Em suas mais de seis décadas de existência, o Maracanã presenciou inúmeras goleadas. Entre clubes e seleções, equipes grandes e pequenas, cariocas e de fora do Rio, brasileiras e estrangeiras, em clássicos, decisões e amistosos. Mas nenhuma das registradas até hoje foi mais dilatada que a imposta pelo Flamengo há exatos 60 anos, empilhando uma dúzia de bolas nas redes do São Cristóvão na tarde de 27 de outubro de 1956, em partida válida pelo Campeonato Carioca daquele ano. Uma dúzia lembra feira. E o que se viu naquele dia foram gols rubro-negros a granel: 12 a 2, placar superlativo nunca ultrapassado no velho (e no novo) maior estádio do mundo.
Curiosamente, não era a primeira vez naquele ano em que o Flamengo marcava uma dúzia de gols numa partida. No dia 7 de junho, durante excursão à Europa, o time rubro-negro havia aplicado um 12 a 1 diante do Brann, da cidade de Bergen, na Noruega (com quatro gols de Henrique, além de Paulinho, Babá, Evaristo e Rubens com dois cada). Mas, àquela altura, o futebol no país escandinavo atravessava um estágio de completo amadorismo.
O atacante Evaristo, capitão do Flamengo na partida, troca flâmulas com seu colega Benedito, do São Cristóvão.
Além disso, em que pese a frequência com que goleadas retumbantes eram impostas no futebol daquela época, em razão da diferença de nível técnico entre grandes e pequenos, um placar tão dilatado não era, absolutamente, algo esperado para aquele confronto. Principalmente porque o São Cristóvão, após um começo ruim, vinha se creditando a sensação, ou o “fantasma” do campeonato, como se dizia na época – apelido bem apropriado, aliás, para uma equipe de uniforme inteiramente branco.
O clube alvo retornava de uma bem-sucedida excursão à Turquia quando, no dia 14 de outubro, em seu estadinho de Figueira de Melo, recebera o Bangu pela abertura do returno do Campeonato Carioca. Tendo Zizinho como principal estrela, além de grandes jogadores como Zózimo, Nívio, Calazans e Décio Esteves, o Alvirrubro era o favorito, mesmo jogando fora de casa. Mas perdeu por 1 a 0, gol de Nonô.
Uma semana depois, na segunda rodada do returno, foi a vez do America – na ocasião, nada menos que o líder do campeonato ao lado do Vasco – levar Pompeia, Canário (ponta que depois defenderia o Real Madrid), Leônidas “da Selva”, Alarcón, Ferreira e seus outros craques ao estádio do São Cristóvão. Depois de abrir o placar com Washington e desperdiçar um pênalti, o time rubro sucumbiu à pressão e ao jogo mais intenso da equipe sancristovense, que empatou com Paulinho.
A equipe do São Cristóvão, candidata a sensação do Campeonato de 1956 até enfrentar o Fla, posa em seu estádio de Figueira de Melo.
A repercussão dos dois últimos resultados na imprensa e no público foi enorme. A revista Esporte Ilustrado chegou a anunciar em chamada na capa da edição de 25 de outubro, que trazia a cobertura do jogo contra o America: “Os cadetes metem mêdo”.
Dois dias depois da data da publicação, seria a vez de o time alvo enfrentar o Flamengo no Maracanã, no jogo de sábado à tarde, abrindo a terceira rodada do returno. Confiantes, repetiam a escalação das duas partidas anteriores: o jovem Rui, que havia ganhado a posição antes do jogo com o Bangu, era o goleiro. Jorge e Ivan completavam a defesa. A linha média tinha Benedito, Osmindo e Décio. E o quinteto ofensivo alinhava Paulinho, Nonô, Ademar, Neca e Olivar.
O Flamengo dirigido por Fleitas Solich também mantinha sua escalação dos dois jogos precedentes, com Ari efetivado no gol no lugar do argentino Chamorro – o que não significava, entretanto, a presença de todos os demais titulares incontestáveis: Jadir e Dequinha, peças fundamentais da defesa e do meio-campo, respectivamente, estavam fora por lesão. O clube rubro-negro buscava o tetracampeonato carioca, mas já havia perdido pontos preciosos (por exemplo, ao empatar com o Bonsucesso na abertura do returno) e ocupava apenas a terceira colocação no certame. Buscava, portanto, a reação a qualquer custo para seguir com chances.
