, após uma bola que a defesa tricolor não conseguiu afastar. Andrade pegou a sobra e mandou um chute rasteiro, da meia-lua, queimando a grama. Era a hora do Maracanã enlouquecer de vez, enquanto o São Paulo parecia ter desmoronado.
O gol da virada, aos 36 minutos, seria o mais bonito. Lico recebeu na meia esquerda, encarou a marcação e acionou Junior, que vinha na corrida nas costas do defensor. O lateral, que costumava apoiar muito mais por dentro, fez jogada de ponta: foi à linha de fundo e cruzou. No meio da área, Zico se levantou e pairou no ar por entre os zagueiros são-paulinos, testando para as redes sem chance para Waldir Peres. Em cerca de 22 minutos, o Flamengo dava a volta completa no jogo e reforçava suas credenciais.
O Jornal do Brasil destacou em suas avaliações as atuações de Andrade e Lico (além de Renato pelo lado são-paulino). Na crônica do jogo, Fernando Calazans fez o balanço da partida: “O Flamengo emergiu de seu cansaço não se sabe com que forças e, em princípio, mais na base da fibra do que da técnica, mas logo depois aliando essas duas qualidades fundamentais no futebol, passou a dominar o adversário, que não conseguiria mais se recuperar da surpresa provocada pela transformação do Flamengo”.
Ao que João Saldanha, em sua coluna no mesmo jornal, completou: “Sim, o São Paulo com seu grande time teve a partida ganha. Mas o Flamengo com seu grande time, com muita técnica, coração e com o apoio da grande massa, transformou a derrota em vitória sensacional”. O campeão do mundo mostrava qualidade técnica, poder de decisão e brio para reagir diante de um de seus principais adversários. Aquela seria a primeira de uma série de viradas marcantes que dariam o tom daquela campanha vitoriosa.
A segunda viria logo na partida seguinte, contra o Náutico em um Arruda lotado. O Flamengo entrou em campo com o mesmo time que virou o jogo contra o São Paulo, tendo Vitor no meio formando dupla de volantes com Andrade, Lico na ponta direita e Adílio na esquerda. E saiu na frente já aos nove minutos com um belo gol de Leandro, num chute cruzado de canhota de fora da área que entrou no ângulo do goleiro Jairo. Naquele início, o adversário sequer ameaçava. Mas logo a história se inverteria.
Aos 19, o Náutico empataria numa jogada confusa originada de um escanteio e cresceria no jogo. Mas a partida tomaria mesmo ares desastrosos para o Fla no início do segundo tempo, quando o Timbu marcou mais duas vezes com o ponta Heyder nos seis primeiros minutos – o primeiro em uma cobrança de falta de longe e com efeito e o segundo escorando um cruzamento da esquerda em que Raul ficou no meio do caminho. Pela segunda vez em quatro dias, o campeão do mundo parecia irremediavelmente batido.
Só parecia. Aos 12 minutos, quando os jogadores do Náutico já ensaiavam até algumas jogadas de efeito, houve uma falta em Nunes no lado esquerdo do ataque rubro-negro, perto da linha de fundo. Zico, que até ali vinha sofrendo marcação rígida e até violenta do volante Lourival, cobrou com curva e Lico desviou de cabeça. Mesmo ainda em vantagem, time da casa seguiu atacando e deixou espaços na defesa. Numa dessas brechas, Mozer achou Zico, que tirou o beque Douglas e o goleiro Jairo da jogada e empatou.
E o Galinho concluiria a virada por 4 a 3 cinco minutos depois em excelente cobrança de falta, à meia altura, bem no canto esquerdo de Jairo, que sequer teve reação. Um gol que lembrava muito o marcado contra o Cobreloa na decisão da Libertadores, meses antes. Ao fim da partida, o poder de decisão do 10 rubro-negro mereceu rasgados elogios de Pepe, técnico do Náutico e ex-ponta-esquerda do Santos de Pelé: “Ele é o novo rei do Brasil. Temos que fazer como na história: rei morto, rei posto. Viva o rei Zico!”, declarou.
Após vencer de saída os principais adversários, era a hora de somar pontos contra os oponentes considerados mais fracos, primeiro no Maracanã e depois no Nordeste. Nos 5 a 0 contra o Treze, além dos dois gols de Andrade, o destaque foi o golaço de Zico: partiu da intermediária rubro-negra, driblou cinco jogadores (um dos quais tentou bisonhamente agarrá-lo, em cena digna de comédia pastelão) e entregou a Nunes, que chutou em cima do goleiro. No rebote, a bola voltou aos pés do Galinho, que mandou às redes.
Já nos 3 a 0 sobre o Ferroviário, Zico foi o artilheiro. No primeiro tempo, abriu o placar concluindo um cruzamento de Nunes da direita. E na etapa final, fez o segundo num escanteio após Andrade escorar e também o terceiro recebendo um passe de bicicleta de Junior. E poderia ter feito mais: o juiz paraibano José Araújo Filho anulou gol legal do Galinho, marcando impedimento numa bola que veio da linha de fundo, e deixou de dar um pênalti do zagueiro Júlio, que cortou com a mão uma finalização do 10 rubro-negro.
Antes de viajar ao Nordeste, o Flamengo fez escala em Goiânia, empatando em 1 a 1 com o Goiás em amistoso que marcou a volta de Tita, enfim de contrato renovado. E o camisa 7 retornou em ótima forma: além de marcar o gol rubro-negro no Serra Dourada, anotou outros dois na vitória por 3 a 1 sobre o Treze em Campina Grande (no jogo que bateu o recorde de público do estádio Amigão) e ainda abriu o placar nos 2 a 1 diante do Ferroviário no Castelão, resultados que valeram a confirmação da vaga na etapa seguinte.
NO DESFECHO DA PRIMEIRA FASE, UM JOGO HISTÓRICO
O displicente empate em 1 a 1 com o Náutico no Maracanã no penúltimo jogo da fase, três dias antes da partida de volta contra o São Paulo no Morumbi, deu origem à especulação de que o Fla preferia terminar em segundo na chave para fugir do “grupo da morte” que vinha se formando na fase seguinte, com Atlético-MG, Corinthians (promovido da Taça de Prata) e Internacional. Se terminasse em segundo, teria adversários bem mais acessíveis: Atlético-PR (também vindo da Taça de Prata), Ceará e Ponte Preta.
