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Repleto de história, o estádio do Barcelona já recebeu muitos dos maiores jogadores e times de todos os tempos. O Camp Nou, como ficou popularmente (e, mais tarde, oficialmente) conhecido, foi inaugurado há exatos 60 anos, no fim de setembro de 1957, em festejos que se estenderam por vários dias, e para os quais o Flamengo teve a honra de ser um dos convidados. E o time rubro-negro, que contava com nomes históricos do clube, como Dida, Henrique e Zagallo, não decepcionou os torcedores catalães: numa atuação primorosa sob todos os pontos de vista – técnico, tático, físico –, os comandados do paraguaio Fleitas Solich golearam os ingleses do Burnley por 4 a 0, arrancando entusiasmados aplausos do público local, como contaremos agora.
O BARCELONA E A AMBIÇÃO DA NOVA CASA
No início dos anos 50, o Barcelona tinha grandes ambições: além de brigar pelo título espanhol e por taças internacionais como a Copa Latina, pretendia também subir de patamar como clube. Em 1951, contratara o meia húngaro László Kubala, que chegou com status de estrela à Catalunha e imediatamente fez aumentar o número de torcedores que desejavam vê-lo em ação. Paralelamente, na capital espanhola, o Real Madrid (que despontava como seu principal rival nacional), ampliava seu estádio Chamartín (o atual Santiago Bernabéu) para receber até 120 mil espectadores, transformando-o no maior do país e um dos maiores da Europa e do mundo.
Os blaugranas não poderiam ficar para trás nessa briga. Porém, o projeto de crescimento do clube esbarrava em seu estádio de Les Corts, inaugurado em 1922 com capacidade para 20 mil torcedores, e que na época havia sido expandido para caber até 60 mil. Mas as possibilidades de ampliação já haviam chegado ao limite. A solução vislumbrada pelo presidente Francesc Miró-Sans era construir um estádio inteiramente novo, em outro local nas imediações.
Projetado pelo arquiteto Francesc Mitjans, o novo campo teve sua construção iniciada em março de 1954 e apesar de problemas com o terreno terem atrasado o desenrolar das obras e encarecido sua concretização, tudo ficou pronto cerca de três anos e meio depois, no começo de setembro de 1957. Para a inauguração, marcada para o dia 24 daquele mês – dia de La Mercè, a padroeira da cidade de Barcelona – o clube preparou uma grande festa, convidando equipes do mundo inteiro para se apresentarem em meio ao cerimonial. Um destes clubes convidados foi o Flamengo, que no fim de abril havia negociado com o clube catalão o atacante Evaristo de Macedo.
Evaristo vinha em grande fase no primeiro semestre de 1957: comandara o setor ofensivo do Fla na série de amistosos contra o mítico Honvéd húngaro no Maracanã, Pacaembu e em Caracas, na Venezuela, saindo-se como o artilheiro dos cinco confrontos. Depois, fora convocado para a Seleção Brasileira, disputando o Campeonato Sul-Americano (no qual estabeleceria o recorde de gols em um mesmo jogo pelo Brasil, vigente até hoje, ao marcar cinco vezes nos 9 a 0 sobre a Colômbia) e as Eliminatórias para a Copa do Mundo da Suécia, sofrendo a falta que originaria o famoso gol de “folha seca” do meia Didi contra o Peru no Maracanã, que classificaria o escrete canarinho para o Mundial.
A FÁBRICA DE CRAQUES DO FLA
O Flamengo, por sua vez, vivia um processo de renovação naquele ano de 1957. Manuel Fleitas Solich, o paraguaio que levou o clube ao tricampeonato carioca entre 1953 e 1955 ainda estava no comando, mas o time começava a sofrer modificações. No gol, o também paraguaio García já não era mais o titular, cedendo o posto a Ari, ex-Bonsucesso. E além de Evaristo, os dois outros titulares do setor central do ataque tinham sido negociados na metade do ano, ambos para o futebol paulista: Paulinho seguia para o Palmeiras, enquanto Índio se transferia para o Corinthians.
