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1936, Domingos da Guia, Fausto dos Santos, Flávio Costa, Fluminense, Leônidas da Silva, Sá, Torneio Aberto
Conquistado há exatos 80 anos pelo Flamengo, o Torneio Aberto foi uma competição cuja história é bem pouco lembrada ao longo das décadas seguintes. No entanto, ele simboliza um momento decisivo do futebol carioca e do Flamengo em especial. Criado na esteira da adoção do profissionalismo, foi a primeira conquista de dois jogadores lendários da história rubro-negra: nada menos que Domingos da Guia e Leônidas da Silva. Se ambos são hoje considerados peças-chave na popularização estratosférica pela qual o clube passou naquela década, naturalmente esta conquista, vinda com vitória sobre o Fluminense no estádio das Laranjeiras, tem ao menos um pouco de participação nesse feito.
O contexto da época: amadorismo x profissionalismo
A década de 1930 é marcada pela introdução do profissionalismo no futebol brasileiro, bem como pela disputa entre os defensores do novo regime e os resistentes do amadorismo. O ano de 1933 marca a ruptura no Rio de Janeiro, quando alguns dos principais clubes (entre eles Flamengo, Fluminense, Vasco e America) deixam a Associação Metropolitana de Esportes Athléticos (AMEA, entidade que organizava o Campeonato Carioca) para criarem a Liga Carioca de Football (LCF). Entre aquele ano e o de 1936, o Rio teve dois campeonatos, organizados por federações diferentes.
Essa dissidência refletia o que também acontecia num âmbito mais amplo. No mesmo ano da cisão no Rio, os clubes brasileiros que adotaram o profissionalismo também romperam com a Confederação Brasileira de Desportos (CBD, antecessora da atual CBF) e criaram a Federação Brasileira de Football (FBF), a entidade nacional que regulamentaria o novo regime remunerado no país.
Em 1936, apenas seis clubes disputam o Campeonato Carioca organizado pela LCF: o Flamengo, o Fluminense, o America (o atual campeão), o Bonsucesso, a Associação Atlética Portuguesa (na época ainda não sediada na Ilha do Governador, mas na extinta Praça Onze, no centro da cidade) e o Jequiá (esse sim da Ilha), substituto do Modesto, de Quintino, que participara no ano anterior. Havia ainda a chamada “subliga”, espécie de torneio de acesso disputado por equipes interessadas em aderir ao profissionalismo.
O torneio
O calendário, portanto, era bem curto. O número de jogos do Campeonato Carioca (15 para cada clube, em três turnos) era insuficiente para sustentar o regime profissional. E diante da necessidade de manter os times sempre em atividade para obter a renda que pagaria os salários dos jogadores, a LCF decidiu criar outras competições para movimentar seus filiados. Uma delas foi o Torneio Extra, iniciado em 1934. Outra foi o Torneio Aberto – que, como o próprio nome indica, não se limitava aos participantes do Campeonato Carioca da entidade. Qualquer equipe, profissional ou amadora, de dentro ou fora da cidade do Rio de Janeiro, poderia se inscrever.
A primeira edição foi disputada em 1935 e contou com a participação de 23 equipes, a maioria da cidade do Rio (então capital federal), mas também de Niterói, Petrópolis e Nova Iguaçu. Nesse primeiro torneio, o Flamengo chegou a turno final, mas perdeu para o America e viu a taça – além de uma gorda premiação em dinheiro – ficar com o Fluminense.
O regulamento, mantido para a edição seguinte, era simples: As equipes disputavam várias etapas em partidas eliminatórias, no estilo mata-mata, com os vencedores avançando e os perdedores caindo em uma repescagem. Ao final, duas equipes do chamado “grupo dos vencedores” e outras duas vindas dessa repescagem formariam o quadrangular final. Todos os jogos eram disputados em campo neutro, em três estádios: o do Fluminense, nas Laranjeiras; o do America, em Campos Sales; e o do Bonsucesso, em Teixeira de Castro.
O momento do clube
Naqueles meados de anos 30, o Flamengo também vivia um momento crucial em vários âmbitos. Esportivamente, vivia um jejum de títulos no Campeonato Carioca (a última conquista viera em 1927), embora tivesse levantado o troféu do Torneio Extra de 1934. Administrativamente, sob a presidência de José Bastos Padilha, o clube expandia seu quadro de sócios, enquanto a construção do novo estádio da Gávea seguia a todo vapor. E socialmente, o Fla preparava o terreno para se consolidar como um clube de massa, ao abrir definitivamente suas portas aos jogadores negros, como o pioneiro Jarbas, Roberto, Fausto dos Santos (a “Maravilha Negra”), Waldemar de Brito e dois que chegariam em meados daquele ano de 1936: Domingos da Guia e Leônidas da Silva.