Na capital paulista, em 16 de fevereiro, o time responderia os boatos com uma atuação grandiosa em um jogo histórico do futebol brasileiro. Foi uma das raras ocasiões em que o Flamengo repetiu exatamente a mesma escalação consagrada na vitória sobre o Liverpool. Mas quem saiu na frente foi o time da casa, com Renato desviando de cabeça uma cobrança de falta do ponta Ricardo para a área logo aos dez minutos, acendendo os mais de 70 mil espectadores presentes ao Morumbi naquela noite de terça-feira.
O Flamengo não se intimidou com a pressão inicial tricolor e o gol logo cedo. Continuou trocando passes bem ao seu estilo. E foi assim que chegou ao empate. De pé em pé, a bola chegou a Zico, que enfiou para Adílio do lado esquerdo da área. O camisa 8 cruzou rasteiro e Nunes apareceu do outro lado para completar aos 20 minutos. A virada não demorou a chegar. Veio apenas cinco minutos depois numa jogada de pura arte, como se pudesse ser de outro jeito com aquele timaço rubro-negro de sonho.
A bola chegou a Raul, que repôs com as mãos para Leandro, que passou a Andrade, que entregou a Adílio, que recuou a Junior. O Capacete abriu na lateral esquerda para Nunes, que ultrapassou a linha do meio-campo e devolveu a Junior, que entregou a Tita, que recuou a Adílio, que pôs o pé sobre a bola e soltou mais à frente de novo a Junior, já no campo de ataque. O camisa 5 então passou a Lico, que tabelou com Adílio e surgiu de repente livre na área são-paulina para, com um leve toque de cobertura, mandar às redes.
Só o Flamengo tocou na bola em todo o lance. Contra o abafa dos donos da casa, o time rubro-negro era envolvente, atraía e abria espaços. E continuou nessa toada no início da etapa final. Tanto que, com dez minutos de segundo tempo, já havia balançado as redes mais duas vezes: uma quando Nunes fez jogada de ponta direita e cruzou forte para Tita receber do outro lado, ajeitar e bater para o gol vazio. E outra quando o mesmo Tita encarou a dupla marcação e cruzou alto para Zico testar tirando de Waldir Peres.
Como o 4 a 1 dentro de casa já era um placar humilhante, o São Paulo ainda foi buscar a reação e descontou para 4 a 3 com Darío Pereyra de cabeça após cruzamento para a área, num lance que deu a sensação de impedimento, e depois com Éverton num chute cruzado em escapada pela esquerda. Ainda acertou o travessão de Raul com Serginho no rebote de uma falta defendida pelo goleiro (que havia feito ótimas intervenções no primeiro tempo). Mas o Fla saiu de novo vencedor num duelo de modelos de esquadrões.
A questão havia sido colocada pela imprensa antes dos dois jogos: Flamengo e São Paulo refletiam duas maneiras distintas de se montar supertimes. Uma, a do Flamengo, era qualificar o trabalho de base. A outra, a do São Paulo, era abrir os cofres e investir em craques feitos. As duas vitórias rubro-negras nos dois jogos levaram o jornalista paulista Ricardo Kotscho a escrever na Folha de São Paulo: “Mais do que uma determinada escola de futebol, saiu ganhando um estilo de vida – alegre, sem medo, irreverente, solidário”.
Para ele, “a diferença é que os jogadores do Flamengo parecem, antes de tudo, fanáticos torcedores do Flamengo. São a própria torcida dentro de campo e refletem no seu futebol o estilo carioca mais autêntico”, ao passo que o São Paulo, “como sua torcida, parece ter ido para o jogo de terça-feira com a obrigação de ganhar, de provar que é melhor, como uma empresa que investiu mais se sente no direito de lucrar mais”. No fim, o autor saudava no Fla o que chamava de “mística, o carisma da camisa, a perfeita integração time-torcida”.
NA SEGUNDA FASE, O “GRUPO DO POVO”
Com o resultado, o Fla terminou sua campanha na primeira fase com 15 pontos ganhos em 16 possíveis (sete vitórias e um empate), soma só igualada pelo Guarani. E se encaminhou para o chamado “Grupo do Povo” na etapa seguinte. O supervisor Domingo Bosco avaliou os próximos adversários: “Acho que os jogos contra Corinthians e Internacional vão ser bem disputados, mas sem violência. Mas, contra o Atlético, temo pelo que possa acontecer, especialmente em Minas. Vai ser guerra”, afirmou à revista Placar.
O fim da primeira fase e o recesso de Carnaval (entre a sexta-feira, 19 de fevereiro, e a quarta-feira de Cinzas, no dia 24) proporcionaram uma rara pausa após a maratona inicial, agravada pela pré-temporada curta, insuficiente e atropelada pelo calendário. Leandro, Junior e Zico, que também defenderam a Seleção no período, haviam sido os que mais sofreram, entrando em campo nada menos que dez vezes em 28 dias. Era hora de recarregar as baterias para uma nova sequência insana de jogos que os aguardaria.
O campeonato recomeçou no fim de semana seguinte, precedido por um protesto do Fla junto à CBF quanto à sequência dos jogos da segunda fase. Embora tivessem feito a melhor campanha da etapa anterior, os rubro-negros ficaram em desvantagem ao fazerem dois dos seus três jogos do returno (contra o Atlético e o Inter) fora de casa. A entidade, porém, deu de ombros. O time voltaria ao Morumbi para a estreia na nova fase contra o embalado Corinthians de Sócrates, Zenon e do ascendente artilheiro Casagrande.
Logo no início, Zico acertou a trave do goleiro César. Mas foram os paulistas que abriram o placar com Wladimir pegando rebote de escanteio e chutando de fora da área. A bola ainda desviou em Marinho no meio do caminho e traiu Cantarele, substituto de Raul naquela partida. Mas o Fla reagiria ainda no primeiro tempo, com Zico recebendo de Tita e batendo colocado, também de fora da área, decretando o 1 a 1. E ainda reclamaria de um pênalti de Wladimir em Tita na etapa final. Mas o resultado acabou sendo bom.