Para o lugar deles, Solich lançava vários garotos, como era de seu estilo: Joubert era o novo dono da lateral-direita, no lugar de Tomires (que ainda entrava esporadicamente). Outro garoto, Milton Copolilo, era formado para substituir Pavão na zaga central, embora também fosse utilizado em quase todas as posições do setor defensivo. E no ataque, Moacir, Henrique e Dida substituíam o trio negociado Paulinho-Índio-Evaristo. Dida, que já era frequentemente utilizado no time titular desde 1954 (havia sido o grande destaque da decisão do Carioca do ano seguinte contra o America), tinha então uma grande chance de se firmar de vez na equipe, e não desperdiçaria.
Após os amistosos com o Honved e a saída de Evaristo, o novo Flamengo foi testado em dois torneios. Primeiro no Rio-São Paulo, no qual terminou como vice-campeão ao lado do Vasco (o Fluminense levou a taça). Mas o desempenho foi bom, e o time registrou vitórias convincentes, como as goleadas diante de Santos (4 a 0) e Botafogo (4 a 1) no Maracanã e do Corinthians (4 a 0) no Pacaembu. Em seguida, veio a disputa do Torneio Internacional do Morumbi, organizado pelo São Paulo visando arrecadar fundos para construir seu estádio.
Na primeira fase, jogando no Maracanã, o Fla superou o Dinamo Zagreb iugoslavo (4 a 1) e o Belenenses português (3 a 1), além de empatar em 1 a 1 com um combinado formado por jogadores de Vasco e Santos. No quadrangular final, os rubro-negros estrearam batendo o Corinthians outra vez no Pacaembu, agora por 3 a 1, e largaram na liderança isolada. Mas o São Paulo decidiu cancelar abruptamente a competição, alegando rendas fracas, e reteve a taça.
O convite para participar dos festejos de inauguração do novo estádio do Barcelona chegou ao Flamengo no dia 24 de agosto. Os catalães ofereciam oito mil dólares, livres de despesas, para a partida a ser realizada dali a pouco mais de um mês, no dia 25 de setembro. Os dirigentes rubro-negros se declararam dispostos a aceitar a oferta caso conseguissem uma brecha no calendário, já que o Campeonato Carioca já estava em plena disputa. O clube então conseguiu que seu jogo contra o Bangu no Maracanã, pela nona rodada do primeiro turno, marcado originalmente para a noite de sábado, 21 de setembro, fosse antecipado para a quinta-feira, dia 19.
CONTRA O BANGU, O AQUECIMENTO PARA A VIAGEM
Na quinta, o Flamengo enfrentou e venceu com autoridade um bom time alvirrubro, que contava com o velho ídolo rubro-negro Zizinho, além do zagueiro Zózimo, futuro campeão mundial, e seu irmão Calazans, bom ponta-direita. O Fla abriu o placar logo nos primeiros minutos com Joel e ampliou com Henrique, antes de Mário descontar para os banguenses. Na etapa final, Henrique marcou de novo e Dida completou a goleada por 4 a 1 que deixava o time a um ponto dos líderes Botafogo e Fluminense. O próximo passo era arrumar as malas para a viagem ao Velho Continente.
A delegação rubro-negra embarcou no aeroporto do Galeão às 17h30 de sábado, dia 21, em voo da Air France, com um desfalque: o ponta-direita Joel, acometido da chamada gripe “asiática”, que se espalhou pela cidade por aqueles dias. Seria substituído por Luís Carlos, atacante versátil promovido dos aspirantes e que já vinha entrando esporadicamente no time, fosse pela direita ou pelo centro do setor ofensivo. Já na Espanha, outra baixa foi o experiente volante Dequinha, capitão do time, que sofreu distensão em um dos músculos da coxa durante um treino. Em seu lugar jogaria outro garoto, Milton Copolilo.
