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1953, 1954, 1955, Campeonato Carioca, Dequinha, Dida, Fleitas Solich, Gilberto Cardoso, Rubens, tricampeão
Há exatos 60 anos o Flamengo derrotava o America por 4 a 1 no Maracanã, na terceira partida da melhor de três decisiva do interminável Campeonato Carioca de 1955, que atravessou os primeiros meses do ano seguinte. Com quatro gols do garoto Dida, escalado de surpresa na decisão, o time dirigido pelo paraguaio Fleitas Solich enfim colocava no peito, após longa maratona, a faixa de tricampeão. A conquista épica daqueles três campeonatos, hoje pouco lembrados, mas que deixaram marcas profundas no futebol rubro-negro, carioca e até brasileiro, será relembrada aqui em detalhes, a partir de dez histórias fundamentais para entender o que o feito representou e ainda representa para o clube.
1. O presidente Gilberto Cardoso
Poucos dirigentes viveram tão intensamente o Flamengo quanto Gilberto Cardoso. Mas só ele morreu pelo clube. Médico de profissão, viúvo, um filho pequeno (que décadas depois também seria presidente rubro-negro), deixou tudo de lado para ser Flamengo honorário. Eleito no início de 1951, encontrou o clube em grave situação financeira e com o futebol desmoralizado: havia acabado de perder Zizinho para o Bangu e terminado o Campeonato Carioca do ano anterior na sétima colocação. Em pouco tempo, recobrou o ânimo rubro-negro em todos os aspectos.
Durante sua gestão, na qual demonstrava uma dedicação ímpar a qualquer atleta rubro-negro de qualquer modalidade, o Fla viveu uma Era de Ouro. Além do tricampeonato carioca no futebol, cuja história será contada aqui, o clube comemorou um histórico decacampeonato no basquete masculino com o time dirigido pelo lendário Togo Renan Soares, o Kanela, no qual despontavam gênios como Algodão e Guguta, e que seria base do primeiro título mundial da Seleção Brasileira, em 1959. Foi ainda hegemônico no atletismo carioca, com nomes como José Telles da Conceição, medalha de bronze no salto em altura nos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952.
E o crescimento não era observado apenas dentro dos gramados, quadras, piscinas, pistas e tatames nos quais o clube competia. O Flamengo também prosperava no setor social. Gilberto também teve a honra de inaugurar, em novembro de 1953, a nova sede rubro-negra, composta por três edifícios de 22 andares na Avenida Ruy Barbosa, no Morro da Viúva, bem em frente à enseada de Botafogo e o Pão de Açúcar, no limite entre as praias do Flamengo e de Botafogo.
Tamanha dedicação, no entanto, cobrou seu preço: em 25 de novembro de 1955, sofreu um infarto dentro do ginásio do Maracanãzinho logo após a cesta de Guguta, que daria a vitória ao Flamengo no último segundo sobre o Sírio Libanês, numa das partidas da série final do Carioca de basquete. Saiu dirigindo do ginásio (que agora leva seu nome) até o pronto socorro mais próximo, onde não resistiu a outro ataque fulminante. Morreu ao lado do Padre Góes, a quem conheceremos mais adiante, e de Dom Hélder Câmara, outro religioso rubro-negro.
Sua morte chocou o clube e o esporte do Rio de Janeiro. Em sua homenagem, o time de futebol passou a usar pela primeira vez calções pretos, em sinal de luto. E o tricampeonato carioca, conquistado dali a pouco mais de quatro meses, foi a ele dedicado. Um grupo de torcedores, inclusive, saiu a pé do Maracanã, invadiu o cemitério São João Batista e enfrentou o vigia armado para acender velas e colocar uma faixa em seu túmulo. Mas a homenagem mais duradoura está até hoje na sede da Gávea: Gilberto Cardoso é o único ex-presidente do clube com direito a estátua, logo na entrada social.
2. O comandante Fleitas Solich
Escolhido por Gilberto Cardoso para substituir Flávio Costa – de saída para o Vasco – no comando do Flamengo, o paraguaio Fleitas Solich tinha credenciais que chamavam a atenção. Naquele mês de abril de 1953, havia acabado de fazer da seleção de seu país a campeã sul-americana, derrotando duas vezes o Brasil de Aymoré Moreira. Ao chegar à Gávea, recebeu o time do interino Jayme de Almeida (ex-lateral, capitão e nome histórico rubro-negro) e manteve praticamente intacta a base deixada por Flávio. Mas aos poucos foi implementando seu estilo de jogo tanto do ponto de vista tático quanto do de atitude em campo – os quais detalharemos no próximo tópico.