Mas boas não foram as notícias ao longo da semana seguinte, antecedendo o confronto com o Atlético no Maracanã. Na terça, no treino da Seleção para o amistoso contra a Tchecoslováquia no Morumbi, Leandro contundiu o joelho direito num choque com Mário Sérgio. No mesmo dia, Lico não foi treinar na Gávea, acamado com febre e dor de garganta. Na quinta, foi a vez de Nunes torcer sozinho o mesmo joelho direito no treino e ser descartado da partida. A lesão o tiraria de boa parte do campeonato.
A camisa 9 seria vestida pelo potiguar Reinaldo, enquanto Figueiredo, improvisado, entraria no lugar de Leandro na lateral. Menos mal que Lico se recuperou e que Raul também estava de volta, refeito das dores na coluna que o tiraram do jogo com o Corinthians. Só que o primeiro tempo no Maracanã não foi nada favorável ao Fla. Os mineiros abriram o placar aos 15 minutos, quando Reinaldo (o do Galo) pegou rebote de cobrança de falta de Éder na trave. E aos 36, Figueiredo fez falta dura e foi expulso, deixando o Fla com dez.
Raul ainda impediu, com duas excelentes defesas, que o time fosse em desvantagem maior para o intervalo. Carpegiani então sacou Reinaldo (o rubro-negro) e colocou Vítor na cabeça de área, deslocando Andrade para a lateral. Mais organizado, mesmo com um a menos, o Fla partiu para outra reação. Aos 28, Junior bateu falta alçando para a área, Mozer subiu no segundo andar para escorar, e Adílio entrou tocando para as redes. E o mesmo Mozer, aos 36, fez o da virada por 2 a 1, em cabeçada à la Rondinelli após escanteio.
A comemoração daquela virada foi embalada por “Bumbum Paticumbum Prugurundum”, samba-enredo do Império Serrano vencedor do Carnaval daquele ano, entoado a plenos pulmões pela torcida rubro-negra. E Adílio – que finalmente havia sido lembrado por Telê Santana para os dois primeiros amistosos da Seleção naquele ano, contra Alemanha Oriental e Tchecoslováquia, mas não atuara um minuto sequer neles – deixava o gramado do Maracanã saudado e aclamado como o melhor jogador da partida.
No jogo seguinte, diante do Inter no Maracanã na quinta-feira (11), o time acabou surpreendido por um adversário extra: as águas de março. A chuva intensa encharcou o gramado e prejudicou o toque de bola rubro-negro, deixando o duelo à feição do time colorado, mais pesado sobretudo na defesa. Mesmo assim, Zico ainda colocou o Fla na frente, aproveitando bola espirrada após um chute de Andrade que desviou em Mauro Pastor. Mas os gaúchos igualaram na etapa final com o ex-rubro-negro Rodrigues Neto.
O empate em 1 a 1 provocou vaias da torcidas e críticas da imprensa (“Fla joga errado e empata com Inter”, mancheteou o Jornal do Brasil). E foi considerado um ponto perdido, uma vez que agora a equipe teria duas partidas seguidas fora do Rio, contra o quase eliminado Atlético e o mesmo Internacional, e dois resultados ruins colocariam a classificação para as oitavas em risco. Para piorar, Adílio se lesionou e seria desfalque certo no Mineirão contra o Galo, que não vencia o Fla há sete jogos, desde 1980.
O Flamengo, porém, esteve irreconhecível em Belo Horizonte. Apático e envolvido pelo Atlético, viu o adversário marcar com Reinaldo no primeiro tempo e perder outras chances. No começo da etapa final, pouco depois de um pênalti de Jorge Valença em Leandro ter sido ignorado pelo árbitro, o Fla ainda chegou ao empate com Anselmo, que entrara no intervalo. Mas a tarde era mesmo do Galo, que voltou a marcar com Éder e Renato – este, após falha de Mozer – e pôs fim ao seu jejum vencendo por 3 a 1.
A vitória do Corinthians sobre o Inter no Morumbi no outro jogo do grupo deixou os paulistas disparados na liderança com sete pontos e praticamente garantidos, ao mesmo tempo em que embolou a briga entre os outros três. O Fla vinha na segunda colocação com quatro pontos, um a mais que o Atlético e dois à frente do Inter, a quem enfrentaria em jogo de vida ou morte no Beira-Rio na quarta-feira, 17. Adílio retornava ao time e Vitor, ao banco. O que provocou certa celeuma entre Paulo César Carpegiani e Telê Santana.
Acontece que na véspera do jogo, o técnico da Seleção Brasileira anunciou o volante rubro-negro não apenas entre os convocados, mas como titular do escrete para a partida contra a Alemanha Ocidental no domingo seguinte. Reserva de Andrade no time ideal do Flamengo de Carpegiani, Vitor teve sua inclusão defendida por Telê com base no que o treinador mineiro havia visto de suas atuações. “Minha opinião é a que interessa e para mim Vitor está bem”, declarou taxativo o comandante canarinho.
Curiosamente, Andrade chegou a ser dúvida por dores no joelho direito. Mas começou jogando e viu Zico abrir o placar para o Fla aproveitando de cabeça um rebote do goleiro Benítez. Mas os colorados empataram ainda na etapa inicial com Mauro Pastor. Ainda sentindo a lesão, Andrade saiu e deu lugar a Vitor. Mas foi o Inter quem passou à frente com Geraldão. Se o empate já era considerado um resultado ruim para as chances rubro-negras, a derrota parcial deixava tudo pior ainda. Mas aquele era um time de brio.
Aos 30 minutos, uma linha de passe do Fla na área colorada que começou na esquerda com Lico e passou por Adílio e Zico chegou ao centroavante Reinaldo, que entrara no lugar de Anselmo. O potiguar mandou um balaço para as redes, e mais um vira-vira rubro-negro começava. Aos 42 minutos, o gol decisivo chegaria quando Vitor recebeu na entrada da área e, com uma chicotada de pé esquerdo, superou Benítez, definindo o placar em 3 a 2 – resultado que acabou resolvendo toda a situação do grupo.