No dia 24, data oficial da inauguração, a delegação rubro-negra desfilou pelo estádio carregando a bandeira brasileira, sendo ovacionada pela torcida catalã, antes da partida de abertura das comemorações, na qual o Barcelona, dono da (nova) casa, venceu por 4 a 2 um combinado de Varsóvia, reunindo os principais jogadores em atividade nos clubes da capital polonesa. O ex-rubro-negro Evaristo marcou o segundo gol dos azulgranas na partida.
O Flamengo jogaria no dia seguinte contra o Burnley. Um dos fundadores da liga inglesa em 1888 e campeão nacional em 1921 e da Copa da Inglaterra em 1914, o clube da região de Lancashire viveu período de baixa depois disso, mas começara nova fase ascendente após a Segunda Guerra Mundial. Terminou na terceira colocação na temporada de retorno à elite, em 1948, e posteriormente em sexto em 1953 e sétimo em 1954, 1956 e 1957. Era, portanto, um time de porte médio, mas que havia impressionado em sua última visita à Espanha, em maio daquele mesmo ano, quando goleou o Athletic Bilbao – campeão nacional de 1956 – por 5 a 1 em pleno estádio San Mamés.
A equipe inglesa tinha como destaques o médio Jimmy Adamson e, principalmente, o meia-atacante Jimmy McIlroy, artilheiro da equipe na temporada anterior e principal jogador de uma surpreendente seleção da Irlanda do Norte que eliminaria Itália e Portugal, classificando-se para Copa do Mundo do ano seguinte, na Suécia. Além deles, outros cinco titulares da equipe que atuou naquela tarde em Barcelona levariam o Burnley a um novo título inglês dali a três anos.
O jogo teria início às 15h no horário local (11h no Rio) e seria transmitido para o Brasil pelo rádio, por meio das emissoras Continental e Mayrink Veiga, em conjunto com a paulista Pan-Americana (antecessora da atual Jovem Pan), que irradiaria a partida para São Paulo. Os locutores Rui Porto (Mayrink Veiga) e Jorge de Souza (Continental) viajaram junto com a delegação rubro-negra para Barcelona especialmente para a cobertura da partida.
O JOGO
Na hora marcada, o Fla entrou em campo sob uma salva de aplausos dos torcedores catalães e com Ari no gol, Joubert e Jordan nas laterais, Pavão e Jadir na zaga central, Milton Copolilo de volante, Moacir como meia-armador, Luís Carlos e Zagallo nas pontas, Dida como ponta-de-lança e Henrique no comando do ataque. Logo depois entrou o Burnley, com sua camisa vinho com mangas azul-claras. Com arbitragem espanhola do sr. Gómez Contreras, a partida seria disputada sob um clima quente, resquício do verão europeu, ainda que um calor não tão intenso quanto o do verão carioca no qual o Flamengo estava acostumado a atuar.
Os primeiros 15 minutos foram de estudos de parte a parte. Mas o Flamengo não demorou em impor seu jogo, o que faria durante toda a primeira etapa. Depois de dois escanteios quase seguidos, viria o primeiro gol rubro-negro aos 23 minutos. Luís Carlos bateu escanteio curto, entregando a Zagallo na ponta-esquerda. O camisa 11 cruzou com perfeição para Dida cabecear vencendo o goleiro Blacklaw de maneira inapelável. E a torcida catalã vibrou e bateu palmas pela primeira vez durante a partida.
Encurralando os ingleses, que mal conseguiam passar do meio-campo, o Flamengo marca o segundo gol três minutos depois, quase numa linha de passe. Jadir avançou e cedeu a Luís Carlos pela direita. De seus pés, a bola chegou a Moacir, que driblou o marcador e entregou a Dida. O camisa 10, que era ovacionado pelo público a cada jogada, abriu então na esquerda para Zagallo chegar na corrida e chutar forte para as redes. O estádio delirou, encantado com o jogo rubro-negro que dominou inteiramente o confronto e foi para o intervalo com vantagem de dois gols, e que poderia ser muito maior pelo volume de jogo apresentado e as chances criadas.