Joel, Paulinho, Índio, Evaristo e Zagallo: a linha de ataque do Flamengo que demoliu a defesa do São Cristóvão.
Às 15h15 foi dado o pontapé inicial. Mal se arvorou o São Cristóvão no ataque, e logo em seguida o Flamengo abriu a contagem. Evaristo invadiu a área e bateu forte. Décio bloqueou, mas a bola sobrou para Índio chutar por elevação, encobrindo Rui. Enquanto buscava o couro no fundo das redes, o arqueiro cadete mal imaginava que repetiria tantas vezes o gesto naquela tarde. “Do jogo propriamente dito, só há a registrar-se os ‘goals’”, desculpou-se a Esporte Ilustrado aos leitores por ver sua crônica do jogo quase reduzida à mera descrição dos tentos.
No primeiro tempo, porém, o escore foi até modesto da parte do Flamengo: só aos 18 minutos as redes alvas balançariam novamente. Joel desceu pela ponta direita e centrou. Evaristo, na pequena área, arrematou de calcanhar. Aos 31, o centromédio Luís Roberto, substituto de Dequinha, apanhou uma bola espanada por Jorge e bateu de fora da área. E cinco minutos depois, Evaristo recebeu de Índio para marcar o quarto.
O médio Luís Roberto, autor de um dos gols.
Com a goleada já decretada, imaginava-se que o São Cristóvão se fecharia na defesa durante a segunda etapa para se poupar de algo pior. Não foi, porém, o que aconteceu. A equipe alva retornou com o mesmo desprendimento defensivo, por assim dizer, e tentando se lançar ao ataque. E veio então a enxurrada de gols rubro-negros. Logo aos sete minutos, Índio foi lançado por Joel e marcou o quinto. Dois minutos depois, o próprio Joel aproveitou o rebote de Rui e fez o sexto. E aos 16, Índio anotou mais um, o sétimo, após assistência de Evaristo.
Na tentativa de salvar um pouco a honra, o São Cristóvão descontou aos 17, depois de Nonô disputar a bola com o goleiro rubro-negro Ari. E após Evaristo fazer o oitavo gol do Flamengo no minuto seguinte, descontou pela segunda vez com Neca, cobrando pênalti de Tomires em Nonô. Mas o Flamengo cavaria mais fundo: aos 32, Paulinho recebeu de Índio e lançou o centroavante na corrida para fuzilar Rui.
Desestabilizada, a defesa sancristovense conseguiu falhar até em cobrança de tiro de meta: Evaristo recolheu o chute torto de Ivan e bateu para as redes, marcando o décimo. Paulinho, aos 41, e Joel, aos 45, completariam a dúzia de tentos rubro-negros. E foi isso: com o escore de DOZE a dois a favor do Flamengo, nem houve nova saída. O lendário Mário Vianna, árbitro da partida – e ironicamente torcedor confesso do São Cristóvão – pôs ponto final num massacre que até hoje o estádio não viu igual.
Evaristo marca um de seus quatro gols em foto da “Esporte Ilustrado”.
A contagem daquela tarde superava e muito o placar mais dilatado registrado até então nos pouco mais de seis anos de existência do Maior do Mundo: a vitória do Brasil sobre a Suécia por 7 a 1 na Copa do Mundo de 1950. E pelas próximas décadas, a batelada de gols daquele Flamengo x São Cristóvão seguiu inalcançável. Duas goleadas por 9 a 0 – do Fluminense sobre o Goytacaz em 1976 e depois do mesmo Flamengo sobre a Portuguesa da Ilha do Governador em 1978 – foram o mais perto que se chegou na velha configuração do estádio.
Até acontecer em 2013, já com o Maracanã transformado em arena, o insólito duelo entre a poderosa seleção da Espanha, campeã mundial, e a modesta equipe do Taiti, em partida válida pela Copa das Confederações da FIFA. A Roja até conseguiu igualar a margem de gols, vencendo por 10 a 0. Mas não chegou à dúzia de bolas na rede proporcionada pelo ataque rubro-negro quase 57 anos antes.
O Flamengo, como já lembramos no post sobre o épico Fla-Flu do primeiro turno daquele campeonato de 1956, não chegaria ao tetra, perdendo pontos fundamentais aqui e ali. Mas naquele 27 de outubro escreveu com muitos gols uma página não só de sua própria história, mas também do velho templo do futebol carioca. Um dia em que o garoto do placar do Maracanã trabalhou bem mais do que o de costume.