No outro jogo do grupo na rodada, o Corinthians derrotou o Atlético no Morumbi e chegou aos nove pontos ganhos, garantindo a classificação e a primeira colocação do grupo com uma rodada de antecedência. Já o Fla, ao vencer o Inter, chegou aos seis pontos e se garantiu como o segundo colocado, já que não poderia mais ser ultrapassado nem pelo Galo (com três pontos), nem pelo Colorado (com apenas dois). O Flamengo fecharia sua campanha na fase recebendo o Corinthians no Maracanã, na quinta-feira, 25.
Mas antes seria a vez de meio time rubro-negro vestir a camisa canarinho no amistoso contra a Alemanha Ocidental no mesmo Maracanã. Um jogo anunciado como o confronto entre as duas maiores favoritas para a Copa da Espanha dali a poucos meses. Com Vitor, Adílio e Zico formando o meio-campo, além de Leandro e Junior nas laterais, o Brasil venceu por 1 a 0 no fim, num gol com a assinatura do Fla: tabelinha pela esquerda entre Junior e Adílio, que devolveu por cima para o lateral estufar as redes.
Se aquele domingo da vitória sobre os alemães foi um raro dia de sol no Rio naquelas semanas, o “amistoso de luxo” contra o Corinthians na quinta à noite foi mais uma vez disputado sob chuva forte. Com Zico (de pênalti) e Tita marcando nos 15 minutos finais, o Flamengo venceu por 2 a 0 e quebrou a invencibilidade de 23 jogos mantida pelos paulistas desde novembro do ano anterior. Encerrada a segunda fase de grupos, no fim de semana seguinte já começaria a etapa de mata-mata, a partir das oitavas de final.
NO MATA-MATA, O REGULAMENTO COMO ADVERSÁRIO
O adversário do Flamengo nesta etapa seria o Sport, primeiro colocado no Grupo D, à frente de Bahia, XV de Jaú e Paysandu, adversários bem mais modestos que os enfrentados pelo Fla. Os pernambucanos, porém, teriam duas vantagens pelo regulamento: a de jogar pelo empate no placar agregado e a de decidir a vaga como mandante. Esse direito vinha do fato de ter tido melhor campanha na fase anterior – a recém-encerrada – no desempate pelo saldo de gols (em pontos, os dois ficaram empatados).
Era um casuísmo do regulamento que tornaria a fazer o Flamengo entrar em desvantagem mais adiante, nas quartas de final e na própria decisão, ainda que ao longo da competição tivesse tido campanha melhor não só que o Sport (na soma total, 23 pontos ganhos contra 21), como também quanto aos futuros adversários naquelas etapas. Para piorar, no jogo de ida no Maracanã, o time do Flamengo teve de enfrentar mais uma vez as chuvas torrenciais que encharcaram o gramado e prejudicaram seu toque de bola.
O campo alagado favorecia o pesado time do Sport (seu zagueiro Marião, por exemplo, pesava mais de 100 kg), mas mesmo assim o Fla conseguia criar uma chance atrás da outra. Zico, batendo de virada aos sete minutos de jogo, abriu o placar. Mas o segundo gol só sairia no segundo tempo, outra vez com o Galinho, após receber passe de Adílio aos 20 minutos. Embora o Sport chegasse a acertar o travessão com Givanildo, o Flamengo havia criado oportunidades para golear. Ficou com o 2 a 0 para sustentar na volta.
Precisando vencer pela mesma diferença, o Sport partiu para o abafa no jogo da volta na Ilha do Retiro e aproveitou falha de defesa do Fla para abrir o placar. Ainda no primeiro tempo, Leandro empatou num belo gol de cobertura da lateral, num lance em que o goleiro País escorregou. Mas o time pernambucano recuperou a vantagem logo no começo da etapa final em outro momento de indecisão da defesa carioca. Com o placar final de 2 a 1, o jogo teve ainda dois gols anulados em lances polêmicos, um para cada lado.
O gol anulado do Sport, marcado por Édson, foi invalidado pela bola ter saído pela linha de fundo no momento do cruzamento (ainda que outras fontes apontem a marcação de impedimento do ponteiro pernambucano). Já no do Flamengo, a arbitragem invalidou um lance absolutamente legal de Leandro, que recebeu um lançamento vindo de trás, infiltrou-se na defesa do time da casa, driblou o goleiro e tocou para a meta vazia. Esse gol anulado do Fla, aliás, vale um parêntese sobre um caso posterior.
Décadas depois daquele jogo, a TV Globo de Pernambuco levou ao ar em seu noticiário esportivo uma matéria relembrando a partida, sobre a qual o repórter, numa analogia não só tosca como perniciosa, pretendeu passar a ideia de que seria a razão do “medo” do Flamengo de enfrentar o Sport pelo título brasileiro de 1987. Acontece que a reportagem citava o gol anulado do time da casa, mas simplesmente omitia o de Leandro, tentando induzir à crença de que os pernambucanos haviam tido a classificação “roubada”.
Diga-se, aliás, que a edição original do jogo para os “Gols do Fantástico” da TV Globo também trazia só o lance anulado do Sport, embora a legalidade do gol invalidado de Leandro tenha sido afirmada de maneira enfática na transmissão da partida na época. Por outro lado, a revista Placar registra os dois lances como “mal anulados” em sua ficha do jogo (assinada pelo repórter pernambucano Lenivaldo Aragão), assim como outros periódicos nacionais de então. Ou seja: o Fla também foi prejudicado e sua classificação é incontestável.
A derrota no Recife fez com que o Flamengo novamente entrasse em desvantagem nas quartas de final. Seu adversário seria o Santos, que havia superado o Londrina nas oitavas com uma vitória por 1 a 0 e um empate em 0 a 0 (sim, a “melhor campanha na fase anterior” também valia para os mata-matas). No total de pontos ao longo do certame até ali, o Fla somava 25 contra os 22 do Peixe. Mas não importava: o primeiro jogo seria no Maracanã e o segundo no Morumbi, com os paulistas jogando por resultados iguais.