Para zelar pelo bom funcionamento deste esquema, entretanto, o treinador era extremamente rígido no que dizia respeito à disciplina e às condições atléticas do elenco. Não tolerava bebida e cigarro em hipótese alguma, o que o motivou a afastar alguns jogadores ao longo da campanha do tri – o meia Rubens, como veremos adiante, foi o caso mais dramático. Além disso, aos poucos foi reduzindo na equipe o espaço aos veteranos, sem tanta obediência tática e disposição física para cumprir o que o esquema de jogo exigia.
Desse modo, sobressaía uma outra grande característica de Solich: o talento fora do comum para lapidar jovens craques, num estilo semelhante ao do escocês Matt Busby, treinador que promoveu fornadas de garotos talentosos no Manchester United dos anos 1950 e 1960 (os apelidados Busby Babes). Durante toda a sua primeira passagem pela Gávea, entre 1953 e 1959, bem como nas duas posteriores (entre 1960 a 1962 e em 1971), Solich procurou sempre lançar juvenis – e quase sempre foi muito bem sucedido. Neste time do tri, além de dar sequência e confiança a jovens que já integravam o elenco (como Zagallo), promoveu a estreia na equipe de nomes como Dida, Paulinho e Babá. Mais adiante, quando o Flamengo negociou quase dois ataques inteiros, uma nova leva de talentos (Moacir, Henrique, Joubert, Luís Carlos) subiu pelas mãos do Feiticeiro. Sem falar em Carlinhos, Gerson e Germano, em sua segunda passagem. E em Zico, na terceira e última.
3. A revolução tática
Outro ponto do trabalho de Solich que deixaria marcas indeléveis não só no Flamengo, mas no futebol brasileiro como um todo, foi a série de novidades em termos táticos e de concepção de jogo. Num tempo em que imperavam a “diagonal” de Flávio Costa e a “retranca” de Zezé Moreira, na verdade apenas alterações cosméticas no velho esquema WM difundido pelo mundo pouco antes da Segunda Guerra, o treinador do Fla mostrou um novo estilo de futebol, tão diferente que ainda levaria alguns anos para ser assimilado no país. De cara, inovou no posicionamento dos jogadores, como contou o jornalista Luiz Mendes (ele mesmo, o “comentarista da palavra fácil”), escrevendo na época para a revista Esporte Ilustrado:
“A introdução do jogador Servílio no posto que Jadir deixou vago e o recuo de Marinho para beque de extrema deu consistência nova e mais segura à defesa do clube da Gávea. Aliás, o médio direito do Flamengo precisa ser meio zagueiro. Isso porque o sistema defensivo do clube rubro-negro coloca quatro homens atrás, formando uma primeira linha de defesa, dois no meio – Dequinha e Rubens – um pela esquerda e outro pela direita – ficando na frente quatro homens que sempre recebem a cooperação dos dois que ficam entre eles e os quatro da retaguarda.”
Ou seja, era um autêntico 4-2-4, o esquema que a Seleção Brasileira apresentou ao mundo na Copa do Mundo de 1958 e que, cinco anos antes, o Flamengo apresentava ao futebol carioca e brasileiro. E era tão revolucionário que desafiava até mesmo a maneira como eram escritas as escalações nos jornais, habitualmente no velho 2-3-5. Tanto que o que ficou eternizado como a “linha média” daquela equipe – Jadir (ou, na ocasião, ainda Servílio), Dequinha e Jordan – não se colocava em campo como um trio de meio-campo de fato. Tomando-se como base os titulares de 1953, a equipe tinha mais ou menos a configuração abaixo:
Outra transformação pela qual o Flamengo passou com Solich foi no estilo de jogo. Com o paraguaio no comando, o Rubro-Negro passou a exibir um futebol de forte senso coletivo, objetivo, aguerrido, dinâmico e muito veloz. Ou de grande intensidade, para usar um termo hoje bastante em voga. O que contrastava enormemente com o futebol mais lento, cadenciado e que privilegiava o individualismo do virtuose comumente adotado então, especialmente no Rio.
