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1912, 1914, 1916, A. A. São Bento, Borgerth, camisa rubro-negra, Manto Sagrado, Riemer, Sydney Pullen
No dia 4 de junho de 1916, há exatos 100 anos, o Flamengo enfim passou a ser um só. O time de futebol adentrou o campo do estádio da Rua Paissandu para enfrentar a Associação Athletica São Bento paulistana com uma novidade: vestiria agora, enfim, uma camisa com o mesmo desenho da do remo, esporte fundador do clube. Derrubando preconceitos e objeções internas, os jogadores levariam o Manto Sagrado, com as listras vermelhas e pretas na horizontal do jeito que conhecemos hoje, ao lugar que era seu por direito: os gramados nos quais o clube construiria boa parte de sua grandeza e arrebataria dezenas de milhões de torcedores.
A EVOLUÇÃO DO UNIFORME RUBRO-NEGRO
Para começo de conversa, vale explicar que o Flamengo, nascido grupo (depois clube) de regatas lá em 1895, era azul e ouro, aurianil em vez de rubro-negro. Mas as cores acabaram descartadas um ano depois, assim que se notou que a salinidade da água da Baía da Guanabara fazia o uniforme desbotar com facilidade. E no ano seguinte, adotou-se enfim o rubro-negro, mantido na configuração de linhas horizontais do desenho anterior. No fim de 1911, quando o Flamengo criou sua seção de esportes terrestres, para abrigar os jogadores dissidentes do time de futebol do Fluminense, a modalidade não era a mais popular no Rio, nem no país, apesar de emergente. Perdia em preferência e em destaque para o remo e o turfe. Não era, inclusive, muito bem vista pelos remadores rubro-negros, que vincularam a aceitação dos ex-tricolores à utilização por eles de um outro uniforme, que não o habitual com listras vermelhas e pretas horizontais da vestimenta do remo, e de outro escudo, que não o da âncora com as pás de remo entrelaçadas.
Por esta razão, o primeiro time de futebol rubro-negro, que entrou em campo em maio de 1912 para enfrentar o Mangueira, vestiu a camisa quadriculada, conhecida como Papagaio-de-vintém, por sua semelhança com o desenho das pipas baratas que os moleques empinavam nas brincadeiras infantis. Mas este fardamento inicial não trouxe resultado e, por superstição, acabou deixado de lado. Surgiu então, em meados de 1913, um novo, quase igual ao do remo, mas com finas listras brancas intercaladas entre as rubro-negras, que ganhou o apelido de Cobra-coral. Com esta camisa, o Fla levantou seus primeiros títulos, os campeonatos cariocas de 1914 e 1915, este invicto.
Chega 1916, e o Flamengo inicia o ano com o mesmo uniforme. Até que, temporada adentro, alguém notou que a configuração da camisa do futebol rubro-negro lembra demais a da bandeira da Alemanha, país que liderava a chamada tríplice aliança, lutando contra a Entente formada pelo Império Britânico, França, Rússia, Estados Unidos, Portugal e uma série de outros países, nas batalhas do que posteriormente seria conhecida como a Primeira Guerra Mundial. Até aquele momento, o Brasil ainda não havia declarado guerra aos alemães (só o faria no ano seguinte). Mas os frequentes protestos de rua no Rio de Janeiro contra a Alemanha (chamada de “Inimiga de todos os povos”) naquele ano e, talvez, a participação do Reino Unido – país de origem de alguns atletas do time rubro-negro, aliás dado comum no futebol carioca do período – juntamente com a recente adesão dos portugueses à Entente tenham colaborado para a ideia da necessidade de aposentar a camisa com as impopulares listras brancas.
ENFIM, (QUASE) IGUAL AO REMO
Desta vez, portanto, ficou difícil para os remadores manterem a segregação do uniforme dentro do clube. Até porque o futebol crescia absurdamente em popularidade, e o time rubro-negro já se mostrara vencedor. A permissão veio, somente mantida a restrição quanto ao escudo. Naquele ano de 1916 em que tentaria o tricampeonato da cidade, o Flamengo já realizara pioneira excursão ao Pará, iniciada no fim de dezembro do ano anterior, e já disputara com o fardamento antigo três partidas pelo Carioca, vencendo o Andarahy por 4 a 0, o Fluminense por 4 a 1 e perdendo para o Bangu no campo adversário da Rua Ferrer por 4 a 2. A ocasião de estreia do uniforme que permanece até hoje viria num dia festivo: além da nova camisa, o clube promoveria a inauguração oficial de seu estádio da Rua Paissandu, no qual já mandava seus jogos desde o final de outubro do ano anterior.