Em sua crônica extensa da partida, o jornal Mundo Deportivo, destacaria a engenhosidade do esquema tático de Fleitas Solich, utilizando o sistema 4-2-4, uma novidade na época (mas já incorporado pelo Fla desde a chegada do treinador paraguaio) e principalmente a intensa troca de posições no ataque rubro-negro. “O time do Flamengo se move com facilidade pelo campo, e com um sentido tático que nos impressionou”, escreveu a publicação, que também fez grandes elogios a Jadir, jogador de “portentosas condições físicas” e que atuava como uma espécie de “curinga” da defesa, cobrindo todo o setor.
O Burnley voltou para a segunda etapa disposto a reagir e chegou a pressionar o setor defensivo do Flamengo, embora sem criar chances que preocupassem o goleiro Ari. Para piorar a situação dos ingleses, aos 15 minutos o zagueiro-esquerdo Winton fez um recuo de bola pelo alto para Blacklaw, mas não notou que o arqueiro já vinha saindo em busca da bola. O gol contra, que estabeleceu o placar de 3 a 0, era mais um abalo no ânimo dos britânicos. Apesar disso, eles continuavam em cima e ainda acertaram a trave num chute de longe de McIlroy. O Fla respondeu e marcou com Luís Carlos após passe de Moacir, mas o árbitro anulou marcando toque de mão do ponteiro rubro-negro.
Até que, aos 30 minutos, o Fla fechou a contagem num sensacional lance individual de Henrique, que recebeu de Moacir perto da linha de fundo, protegeu de um zagueiro, girou, driblou mais dois, passou pelo goleiro e tocou para o fundo das redes. Ainda houve tempo para duas defesas magistrais de Blacklaw numa cabeçada de Henrique e num chute de Duca, substituto de Dida, após cobrança de escanteio. Mas o placar de 4 a 0 já estava definido e era incontestável. A grande exibição rubro-negra levou a imprensa espanhola a não poupar elogios ao estilo técnico, veloz e objetivo dos jogadores: “O Flamengo, através de seu jogo, confirmou a opinião que temos sobre o futebol brasileiro, ou seja, que talvez seja o melhor do mundo”.
Pelos anos seguintes, o Flamengo voltaria ao Camp Nou outras duas vezes. A primeira em 1962, quando enfim teve pela frente os donos da casa, o Barcelona, em amistoso disputado durante excursão europeia do time rubro-negro. A vitória por 2 a 0 veio com dois gols de Dida ainda no primeiro tempo. Mais tarde, em 1968, o Fla retornou ao grande estádio barcelonista para a disputa do prestigioso Troféu Joan Gamper, no qual derrotou o Athletic Bilbao por 1 a 0, num golaço de bicicleta de Silva Batuta, mas acabou derrotado na final pelos anfitriões numa partida movimentada, que terminou com o incrível placar de 5 a 4 para os azulgranas. Em todas essas ocasiões, o clube confirmou a excelente impressão deixada na Catalunha por aquela primeira visita, em que retribuiu o convite honroso com uma maravilhosa exibição de futebol.
Estádio do FC Barcelona, “Camp Nou” (Barcelona, Espanha) – quarta-feira, 25 de setembro de 1957
Amistoso de inauguração do estádio
Público e renda: não divulgados
Árbitro: Gómez Contreras (Espanha)
Gols: Dida (1-0) aos 23, Zagallo (2-0) aos 26 minutos do primeiro tempo, Winton contra (3-0) aos 18, Henrique (4-0) aos 30 minutos do segundo tempo.
Flamengo: Ari; Joubert, Pavão, Jadir e Jordan; Milton Copolilo e Moacir; Luís Carlos, Henrique, Dida (Duca) e Zagallo. Técnico: Fleitas Solich
Burnley: Blacklaw; Smith, Adamson e Winton; Sieth e Miller; Newlands, McIlroy, Shackleton (Robson), Cheesebrough (Connelly) e Pilkington. Técnico: Wiilliam “Billy” Dougall