Como se não bastasse o pacote de novidades, Solich ainda tinha outra arma, que ganhou várias partidas para o time num tempo em que as substituições de jogadores eram proibidas em jogos oficiais: sua astúcia como estrategista, que lhe valeu o apelido de Feiticeiro. Não foram poucas as ocasiões em que o técnico mudou totalmente o panorama da equipe e surpreendeu os rivais simplesmente mudando jogadores de posição e de função. Às vezes, um ponta podia virar centroavante, um centroavante virar meia-armador e um meia-armador virar ponta para conduzir o Flamengo a viradas eletrizantes.
4. A campanha
Para chegar ao tri, o Flamengo precisou disputar nada menos que 84 partidas. Somou 62 vitórias, 11 empates e 11 derrotas (sete delas na acidentada campanha do terceiro título). Marcou 228 gols e sofreu 95. Teve o melhor ataque da competição em 1953 e 1955, bem como a melhor defesa em 1954. O que explica em parte números tão hiperbólicos é a própria fórmula do Campeonato Carioca, que curiosamente vigorou apenas naqueles três anos: os 12 times (Flamengo, Fluminense, Vasco, Botafogo, America, Bangu, Olaria, Madureira, São Cristóvão, Bonsucesso, Portuguesa e Canto do Rio) jogavam uma primeira etapa em pontos corridos, em turno e returno. Ao final das 22 rodadas, o líder se classificava para a decisão do campeonato e os seis melhores colocados disputavam um turno extra, em jogos só de ida, que apontaria o outro finalista.
Nos dois primeiros anos, no entanto, não houve necessidade de final, já que o Flamengo cumpriu campanha impecável e venceu tanto a etapa em pontos corridos quanto o terceiro turno. Outro ponto a ser destacado é que foi em meio a essas duas campanhas, aliás, que o clube estabeleceu seu recorde histórico de invencibilidade no Campeonato Carioca: entre a vitória sobre o Canto do Rio por 1 a 0 em Caio Martins no dia 13 de setembro de 1953 e o triunfo sobre o Botafogo por 3 a 2 no Maracanã em 12 de dezembro de 1954, o Rubro-Negro ficou nada menos que 34 partidas sem ser derrotado no torneio, sendo 28 vitórias e apenas seis empates. Nem mesmo nas sequências posteriores que levaram aos títulos estaduais invictos em 1979, 1996 e 2011 o time atravessou uma série semelhante.
Já em 1955, embora tenha vencido apertado a etapa inicial, o time rubro-negro deu sinais de desgaste, sofreu com desfalques por lesão e acabou ficando para trás no turno extra, mas já tinha garantido vaga na melhor de três decisiva com o America. Por isso, precisou de três partidas a mais em relação às conquistas anteriores.
5. As peças do tabuleiro
Na campanha de 1953, Fleitas Solich manteve um time base que quase não variou a partir da metade do primeiro turno, até para que a equipe assimilasse as várias mudanças no posicionamento e no padrão de jogo. Assim, oito dos 11 titulares atuaram em pelo menos 23 dos 27 jogos. Já nos dois anos seguintes, tanto por motivos táticos, quanto de lesão e até disciplinares, o treinador girou bem mais o elenco.
O dono da camisa 1 durante a maior parte da campanha foi o paraguaio Garcia, de reflexos excepcionais, velho conhecido de Solich da seleção de seu país e parte do elenco rubro-negro desde 1949. Naquele ano, com atuação magistral de Garcia sob as traves e o Feiticeiro no banco, os guaranis chegaram a surpreender a Seleção Brasileira, vencendo por 2 a 1 em São Januário pelo Campeonato Sul-Americano (atual Copa América). Seu principal rival na posição era outro estrangeiro, o argentino Chamorro, contratado no final de 1953 junto ao Independiente Santa Fé colombiano. Os jovens Aníbal e Ari, vindos respectivamente de Olaria e Bonsucesso, também atuaram.
Na defesa, pelo lado direito, o veterano Marinho, ex-Botafogo, começou como titular, mas na segunda temporada deu lugar ao mais jovem e vigoroso Tomires. Na zaga central, o xerife Pavão foi o dono da posição nos três anos. Ao seu lado, na quarta zaga (posição introduzida com a alteração do esquema por Solich), Servílio foi o titular na primeira conquista. Alto, bom no jogo aéreo, mas mais lento, acabou tendo a posição tomada de volta no ano seguinte por Jadir, mais baixo, mas de boa impulsão e mais ágil. Na lateral-esquerda despontava Jordan, que se tornaria o quarto jogador a atuar mais vezes com a camisa rubro-negra (609 partidas). Jogador mais defensivo, que raramente ultrapassava o meio-campo, era no entanto um marcador seguro, discreto e extremamente leal, como viria a atestar Garrincha, com quem travaria grandes embates pelo setor.