Ao Flamengo, restaria vencer no Maracanã para reverter a vantagem santista e poder passar a jogar pelo empate na partida de volta. O primeiro jogo aconteceu numa noite de sábado, 3 de abril, diante de um público de mais de 65 mil torcedores e enfim com tempo seco. Mesmo assim o time saiu de novo atrás no placar: aos 19 minutos, o ponta-direita santista Paulinho Batistote recebeu e cruzou alto para a cabeçada do lateral-esquerdo Gilberto “Sorriso”, na segunda trave. Havia uma montanha para escalar.
O Fla não jogava bem, mas não desistiu em nenhum minuto. Foi à frente, empurrado pela torcida, e chegou ao empate no segundo tempo, aos 28 minutos: Junior ganhou uma disputa de bola na ponta esquerda, girou e cruzou alto. Tita saltou mais que a zaga santista e o goleiro Marolla (que vinha fazendo seus milagres até ali) e desviou para as redes, rapidamente indo buscar a bola dentro da meta para apressar a reação. Com seus dez jogadores de linha no campo de ataque, o Flamengo encurralava o time paulista.
Até que, com o relógio já se aproximando dos 44 minutos do segundo tempo, Adílio recebeu de Andrade, carregou e abriu mais uma vez na ponta para Chiquinho, que havia entrado no lugar de Reinaldo. O ponteiro cruzou rasteiro e a bola correu por toda a extensão da boca do gol santista até chegar aos pés de um herói improvável, mas que vinha se mandando à frente desde o início: era o zagueiro Marinho, que parou, dominou e mandou de bico mesmo para estufar as redes e decretar mais uma virada rubro-negra: 2 a 1.
O que se viu no Maracanã foi um delírio. Poucos gols foram mais emocionantes, mais arrepiantes que aquele não só naquela campanha, mas em toda a história do Flamengo na competição. Um gol de vitória na raça, de êxtase após uma luta árdua e intensa. De um time tecnicamente melhor, mas que precisou superar o cansaço e uma atuação desacertada para conquistar mais uma virada marcante naquela campanha. Houve, porém, uma nota triste: Mozer fraturara a costela e seria desfalque pelo resto do campeonato.
Figueiredo seria o novo titular da zaga a partir do jogo da volta, numa terça à noite no Morumbi. Quem também voltava era Nunes, mas ainda fora de forma e pouco podendo fazer. No primeiro tempo, o Flamengo foi envolvido pelo Santos, jogando sempre em velocidade pelas pontas, mas o placar permaneceu em branco. No começo da etapa final, porém, o Peixe saiu na frente com Batistote logo aos três minutos, resultado que o classificaria. Mais uma vez, os rubro-negros teriam de correr atrás.
Só que depois do gol o Santos recuou, e o Flamengo aos poucos assumiu o controle do jogo. Até que aos 37, num escanteio cobrado por Tita, Leandro escorou de cabeça e Zico, meio de costas, girou para testar às redes de Marolla, decretando o 1 a 1 que classificava um Flamengo esgotado fisicamente pela maratona de jogos, mas vivo no campeonato. No entanto, a lista de baixas para a próxima partida ganharia os nomes de Tita e Nunes, que receberam mais um cartão amarelo e teriam de cumprir suspensão.
UM TIME PARA DENTRO E FORA DE CASA
Horas antes do jogo de ida das semifinais, contra o Guarani no Maracanã, foi confirmado o quarto desfalque: Raul, que sofrera uma pancada no joelho durante uma pelada, estava definitivamente vetado da partida contra a equipe que ostentava até ali a melhor campanha geral e o melhor ataque do Brasileiro. Dirigido por Zé Duarte, o Bugre tinha um grande time, no qual se destacava um exuberante quinteto ofensivo, mas também contava com alguns jogadores experientes ou promissores em outros setores.
No gol estava o veterano Wendell, ex-Botafogo. No miolo de zaga havia o ex-rubro-negro Jayme. De volante, aparecia o garoto Júlio César, que em breve recuaria ao centro da defesa e chegaria à Seleção Brasileira na Copa de 1986. E mais à frente havia o demolidor quinteto formado pelos meias Ernâni Banana e Jorge Mendonça, os pontas Lúcio e Zezé (que em breve iriam para a Gávea) e o centroavante Careca. Nas 18 partidas que havia feito até ali, o Bugre vencera nada menos que 14, marcando 50 gols e sofrendo 17.
O time campineiro havia impressionado desde a primeira fase, com goleadas arrasadoras sobre Ceará (8 a 1), River do Piauí (8 a 0) e Botafogo (4 a 1). Foi a única equipe do campeonato a igualar os 15 pontos ganhos em 16 possíveis do Flamengo naquela etapa. Já na segunda fase, terminou à frente do Grêmio, derrotando os gaúchos no Brinco de Ouro e sofrendo sua única derrota no Olímpico quando já estava classificado. Para completar, vinha de eliminar o São Paulo nas quartas de final vencendo os dois jogos.
Se tinha os desfalques, o Flamengo contava com outro grande trunfo para tentar a vitória e, se possível, uma boa vantagem para ser defendida em Campinas na volta: a torcida. Naquela tarde de domingo, 11 de abril, nada menos que 120.441 pagantes – o quarto maior público da história do Campeonato Brasileiro até ali – empurraram o time, que encurralou um atarantado e assustado Guarani no primeiro tempo, marcou duas vezes e desperdiçou outras quatro ótimas chances de sair ao intervalo com vantagem ainda maior.
Tendo Cantarele sob as traves, Figueiredo já estabelecido na zaga ao lado de Marinho e Chiquinho na ponta no lugar de Tita, o herói e destaque do Flamengo na etapa inicial seria o surpreendente substituto de Nunes: o ponta-de-lança alagoano Peu, 21 anos, que não fazia uma partida pelo Fla há quase seis meses (desde outubro de 1981, quando entrou no lugar de Zico durante o jogo com o Deportivo Cali no Maracanã pela Libertadores). Superando a falta de ritmo de jogo com movimentação incessante, ele seria premiado.