Treinado pelo jovem Flávio Costa, ex-jogador do clube e que completaria 30 anos durante o torneio, aquele Flamengo de 1936 tinha entre seus principais valores o goleiro Yustrich (futuro treinador rubro-negro), os médios Fausto e Alemão – este, vencedor no ano anterior de um concurso organizado pelo Jornal dos Sports e patrocinado pelas balas Favoritas para eleger o jogador mais popular do Rio de Janeiro, numa das primeiras mostras do poder de mobilização da torcida rubro-negra –, os rápidos pontas Sá e Jarbas, além do talentoso meia-esquerda alemão Fritz Engel e do goleador Alfredo. A estes, na reta final, se juntariam Domingos da Guia e Leônidas.
A campanha
Ao todo, nada menos que 47 equipes participaram da segunda edição do Torneio Aberto, com pontapé inicial no dia 29 de março. O Flamengo estreou mais tarde, em 7 de abril, contra o Modesto, a quem já havia enfrentado no Campeonato Carioca do ano anterior, vencendo os três confrontos. O clube de Quintino (bairro onde, mais tarde, nasceria Zico) tinha inclusive o uniforme bastante parecido com o do Fla (camisas vermelhas com uma listra preta na altura do peito), mas em campo só deu um rubro-negro: no primeiro tempo, o Flamengo já vencia por 4 a 0, com dois gols do ponta-esquerda Jarbas, um do centroavante Alfredo e outro do meia-direita Caldeira. Na etapa final, Jarbas e Alfredo marcaram cada um mais uma vez para fechar a contagem.
O segundo adversário do Fla, no dia 29 do mesmo mês, foi o Villa Joppert, clube amador do bairro de Bonsucesso. O jogo, assim como o anterior, foi disputado no estádio do America, na rua Campos Sales. O primeiro tempo terminou com vitória rubro-negra um tanto apertada: 2 a 0, gols de Sá e Alfredo. Mas na etapa final, se o Villa Joppert chegou por duas vezes a balançar as redes do goleiro Yustrich, sua defesa ofereceu bem menos resistência. Jarbas marcou duas vezes, Engel outras duas, o ponta-direita Sá fez mais um e Alfredo anotou outros dois para arredondar o massacre do Flamengo em 9 a 2.
Na terceira fase, o Rubro-Negro enfrentou o Bandeirantes, do bairro de Jacarepaguá e que, assim como o Modesto, disputava a subliga da LCF. A partida foi realizada no dia 2 de julho nas Laranjeiras. Nova goleada, dessa vez por 8 a 2, com destaque para Alfredo, autor de cinco gols. Caldeira (dois) e Engel completaram o escore. Três dias depois, o Fla voltou ao estádio tricolor para enfrentar o Engenho de Dentro, campeão da subliga em 1935, e o adversário mais duro até ali. Os “Fantasmas” – apelido da equipe alvianil – venderam caro a derrota por 2 a 0, gols de Jarbas, sendo o primeiro de pênalti na primeira etapa e o segundo já na fase final da partida.
Na quinta eliminatória, última etapa antes do quadrangular final, o Flamengo enfrentou o Bonsucesso e voltou a ter dificuldades. Após um primeiro tempo sem gols, o veterano Gradim abriu o placar para a equipe da Leopoldina. O alemão Engel empatou de pênalti, antes de perder a chance de virar o placar ao desperdiçar outra penalidade. O jogo foi então para uma prorrogação de 20 minutos, decidida no último deles, de maneira dramática, graças a um gol de Alfredo para o Flamengo.
Somente em 16 de agosto, exatamente um mês depois de garantir a classificação, o Flamengo faria sua primeira partida pelo quadrangular decisivo contra o Fluminense, o outro clube vindo do grupo dos vencedores (Bonsucesso e America, derrotados por Fla e Flu na quinta fase, acabaram vencendo a repescagem e avançando às finais). O jogo disputado nas Laranjeiras marcou a estreia de Domingos da Guia na equipe rubro-negra, além da primeira partida oficial de Leônidas pelo clube, depois de dois amistosos.