O adversário seria o time da Associação Athletica São Bento, campeão paulista de 1914, logo no ano de sua fundação, e considerado uma das potências da capital bandeirante (não confundir, portanto, com o clube de Sorocaba, existente até hoje). A equipe azul e branca não repetira a boa temporada em 1915, mas já estreara com um resultado expressivo no torneio estadual daquele ano, goleando por 5 a 3 a Associação Athletica das Palmeiras, campeã de 1915 e outra força da época (novamente, nada tem a ver com o atual Palmeiras). O principal nome do São Bento era o centromédio Lagreca, da Seleção Brasileira, além do center-forward Dias (outro do scratch, como se chamava a Seleção na época) e do ponta-esquerda Hopkins. Tal consciência da força do time levava a previsões ousadas e com arroubos de otimismo para a partida, como aconteceu com um cronista paulistano, que chegara a escrever prevendo uma derrota vergonhosa para o Flamengo, e que só por uma infelicidade o São Bento perderia o jogo.
O DIA DA ESTREIA
Se a imprensa de lá alfinetava, entre os clubes o clima era de cordialidade. A delegação do time beneditino chegou ao Rio de trem, pelo noturno de luxo, às 8h15 da manhã do dia do jogo, sendo recebida na Estação Central do Brasil por dirigentes e representantes rubro-negros e partindo de lá em cortejo de automóveis até a sede rubro-negra no casarão da Praia do Flamengo. Visitou as instalações e foi homenageada pelos sócios do clube. Após o almoço, foi levada a um passeio pela cidade, retornando ao hotel em que se hospedou e se concentrou para a partida, marcada para o meio da tarde. Depois do jogo haveria um banquete, antes de a comitiva tomar o trem de volta para a capital paulista.
Às 15h42, após uma preliminar entre os segundos quadros (reservas) rubro-negros e os do Botafogo encerrada com empate em 2 a 2, a bola rolou para Flamengo x São Bento. Os donos da casa foram a campo com o goleiro Cazuza; os backs Antonico e Nery; Curiol, Sydney Pullen e Galo na linha média; e Arnaldo, Gumercindo, Reid, Borgerth e Riemer no ataque. Já os visitantes alinharam Orlando; Zacharias e Burgos; Buker, Lagreca e Moraes; Damaso, Cesar, Dias, Irineu e Hopkins. Assim que Affonso de Castro apitou o início a partida, o Flamengo passou a pressionar o São Bento, que tentava escapar nos contra-ataques. Mas os rubro-negros tiveram amplo domínio das ações em toda a primeira etapa, e já abriram o placar aos quatro minutos, quando o center-half (hoje, volante) inglês Sydney Pullen driblou Lagreca e os dois defensores paulistas e chutou inapelavelmente para vencer Orlando.
Mesmo em vantagem, o Flamengo seguiu pressionando: criou inúmeras situações de gol, acertou a trave, teve um gol de Arnaldo anulado por impedimento, até que Sydney Pullen, um monstro em campo na defesa e no ataque, deu belo passe a Gumercindo, que bateu cruzado e ampliou a contagem. Sob a baliza do São Bento, o arqueiro Orlando vai fazendo o que pode para impedir a goleada. Chega a bloquear quatro chances consecutivas do Flamengo. E numa escapada, o time paulista descontou quando Hopkins desceu pela esquerda, chutou forte, Cazuza deu rebote e Dias escorou. O primeiro tempo terminou com o Fla na frente por 2 a 1.
Na etapa final, a tônica da partida se manteve até os 27 minutos, quando, na meia direita, Gumercindo passou a Arnaldo e este lançou Borgerth. O meia-esquerda passou a Riemer, que chutou forte e ampliou de novo a contagem. Daí em diante, o time do Fla fez o tempo passar até o apito final. A vitória inaugurou em grande estilo o novo estádio e a nova camisa, além de servir como uma resposta ao tal cronista paulistano que apostava num triunfo categórico do São Bento. Mas o Manto rubro-negro não teve impacto maior a médio prazo: o campeão carioca daquele ano seria o America, e o Fla teria que se contentar com uma quarta colocação, modesta perto do que vinha obtendo desde 1912.
De fato, somente em 1920 o time levantaria sua primeira taça do Carioca com a nova camisa – mas com estilo, de maneira invicta –, emendando um bicampeonato no ano seguinte. E com o passar dos anos, foi formando sua lenda. Em 1927, por exemplo, na conquista de um dos títulos mais improváveis da história do clube, com um time quase improvisado formado de última hora por veteranos semiaposentados, ex-juvenis e reservas, além de outros trazidos de times menores a toque de caixa para compensar os que tinham saído, surgiu a mística da “camisa que jogava sozinha”, revisitada em incontáveis momentos nestes 100 anos de história.
Embora através dos tempos tenha sido quase sempre muito bem vestida por jogadores que primavam pela técnica refinada, a camisa rubro-negra se tornou símbolo de raça, de bravura, de luta contra o impossível. É também um componente identitário, aglutinador de uma torcida gigantesca, e que se espalhou pelo Brasil inteiro, e até pelo mundo. É um Manto Sagrado, uma segunda pele, o símbolo de uma nação.