No meio, Dequinha era o centromédio, atual volante, cujas características trataremos no próximo tópico. Ele e Rubens, que também merece capítulo a parte, formavam exuberante dupla nos dois primeiros títulos. A partir da terceira temporada, com o ocaso do Doutor Rúbis, o jovem Paulinho ganharia a posição, com outro garoto, Duca, também atuando às vezes, até em partidas decisivas. Na frente, como bem lembra o escritor Ruy Castro em seu livro O Vermelho e o Negro, os jovens torcedores rubro-negros tinham de ter vários reservas para seus times de botão do Flamengo, de modo a acomodar o elenco inteiro, tamanhas eram as possibilidades de escalação do ataque.
Pela extrema direita jogava Joel, ponta autêntico, rápido, driblador, e que também sabia marcar gols (23 ao todo na campanha) descendo pela diagonal. Na reta final do torneio de 1954, fraturou a perna em um jogo contra o Vasco e foi substituído pelo garoto Paulinho, já citado no parágrafo anterior. Mas no ano seguinte já estava de volta. O próprio Paulinho, por sua vez, podia atuar na ponta direita, na meia direita, no centro do ataque e até na ponta esquerda, numa eventualidade. E também fazia muitos gols: foi o artilheiro não só do time mas do campeonato de 1955, com 23 bolas nas redes adversárias. Já o centroavante titular nas três temporadas foi Índio, atacante raçudo, excelente cabeceador, mas também muito inteligente: jogava muitas vezes sem a bola, saindo da área para tabelar e puxar a marcação, abrindo espaço para a infiltração do paraguaio Benítez, ponta-de-lança de estilo rompedor, ex-Boca Juniors e também conhecido de Solich.
Outra peça extremamente valiosa do elenco, também pela inteligência futebolística fora do comum e pela facilidade de atuar de diversas maneiras em praticamente todas as posições do ataque (embora fosse primordialmente ponta-de-lança) era Evaristo. Podia jogar tanto como homem de área, goleador – é até hoje o maior artilheiro da Seleção Brasileira em uma mesma partida, com cinco gols contra a Colômbia em 1957 – como também mais recuado, como um meia-armador, criando jogadas, abrindo espaços e atraindo a marcação. Tanto que deixaria a Gávea para atuar pelo Barcelona, para fazer na Catalunha o que o argentino Alfredo Di Stéfano executava com perfeição no rival Real Madrid. O que abriu espaço para outro jovem que já vinha despontando na metade do campeonato de 1954 e de quem falaremos mais em outro tópico: o ponta-de-lança Dida.
Por fim, a camisa 11 teve em Esquerdinha seu dono na primeira temporada. Capitão do primeiro título e jogador mais velho do elenco, o ponta acabou perdendo a posição para um jovem lançado por Solich de estilo um pouco menos agressivo, mas também importante taticamente: Zagallo. Além dele, outro garoto, o miúdo Babá (1,54m de altura) costumava ser pinçado dos juvenis.
6. O capitão Dequinha
A imagem de Dequinha entrando em campo, com a bola debaixo do braço, também é emblemática daquele time. Tímido e calado fora de campo, o centromédio potiguar era um líder silencioso dentro das quatro linhas. Ao herdar a braçadeira do veterano Esquerdinha, tornou-se o capitão rubro-negro nos títulos de 1954 e 1955. Embora contasse com toda a combatividade que a posição exigia, também era sutil no trato com a bola. Era um volante clássico, no estilo que consagraria Carlinhos, o Violino (que confessadamente tinha Dequinha como modelo), e mais tarde Andrade.
Dequinha desarmava o adversário sem dar um pontapé e saía jogando, carimbando todas as jogadas de transição da equipe da defesa para o ataque. Distribuía o jogo com precisão milimétrica nos passes e todo o dinamismo pregado pelo técnico Fleitas Solich. E ainda tinha gosto por jogadas de efeito: era um especialista em cobrir os jogadores adversários com chapéus que levantavam a torcida rubro-negra.