O Flamengo abriu o placar logo aos 12 minutos, quando Adílio fez um belo passe por elevação que encontrou Zico na área. O camisa 10 dominou no peito, girou e chutou mesmo sem equilíbrio para vencer Wendell. E aos 20, o time voltou a apertar o perplexo Guarani e Zico desarmou Júlio César. A bola sobrou para Peu, que arrancou até a área e chutou para a defesa apenas parcial de Wendell. O rebote voltou para o jovem alagoano, que tocou com calma, rasteiro, cruzado, no canto direito do goleiro para ampliar a vantagem.
Com Jorge Mendonça anulado por Andrade e Figueiredo vigiando Careca, o Flamengo ia à frente e criava chances de golear. Porém, aos 35 minutos, numa disputa de bola perto da linha de fundo com o lateral Almeida, Peu sofreu um estiramento muscular na coxa esquerda. Era o fim do jogo e do campeonato para o herói da tarde. Anselmo entrou em seu lugar, mas o Fla não voltou com a mesma intensidade para a etapa final. Foi quando o Guarani cresceu e descontou com Lúcio, numa indecisão entre Leandro e Cantarele.
O Brinco de Ouro recebeu mais de 52 mil torcedores, o maior público de sua história – superando inclusive o da decisão do Brasileiro de 1978, conquistado pelo Bugre sobre o Palmeiras – para a partida da volta, na noite de quinta-feira, 15 de abril. E a torcida da casa começou festejando: aos três minutos, Zezé bateu escanteio, Careca desviou e Jorge Mendonça emendou um voleio para abrir o placar. Porém, quando a pressão inicial bugrina se esvaiu, o Flamengo retomou o controle com seu jogo de toques e chegou ao empate.
O primeiro gol rubro-negro também nasceu de um córner, mas cobrado curto, de Lico para Junior, que alçou quase do bico da área. Zico cabeceou consciente e venceu Wendell pela primeira vez. Mesmo com o Guarani agora precisando sair para buscar a vitória e a classificação, era o Fla que continuava dono do jogo. E no começo da etapa final, a vantagem ficaria ainda mais confortável: aos dois minutos, Zico tabelou com Lico e desferiu, da intermediária mesmo, um chute poderoso, que viajou até entrar no canto direito do goleiro.
Tão senhor do jogo era o Flamengo que até o zagueiro Figueiredo – habitualmente contido no apoio – decidiu ir ao ataque aos 19 minutos. Depois de cortar uma tentativa de lançamento, ele tabelou com Leandro, ultrapassou a linha intermediária e seguiu avançando sem ser pressionado até próximo à área bugrina. Lá dentro, porém, levou uma entrada do zagueiro Édson num pênalti escandaloso ignorado pelo árbitro Carlos Sérgio Rosa Martins, que três minutos depois acabaria apitando outra penalidade num lance menos claro.
Foi numa jogada em que Adílio entrou sozinho na área e bateu para a defesa parcial de Wendell. No rebote, Zico chutou e o lateral Almeida cortou, mas aparentemente com a cabeça ou o peito. O árbitro considerou que havia sido com o braço e apontou a marca da cal. Zico bateu no canto, deslocando o goleiro, e fez 3 a 1. No apagar das luzes, Jorge Mendonça diminuiu para 3 a 2, mas a vaga era do Fla. “Não podemos negar que o Flamengo mereceu a vitória”, disse após o jogo o técnico bugrino Zé Duarte ao Jornal do Brasil.
Os três gols de Zico naquela noite em Campinas também escreviam uma história à parte: a da acirrada briga pela artilharia do Brasileiro. Ao fim das oitavas de final, o são-paulino Serginho era o líder disparado da classificação dos goleadores: havia marcado 20 gols, contra 17 de Careca e 16 da revelação Sávio, da já eliminada Anapolina. Zico vinha só em quarto, com 15. Nas quartas, porém, o São Paulo de Serginho ficou pelo caminho, eliminado pelo Guarani de Careca, autor do gol da vitória de 1 a 0 no Morumbi na ida.
O gol de Zico na partida de volta contra o Santos que valeu a passagem rubro-negra às semifinais havia sido seu 16º – empatando, portanto, com Sávio. O 17º tento saiu contra o Guarani no Maracanã. Careca, que não marcara no jogo de ida, ainda teve de assistir a Zico balançar as redes três vezes em Campinas, o que significava não só ultrapassar o goleador bugrino como empatar com os 20 da marca de Serginho. Único a seguir no torneio, o Galinho se via agora na iminência de assumir o topo da lista de artilheiros.
AS TRÊS BATALHAS DECISIVAS
Pela frente na final estava o Grêmio, outro favorito desde o início da competição e buscando o bi nacional. Vinha cumprindo, aliás, trajetória bem semelhante à campanha do ano anterior: absurdamente irregular nas fases de classificação (em especial na primeira, na qual somou só nove pontos e foi derrotado por São José e Desportiva fora de casa e pelo Vitória dentro do Olímpico) e crescendo a partir do mata-mata, ao deixar pelo caminho Vasco, Fluminense e Corinthians. Era um time essencialmente de competição.
A equipe dirigida por Ênio Andrade – técnico que buscava seu terceiro título brasileiro em quatro anos, após levar a taça com o Internacional em 1979 e o Grêmio em 1981 – contava com jogadores rodados na maioria das posições. No gol, a frieza de Leão. Na zaga, a imposição do uruguaio De León. No meio-campo, o dinamismo de Batista, a elegância de Paulo Isidoro e a lucidez de Vílson Tadei. E no ataque, a rapidez de Tarciso e o ímpeto de Baltazar. Era, sobretudo, uma equipe que não se assustava ao jogar fora de casa.
Ao longo da competição, o time sofreu mudanças, com alguns novatos tomando o lugar de nomes mais experientes. Na lateral direita, o promissor Paulo Roberto entrou no lugar de Uchoa. Mais à frente, Bonamigo virou o titular da meia esquerda em vez de Vílson Tadei. E no ataque, Julio César “Uri Geller” cedeu o posto ao falso ponta Tonho, tornando o time mais compacto. Nas finais, com a lesão de Vantuir (ex-Atlético-MG) logo no início do jogo do Maracanã, outro garoto, Newmar, passou a ocupar a zaga central.