FLAMENGO 12 x 2 SÃO CRISTÓVÃO
Maracanã, sábado, 27 de outubro de 1956.
Campeonato Carioca – 14ª rodada (terceira do returno).
Renda: Cr$ 327.587,40.
Árbitro: Mario Vianna.
Gols: Índio aos três (1-0), Evaristo aos 18 (2-0), Luís Roberto aos 31 (3-0), Evaristo aos 36 (4-0) do primeiro tempo. Índio aos sete (5-0), Joel aos nove (6-0), Índio aos 16 (7-0), Nonô aos 17 (7-1), Evaristo aos 18 (8-1), Neca de pênalti aos 22 (8-2), Índio aos 32 (9-2), Evaristo aos 38 (10-2), Paulinho aos 41 (11-2), Joel aos 45 (12-2) do segundo tempo.
Flamengo: Ari; Tomires e Pavão; Milton Copolilo, Luís Roberto e Jordan; Joel, Paulinho, Índio, Evaristo e Zagalo. Técnico: Fleitas Solich.
São Cristóvão: Rui; Jorge e Ivan; Benedito, Osmindo e Décio; Paulinho, Nonô, Ademar, Neca e Olivar. Técnico: Índio.
Time rubro-negro que venceu o clássico do dia 16 de setembro de 1956. Em pé: Chamorro, Pavão, Jadir, Tomires, Dequinha e Jordan. Agachados: Joel, Duca, Evaristo, Paulinho e Babá, o autor do gol.
Fazia muito calor no Maracanã na tarde de 16 de setembro de 1956, incomum para a época do ano. Naquele domingo, quem levou jornais para se abanar e tentar amenizar um pouco a temperatura no estádio lotado poderia também ler nas páginas do noticiário sobre a crise política internacional que tinha como pivô o Egito, após a nacionalização do Canal de Suez pelo presidente Gamal Abdel Nasser, tomando das empresas britânicas e francesas o controle da circulação de embarcações na região.
Ou que, nos Estados Unidos, o presidente Dwight Eisenhower se preparava para mais um embate eleitoral contra o candidato democrata Adlai Stevenson, enquanto a juventude do país se rendia a uma nova febre: o rock ‘n’ roll.
Ou – mais provável, em vista do interesse – sobre os últimos ajustes para o primeiro Fla-Flu válido pelo Campeonato Carioca de 1956. Nele, o time da Gávea, atual tricampeão carioca e dirigido pelo paraguaio Fleitas Solich, buscava a vitória para não se distanciar da briga pela liderança contra Vasco e America. Paralelamente, o clube discutia a situação do meia Rubens, o Doutor Rúbis, ídolo da torcida em outras campanhas e que agora, em baixa, vinha de lesão e tinha proposta para se transferir ao Belenenses, de Portugal.
Torcida rubro-negra no Maracanã.
Além de Rubens, o time rubro-negro sofria com outras baixas importantes: Índio, Dida e Zagallo – metade do setor ofensivo – estavam vetados para o clássico, o que obrigaria o treinador a escalar o garoto Duca na meia-direita, deslocando o craque Evaristo para o centro do ataque e fazendo entrar Paulinho como ponta-de-lança e o miúdo Babá na extrema esquerda.
Já o Tricolor, comandado pelo ex-atacante rubro-negro Sylvio Pirillo, havia começado mal o torneio, mas seguia em franca recuperação e vinha completo. Tinha no ponta-direita Telê seu grande organizador de jogadas e em Waldo seu goleador, além da força de Pinheiro na zaga e dos milagres de Castilho – titular da Seleção Brasileira na Copa do Mundo da Suíça, dois anos antes – no gol.
Na tarde quente de domingo, de Maracanã lotado e renda fabulosa (acima de Cr$ 1,6 milhão, superando em mais de dez vezes a soma de Botafogo x Bangu, no mesmo estádio na noite anterior), o Fla entra em campo com o argentino Chamorro no gol; Tomires pelo lado direito da defesa, Pavão de central, Jadir recuando da linha média para fazer a quarta zaga e Jordan na lateral-esquerda. Dequinha é o centromédio, articulando as jogadas com Duca pela meia-direita. Na frente, alinhavam Joel, Evaristo, Paulinho e Babá.