Sua excelência na posição o levou à Seleção Brasileira que disputou a Copa do Mundo de 1954, na Suíça, mas lá o técnico Zezé Moreira – também treinador do Fluminense – acabou preterindo não só o centromédio como os outros dois rubro-negros que convocara (o meia Rubens e o centroavante Índio). No lugar de Dequinha, jogou Brandãozinho, da Portuguesa, mais experiente e forte fisicamente, embora sem a mesma exuberância técnica. Mas no Flamengo, o volante era intocável: foi o único jogador a atuar em TODAS as 84 partidas da campanha do tricampeonato.
7. O ídolo Rubens
Na dupla histórica de meio-campo dos times de 1953 e 1954, se Dequinha era a classe a serviço do conjunto, seu colega da meia-direita, o paulista Rubens Josué da Costa, era o artista. Sobre o Doutor Rúbis – apelido que recebeu do personagem humorístico Peladinho, do programa Balança Mas Não Cai, da Rádio Nacional – dizia-se que ele carregava a bola como que presa ao pé direito por um barbante, e que ela a ele obedecia cegamente. Em suas passadas rumo ao gol adversário, exibia um futebol filigranado em meio ao gingado de bamba de morro.
Perito nos dribles curtos, nos passes diferenciados e nas cobranças de falta com curvas improváveis (como a do gol que marcou contra o Vasco na tarde de estreia de Dida, em 1954), o meia hoje pouco lembrado foi o maior ídolo da torcida rubro-negra entre 1951 – ano em que chegou ao clube e logo em sua estreia, também diante dos cruzmaltinos, comandou a quebra do jejum de seis anos sem vitórias sobre o rival – e 1954. Não por acaso, foi capa da primeira edição da histórica revista Manchete Esportiva, criada por Adolfo Bloch. Na foto, vestido de toga e capelo, Rubens matava uma bola no peito, sobre a legenda: “Bacharel de ‘letras’ e ‘salames’ (dribles)“.
A mesma relação de intimidade que tinha com a bola, porém, Rubens também tinha com a bebida e o fumo. E, previsivelmente, acabou caindo em desgraça com Fleitas Solich. Depois de flagrado chegando embriagado e carregado por torcedores ao hotel em que a equipe estava concentrada para um amistoso no Paraná, entrou em atrito com o treinador – que além do horror aos vícios, também não via com bons olhos o jogo individualista do meia – e acabou progressivamente afastado do time, fazendo apenas seis partidas na campanha do terceiro título. Foi o ocaso de um ídolo.
8. A revelação Dida
Embora tenha se tornado praticamente um ícone do tricampeonato, pelos quatro gols que marcou nos 4 a 1 sobre o America na decisão de 1955, Dida não chegou a ser titular em nenhuma das campanhas. O que não diminui, porém, seu impacto ou seu peso naquela conquista. Na verdade, já em seu primeiro jogo pelo time profissional o garoto alagoano impressionou. Era nada menos que um Flamengo x Vasco, pelo turno do campeonato de 1954. Sem poder contar com Benítez, Fleitas Solich puxou Dida dos juvenis. E não só: junto com ele, veio também o ponta-esquerda Babá, que jogaria no lugar de Zagallo. No entendimento correto do treinador, a presença de um ajudaria a tranquilizar e familiarizar o outro. Dida não marcou na vitória por 2 a 1, mas teve atuação monstruosa, merecedora de comentário antológico de Luiz Mendes na Esporte Ilustrado, mesmo tendo de enfrentar o duro zagueiro vascaíno Eli do Amparo. Escreveu o jornalista:
“Depois, já no segundo tempo, a verde ala esquerda formada pelos dois meninos que vieram do norte não teve mais influência de nenhum nervosismo. (…) Apenas Eli continuou caçando Dida, e Dida, como se fosse desconhecedor do nome, do prestígio e até da condição de scratchman (jogador de seleção) do médio do Vasco, prosseguiu a passar por Eli como se Eli não existisse”.