Domingos sentiu lesão e teve que deixar o campo com apenas dez minutos de jogo, substituído por Carlos Alves. Mesmo sem ele, o Fla teve raça para correr por duas vezes atrás do resultado: Sobral abriu o placar para os tricolores aos 25 minutos, com Jarbas empatando para os rubro-negros logo em seguida. Na etapa final, Hércules voltou a colocar o Flu em vantagem aos 15 minutos, mas o artilheiro Alfredo voltou a igualar para o Fla, a sete minutos do fim.
No dia 29, novamente jogando nas Laranjeiras, o Flamengo enfrentou o America, que havia goleado o Bonsucesso por 6 a 2 na primeira rodada. E aí sim Leônidas brilhou, marcando os dois gols rubro-negros, um em cada tempo, antes de Aírton descontar para os rubros. Com a vitória, o Fla chegava à liderança do quadrangular junto com o forte time do Fluminense (de Batatais, Machado, Romeu e Hércules), ambos com três pontos.
A decisão
Na última rodada, tricolores e rubros jogaram um dia antes e ficaram no empate em 1 a 1, deixando o Flamengo precisando de uma vitória simples contra o Bonsucesso para conquistar o título. Mas o resultado esperado não veio: o Fla abriu o placar com Alfredo, aos 23 minutos e parecia que confirmaria o título. Porém, a dois minutos do fim do jogo, Alfinete empatou para o time da Leopoldina, decretando um resultado que obrigaria rubro-negros e tricolores a jogarem uma decisão extra pela taça.
No dia 13 de setembro, Flamengo e Fluminense entraram em campo nas Laranjeiras pelo primeiro jogo das finais, e a igualdade foi mantida. Hércules abriu o placar para os tricolores logo no começo da segunda etapa, mas Jarbas deixou tudo igual aos 25 minutos, mantendo as esperanças rubro-negras. A segunda partida da decisão viria uma semana depois, no mesmo local. Em caso de empate no tempo normal – na época, dividido em duas etapas de 40 minutos -, uma prorrogação seria jogada para definir o vencedor. Caso não fosse apontado, o título seria dividido.
Mas nem mesmo a prorrogação se fez necessária. Mesmo com o desfalque do meia Engel, o Flamengo dominou as ações no primeiro tempo e abriu o placar numa arrancada do ponta-direita Sá, logo aos três minutos da etapa final. Depois, conduziu o jogo com lucidez e tranquilidade até o fim, com Domingos controlando os avanços tricolores e Leônidas, do outro lado, mostrando-se um tormento constante para a retaguarda adversária. Ao final, a vitória por 1 a 0 diante de um estádio das Laranjeiras lotado, com público superior aos 17 mil torcedores e renda de mais de 75 contos de réis, fabulosa para a época.
O Torneio Aberto seria novamente disputado no ano seguinte – desta vez com a participação inclusive de equipes mineiras como o Atlético e o Siderúrgica (de Sabará) – sem, no entanto, ser concluído, uma vez que durante sua realização houve a chamada “pacificação” no futebol carioca, com a fusão das duas ligas existentes. Ao longo da história, acabou – como aconteceu com diversos outros torneios de vida curta – praticamente esquecido nas listas de grandes conquistas dos clubes.
Para o Flamengo, porém, o título valeu para marcar a chegada de dois craques que ajudariam a construir sua história, contribuindo decisivamente para o crescimento assombroso de sua popularidade – vale lembrar que este mesmo ano de 1936 marca ainda o início das transmissões da Rádio Nacional, grande difusora do futebol carioca Brasil afora. Três anos depois, com a equipe reforçada ainda mais, viria o fim do maior jejum do clube na história do Campeonato Carioca, fazendo a torcida rubro-negra explodir pelo Rio de Janeiro e por todo o país. Mas essa já é outra (grande) história.
Ficha da final:
FLAMENGO 1 x 0 FLUMINENSE
Estádio das Laranjeiras (Rio de Janeiro), domingo, 20 de setembro de 1936.
Torneio Aberto – final (2º jogo).
Renda: 75:804$300 (setenta e cinco contos, oitocentos e quatro mil e trezentos réis).
Público:17.393.
Árbitro: Casemiro Santa Maria
Gol: Sá, aos três minutos do segundo tempo.
Flamengo: Yustrich; Domingos da Guia e Marin; Médio, Fausto e Oto; Sá, Leônidas, Alfredo, Caldeira e Jarbas. Técnico: Flávio Costa.
Fluminense: Batatais; Guimarães e Machado; Marcial, Brant e Orozimbo; Sobral, Russo, Romeu, Raul e Hércules. Técnico: Hector Cabelli.