O Grêmio teria ainda a vantagem do regulamento, que apresentava diferenças para a decisão em relação às etapas anteriores do mata-mata. Em primeiro lugar, acabava a vantagem de jogar por resultados iguais. Em caso de empate no agregado após 180 minutos, estava prevista a realização de uma terceira partida. Nesta, caso não houvesse vencedor no tempo normal, as duas equipes seguiriam para a prorrogação e, caso necessário, disputa de pênaltis. A vantagem do mando, no entanto, persistia – e com adendos.
Para definir quem faria o segundo jogo da decisão em casa, agora seria levada em conta toda a pontuação somada desde a segunda fase. E no caso de ser necessário um terceiro jogo, este seria realizado no mesmo local da partida de volta. O Grêmio, assim, levava vantagem: com o descarte das campanhas na primeira fase, ele passava a somar um ponto a mais que o Flamengo (no total, o Fla somava 32 contra 27 dos gaúchos), casuísmo que lhe permitiria disputar dois terços das finais (ou até mais) diante de sua torcida.
Assim, o primeiro jogo seria disputado no Maracanã em 18 de abril. Confessadamente jogando pelo empate, Ênio Andrade montou uma barreira defensiva no próprio campo, tendo em Paulo Isidoro, além de mais um no bloqueio, o municiador de eventuais contra-ataques para Tarciso e Baltazar na frente. Mesmo Paulo Roberto, um lateral de características ofensivas, jogou preso à marcação do lado esquerdo do ataque do Fla, que teve a bola, rondou, rondou, mas raramente conseguiu furar a trincheira gremista.
Por outro lado, Raul era um mero espectador, visto que o Grêmio quase não chegava ao ataque. No segundo tempo, por volta dos nove minutos, a torcida pediu pênalti num lance em que Batista chegou atrasado num carrinho e entrou com os dois pés em Zico quando a bola já havia passado. José Roberto Wright, perto do lance, preferiu ignorar. Na metade da etapa final, Carpegiani tirou Lico e colocou o ponta Chiquinho, buscando abrir o ferrolho gremista. Mas aos 38, o destino do jogo pareceu ter sido selado.
Após mais um chutão para frente da defesa gremista, a bola foi escorada na linha intermediária e chegou a Paulo Isidoro no campo de ataque. Ele abriu com Tonho na esquerda e recebeu de volta na frente para chutar cruzado quase da linha de fundo. Raul se abaixou para defender, mas a bola bateu em seu joelho e voltou para Tonho, na entrada da área. O falso ponta bateu meio mascado e a bola resvalou em dois rubro-negros, inclusive em Junior em cima da linha, antes de morrer no fundo das redes. Silêncio no Maracanã.
Para o Grêmio já era o lucro dos lucros. Se com o empate o time já se postava quase todo atrás, vencendo então era o momento de furar a bola. Com a confiança em alta, a torcida gremista no estádio já gritava “é campeão” faltando sete minutos para o fim da primeira partida. Já para a esmagadora maioria dos 138.107 presentes, o jeito era se apegar às derradeiras esperanças. Mas quando elas atendiam pelo nome de Zico, era certo que alguma coisa ainda poderia acontecer. E, a um minuto do apito final, aconteceu.
Após o enésimo chutão gremista, a bola saiu pela lateral. Marinho fez o arremesso buscando Junior na ponta esquerda. O Capacete ganhou a disputa com Paulo Roberto e cruzou para a área. Num dos raros momentos em que escapou da vigilância de Batista, Zico recebeu, ganhou de Newmar e bateu cruzado, na saída de Leão: 1 a 1. Era o empate milagroso que enlouqueceu o Maracanã. Era o 21º gol do Galinho, artilheiro isolado. E era mais um resultado o qual um Flamengo que nunca se entregava foi buscar naquela campanha.
Se o primeiro jogo havia sido travado, porém com gols, o segundo (disputado na tarde de quarta-feira, feriado de 21 de abril no Olímpico) foi do mesmo jeito, mas com os papeis invertidos – o Grêmio, jogando em casa, saindo mais e o Fla mais recuado – e sem bola na rede. Raul fez duas boas defesas, Baltazar acertou a trave e Paulo Roberto salvou em cima da linha uma cabeçada de Lico que tinha endereço certo do gol. Fora isso, um Grêmio muito previsível e pouco criativo, limitando-se a arriscar chutes de fora da área.
“Acho que se os dois times jogassem 90 dias também não ia sair gol. Claro que as oportunidades surgiram, mas não de jogada trabalhada, apenas lances normais de jogo”, avaliou João Saldanha em sua coluna no Jornal do Brasil. “Sorte é que domingo tem que acabar, nem que os jogadores fiquem em campo até meia-noite ou duas horas da manhã, em prorrogação ou batendo pênalti”, complementou mais adiante. Na verdade, nem precisaria tanto, como o Flamengo trataria de mostrar no terceiro e decisivo confronto.
Mais solto que no duelo anterior, retomando seu jogo de toques, o Flamengo teve uma chance logo no primeiro minuto com Nunes, que acabou levando uma cotovelada de Leão após este fazer a defesa. O goleiro gremista tinha seus antecedentes: em 1978, jogando pelo Palmeiras na decisão do Brasileiro contra o Guarani, cometeu o mesmo gesto contra o bugrino Careca e foi expulso, tendo ainda o pênalti marcado para a equipe campineira. Desta vez, porém, o árbitro Oscar Scólfaro contemporizou: só marcou falta de Nunes.
O Grêmio respondeu com duas chances, e de fato seria quem mais atacaria no jogo (até porque logo precisaria correr atrás do prejuízo). Mas, assim como na partida anterior, impressionava a pobreza de ideias ofensivas do time gaúcho, limitadas ao chuveirinho e a chutes de fora da área, sem qualquer jogada mais trabalhada. A diferença de desenvoltura de jogo entre as duas equipes ficaria evidente no lance completo que resultou no gol rubro-negro, marcado por Nunes logo aos dez minutos do primeiro tempo.