Naquele torneio, no entanto, o garoto de drible abusado, talento na criação de jogadas e vocação de goleador faria apenas mais duas partidas, marcando contra a Portuguesa o primeiro de seus 264 gols pelo clube. Em 1955, já entraria em campo 16 vezes, revezando na posição com Evaristo, e marcando espantosos 15 gols. Quatro deles, como já dissemos, na final histórica diante do America. Dida, aliás, não vinha jogando naquela série final. Sua última partida havia sido contra o Bangu, na segunda rodada do turno extra. Na véspera do terceiro jogo contra os rubros, Fleitas Solich decidira barrar Paulinho, artilheiro do campeonato, em circunstâncias até hoje não muito claras – houve quem falasse em lesão e quem afirmasse que o atacante teria sido flagrado bebendo pelo treinador. Dida entrou no ataque ao lado de Evaristo, deslocado para a função de centroavante, e de Duca, outro ex-companheiro de juvenis, escalado na meia-direita. E o resto é história.
9. O homem da fé: Padre Góes
A relação do Flamengo com seu santo protetor São Judas Tadeu é outra herança deste tricampeonato, e veio por meio de uma figura que virou lenda no clube. Tudo começou quando, então há nove anos sem conquistar o título carioca, o elenco rubro-negro recebeu na Gávea a visita do Padre Góes, da Paróquia do santo das causas impossíveis, sediada no Cosme Velho. Torcedor do clube, o religioso rezou uma missa e pediu fé, antes de também solicitar aos jogadores que fossem a sua igreja e acendessem uma vela com devoção. Aí, segundo ele, o título viria. “Em nome de São Judas Tadeu, eu garanto que o Flamengo vai ser campeão”, afirmou diante dos atletas.
Os jogadores foram, acenderam uma vela, rezaram, e o título de 1953 veio – o que provocou a ira dos torcedores e dirigentes do Fluminense que também frequentavam a Paróquia, próxima à sede do clube. Os tricolores protestaram contra o “padre rubro-negro”, alegando ser um absurdo envolver o santo em disputas futebolísticas. Padre Góes não se fez de rogado: “Pois agora o Flamengo será bicampeão”, decretou.
E foi. Para mais revolta dos fieis tricolores, que enviaram um abaixo–assinado ao Cardeal Dom Jaime Câmara exigindo “providências” em relação ao padre. Inflexível diante do esperneio, Padre Góes manteve a posição: “Pois agora, em nome de São Judas Tadeu, eu garanto o tricampeonato ao Flamengo”. Fato consumado, o religioso chegou a posar, de batina e tudo, com o time na fotografia oficial e receber sua faixa de tricampeão. E o Flamengo ganhou seu santo de devoção.
10. Um time que virou samba(s)
“Flamengo joga amanhã, eu vou pra lá
Vai haver mais um baile no Maracanã
O Mais Querido tem Rubens, Dequinha e Pavão
Eu já rezei pra São Jorge
Pro Mengo ser campeão”
Praticamente todo torcedor do Flamengo já ouviu este “Samba Rubro-Negro” – de Wilson Batista, um dos maiores nomes da música popular brasileira de seu tempo (e de todos os tempos) e rubro-negro ferrenho, e Jorge de Castro – em suas várias gravações. A maioria talvez o conheça nas versões atualizadas de João Nogueira (1979) e seu filho Diogo (2007). Na primeira, o Mais Querido tem Zico, Adílio e (Cláudio) Adão. Na segunda, tem Souza, Obina e Juan. Mas a homenagem da letra original, na gravação lançada em 1955, é feita a três ídolos do primeiro tri do Maracanã: o Doutor Rúbis, Dequinha e o zagueiro central Pavão. A canção se tornou emblemática daquele time, mas não foi a única inspirada por aquele Rolo Compressor rubro-negro.
Houve ainda, entre tantas outras, a “Oração de um Rubro-Negro”, composta por Billy Blanco e lançada em interpretação de Gilberto Alves também em 1955. A letra, que também citava três nomes do elenco, trazia uma ironia ao se referir ao vigoroso e viril zagueiro Pavão como “delicado”:
“Deus proteja noite e dia o Mengo
E o conserve campeão
Feche o arco do Garcia
Proteja o nosso Dequinha
E o delicado Pavão
Me perdoe a exigência
Porém, eu sou Flamengo de fato
Prenda o passe da moçada
Para mim não quero nada
Pro Mengo, tricampeonato”
Finalmente, anos depois, no começo de 1979, logo após o título invicto do Campeonato Estadual Especial, o cantor e compositor baiano Moraes Moreira lançou em compacto a marchinha “Vitorioso Flamengo”. Esta dizia em um de seus primeiros versos: “Esse Flamengo de agora faz lembrar aquele do tri”. Moraes, autor da canção e nascido em 1947, certamente se referia a este tri, o de 1953/54/55, que o fez rubro-negro fanático no interior da Bahia, onde nasceu e foi criado. E é interessante notar que, se aquele Flamengo de 1979, com Zico, Junior, Adílio e outros craques eternos da história do clube e que dali a dois anos chegaria ao topo do mundo, virou depois a grande referência, o parâmetro de grande time do Flamengo, lá naquele fim dos anos 70 era o time do segundo tri o que servia de modelo. Os ídolos da era de ouro anterior (Dida, Rubens, Dequinha, Joel, Evaristo etc) é que inspiravam os novos craques (Zico, Junior, Adilio etc).
Epílogo: o legado de um tricampeão
O tricampeonato rubro-negro de 1953/54/55 foi o primeiro de um clube na Era Maracanã. Por três anos e meio, o Flamengo reinou em um futebol carioca repleto de craques históricos. Basta citar os grandes nomes que figuravam nos rivais para se entender o peso daquelas conquistas. O Vasco tinha Barbosa, Paulinho de Almeida, Bellini, Sabará, Ademir de Menezes, Walter Marciano, Vavá e Pinga. O Fluminense contava com Castilho, Veludo, Pinheiro, Bigode, Telê e Didi. O Botafogo, por sua vez, tinha Garrincha, Nilton Santos, Danilo Alvim, Vinícius, Dino da Costa, Paulinho e Quarentinha. O America, vice em 1954 e 1955, alinhava Pompeia, Edson, Canário, João Carlos, Romeiro, Alarcón e o centroavante Leônidas “da Selva”. E o Bangu exibia Zizinho, Ernani, Zózimo, Calazans e Décio Esteves.
Neste contexto, Fleitas Solich colocou o Flamengo na vanguarda tática do futebol brasileiro. Além de lançar o esquema que seria posteriormente utilizado por Vicente Feola na Seleção campeã mundial na Suécia, o estilo de jogo rubro-negro já era sinônimo de futebol atualizado. Tanto que, em 1956, quando o Brasil treinado por Flávio Costa excursionou pela Europa, entre altos e baixos, o jornalista Milton Pinheiro, escreveu para a Última Hora, após a derrota por 4 a 2 do time canarinho para a Inglaterra em Wembley: “São lições que não se dispensam e que não devem ser esquecidas. (…) Os europeus jogam o futebol que vimos o Flamengo praticar. Jôgo rápido, objetivo e sem ‘carnaval’. A mudança terá que ser radical entre nós”.
Além disso, há outro dado, que não tem a ver necessariamente com o futebol, mas bastante com identidade num contexto social, e é bastante simbólico quando se analisa o elenco rubro-negro: a expressiva presença de atletas nordestinos (sem falar no paraense Esquerdinha, nortista). Praticamente todos os estados da região – que ouvia os jogos do Flamengo pelas ondas potentes da Rádio Nacional – estavam representados no plantel. Tomires, Dida e Zagallo eram alagoanos; Dequinha era potiguar; Babá, cearense; Duca, pernambucano; e Índio, paraibano. Todos estes titulares em algum momento. Possivelmente este grande contingente, aliado à imagem de “nordestinos que venceram na capital”, especialmente numa época de migração maciça para o Rio de Janeiro, foi também um fator substancial para a formação da grande torcida rubro-negra na região.
Por fim, vale lembrar que o neste período o clube viu surgir vários ídolos e alguns dos maiores jogadores de sua história. Em 1982, na enquete da revista Placar que apontou o Flamengo de todos os tempos (até ali), Garcia, Dequinha e Joel integraram a seleção final. Mesmo fora do time, Dida foi bem votado, enquanto Jadir, Rubens e Zagallo também foram lembrados. Quando a publicação repetiu a enquete, em 1994, Garcia perdeu a “titularidade” para Raul, mas Dequinha e Joel se mantiveram firmes. Além deles, Dida chegou perto, mas acabou novamente ficando de fora, por um voto. E mais tricampeões foram citados: Pavão, Jadir, Jordan, Rubens, Evaristo, Esquerdinha e Zagallo. Já o livro Os Dez Mais do Flamengo, do jornalista Roberto Sander, publicado em 2008, inclui nada menos que quatro jogadores daquela equipe: Dequinha, Rubens, Evaristo e Dida, também escolhidos por um júri. Além deles, Garcia e Joel foram outros lembrados.