Adílio recebeu de Junior, carregou e deu a Tita na altura da linha divisória. Nisso, dois gremistas vieram tentar o carrinho, mas trombaram um contra o outro feito jamantas desgovernadas. Tita seguiu com a bola (um dos gremistas tentou outro carrinho, mas não achou nada) e devolveu a Adílio, que levou entrada dura de De León. A falta cobrada chegou a Zico, que enfiou a bola por entre as pernas de Vílson Tadei e fez o passe reto, vertical a Nunes. O centroavante correu em paralelo à bola e chutou firme, no canto, na saída de Leão.
Na etapa final, os gremistas seguiram recorrendo ao chamado “futebol-força”, levando-o ao pé da letra num lance confuso na área aos 10 minutos em que reclamaram de toque de mão da defesa rubro-negra, numa ocasião em que pareceram querer empurrar jogadores adversários, bola e tudo mais que viram pela frente para as redes. Como se, diante da falta de recursos técnicos, procurassem fazer o gol na marra. Mas Raul apareceu para espalmar antes que a bola entrasse, como relembrou após o jogo ao Jornal do Brasil.
“Foi um dos muitos chuveirinhos do Grêmio. A bola sobrou se não me engano para o Tonho, que chutou e eu rebati. Então ela ganhou altura e o Paulo Isidoro cabeceou. Ela resvalou naquele monte de gente na minha frente e ia entrar. Levantei-me e dei um tapa para o lado. Paulo Isidoro também tentou acertá-la com a mão. Felizmente cheguei primeiro, pois se ele consegue empurrá-la para dentro do gol, o juiz dificilmente anularia. Tinha muita gente na área e ele não tinha condições de ver nada”, explicou o goleiro.
O Flamengo então passou a segurar a vantagem com inteligência e vigor, mostrando que sabia também ser sólido na defesa. Raul brilhava. Leandro, lesionado, saiu para entrar o garoto Antunes, cria da base e filho do roupeiro rubro-negro Ferrugem, falecido no ano anterior. Nunes deu lugar a Vítor para reforçar o bloqueio. E assim foi até o apito final, que deu início à festa carioca em plena Porto Alegre. “Foi uma bela vitória do Flamengo, um time maduro, sem dúvida nenhuma o melhor do Brasil”, escreveu João Saldanha.
De sua casa em Belo Horizonte, Telê Santana também analisou a final e parabenizou o Flamengo por vencer “com a autoridade de um campeão”. Segundo o treinador da Seleção, “o Flamengo foi uma equipe mais consistente e mais consciente” de sua superioridade técnica e “repetiu contra o Grêmio em Porto Alegre a sua categoria de um campeão internacional. Jogou no campo do adversário com a categoria com que joga no seu próprio terreno”, elogiou Telê em declarações publicadas pelo Jornal dos Sports.
Na Placar, o jornalista gaúcho Divino Fonseca também exaltou o campeão: “Foi, então, o Flamengo total. Belíssimo, artístico, arrebatador no primeiro tempo. Forte, heroico, intransponível no segundo”, escreveu, antes de arrematar magistralmente sua crônica aludindo ao episódio da história do Brasil que simbolizou a Revolução de 1930 e a chegada de Getúlio Vargas ao poder: “O Flamengo tinha conquistado o título de campeão brasileiro dentro do orgulhoso pampa. Aquilo tinha o sabor de amarrar o cavalo no obelisco”.
UMA CAMPANHA PARA SER EXALTADA
Além de todo o simbolismo, de enterrar de vez a história de “time de Maracanã” e de unificar as conquistas, a campanha vitoriosa do Flamengo no Brasileiro de 1982 impressiona também ao ser colocada na ponta do lápis. Foram 23 partidas, 15 vitórias, seis empates e apenas duas derrotas, 48 gols marcados e 27 sofridos. Dos 46 pontos que disputou, incluindo as fases de mata-mata, o time conquistou 36, o que dá um aproveitamento de 78,3%, superado por estreita margem de décimos apenas pela conquista de 2019.
Em casa, o Flamengo não foi derrotado nenhuma vez (com efeito, o clube estava bem no meio de sua longa série invicta no Maracanã contra times de fora do Rio de Janeiro pelo Brasileiro, que se estendeu de março de 1980 a março de 1985). Naquela campanha somou oito vitórias e três empates em seus domínios – e compensou todos os três tropeços derrotando fora de casa Náutico, Internacional e Grêmio. Já como visitante os números também foram muito bons: sete vitórias, três empates e duas derrotas nas 12 partidas.
Outro dado que merece destaque são os pontos que o Flamengo foi buscar após estar atrás no placar. Nada menos que sete das 15 vitórias – quase metade – vieram de virada. Quatro delas fora de casa contra São Paulo, Náutico, Inter e Guarani. E em três dos seis empates, o time saiu em desvantagem e foi buscar a igualdade. Números que permitem apontar uma equipe reunindo muita experiência e poder de decisão a uma garra e determinação para perseguir o resultado até os últimos instantes, como muitas vezes aconteceu.
Num tempo em que o torneio tinha várias fases e grupos e no qual nem sempre todos os grandes se enfrentavam, o Flamengo de 1982 mediu forças com um número considerável dos principais clubes do país e venceu todos, alguns mais de uma vez: São Paulo (no Maracanã e no Morumbi), Corinthians, Santos, Atlético-MG, Grêmio (no Olímpico) e Inter (no Beira Rio). E ainda venceu em casa e fora o Guarani, principal força entre os médios. Ao bater o Bugre, aliás, se consolidou como o dono da melhor campanha da competição.
Em resumo, foi uma trajetória irretocável sob todos os aspectos. O Flamengo jogou e ganhou de norte a sul do país. Venceu com emoção ou com eficiência, com brilho ou com raça. Somou mais pontos e teve mais vitórias (mesmo numa época em que isso nem sempre se traduzia em título). E teve ainda o grande goleador da competição. Uma das campanhas mais perfeitas dentre suas oito conquistas no Brasileirão, o título de 1982 está acima de contestações e merece destaque na galeria de grandes feitos rubro-negros.