Joel e Evaristo pressionam Castilho.
No primeiro tempo, o time de Fleitas Solich é mais incisivo. Ataca principalmente pelo seu lado direito, aproveitando o dia ruim do médio-esquerdo tricolor Paulo. Esbarra, porém, no miolo de zaga adversário e em um Castilho que intercepta qualquer tentativa de cruzamento, pelo alto ou pelo chão. Do outro lado, a retaguarda do Fla não dá trégua ao ataque tricolor, mantendo sua área fora de maiores perigos. São 45 minutos em que as defesas sobrepujam os ataques.
Na etapa final, entretanto, quando o Fluminense passa a controlar as ações é que o jogo toma jeito de épico, honra a lenda do clássico. Primeiro Joel leva uma pancada na cabeça (provocando um princípio de traumatismo, afirmaria depois o médico rubro-negro Paulo São Tiago), mas continua em campo.
Depois vem o pênalti de Pavão em Waldo, apontado por Amílcar Ferreira. Da defesa vem Pinheiro, dono de um verdadeiro coice, cobrador de tiros indefensáveis da marca da cal. Chamorro prepara-se no gol, o zagueiro tricolor prepara a cobrança no canto esquerdo, enche o pé… e a bola explode no pé da trave.
Poucos minutos depois, o Flamengo se vê novamente em apuros: Dequinha, capitão do time e o homem que bloqueia a entrada da área e distribui o jogo da equipe, sofre violenta distensão muscular num choque casual com um adversário e precisa deixar o campo. Não há substituições, o time fica com dez. Para suprir sua ausência, o Fla precisa ser ainda mais coletivo do que o de costume.
Chamorro, o arqueiro argentino do Fla, voa para resgatar a bola que escapou na disputa entre Waldo e Pavão na área.
A pressão do Fluminense é imensa, insustentável. O gol tricolor amadurece a cada ataque. Parece inexorável. Numa escapada, Léo entra na área cara a cara com Chamorro, e o argentino opera um milagre. A bola sobra para Tomires (sofrendo com uma antiga distensão desde o primeiro minuto), que despacha com um chutão para a frente. A bola viaja. Pinheiro e Evaristo pulam juntos, mas não alcançam a cabeçada. Jair Santana, o último jogador da defesa tricolor, parece que vai fazer o domínio, mas a bola bate em sua cabeça e foge do alcance.
E sobra para Babá, na linha do meio-campo. Do alto de seu 1,54 metro de altura, o ponteiro rubro-negro recolhe, levanta a cabeça e olha para o latifúndio que tem à sua frente.
E então parte veloz e obstinadamente em direção ao campo adversário…
…Passando da intermediária, vê Castilho, o paredão do Tricolor e da Seleção, saindo do gol, e prepara-se para encher o pé…
…Mas em vez da bomba, vem de improviso um leve toque, que encobre o arqueiro com um lençol magnífico…
…E mansamente a bola quica e segue seu caminho em direção às redes…
…Para se aninhar no fundo da meta tricolor…
…Enquanto Babá e seus companheiros vibram, e o Maracanã vem abaixo…
…E ao resignado Pinheiro, só resta buscar a bola para a nova saída.
Mário Braga Gadelha, 22 anos de idade, cearense de Aracati que chegara há dois anos ao Rio de Janeiro para defender o Flamengo, enlouquece a massa. Aos 41 minutos do segundo tempo, remando contra a maré, o Rubro-Negro marca o único gol da partida. Crava a estaca no peito tricolor, que nos últimos minutos não consegue mais articular sequer uma jogada perigosa de ataque para tentar o empate. A vitória, dramática e improvável, é do Flamengo, graças ao pequenino Babá.
Nos vestiários, enquanto levava alguns pontos no couro cabeludo, em decorrência da pancada que sofrera em campo, o ponta Joel lembrava que o Flamengo vinha se acostumando a ganhar com 10, referindo-se também ao triunfo com um jogador a menos (Evaristo fora expulso) diante do Bangu, duas rodadas antes. Agora, exibindo raça, dedicação e futebol coletivo, o Fla voltava a vencer.
Mas o desgaste pagará seu preço ao final, e o Flamengo, extenuado, oscilará muito ao longo da competição, perdendo pontos bobos que impedirão o tetracampeonato. Ainda que colha outros resultados memoráveis no caminho – incluindo mais uma vitória de 1 a 0 sobre o Flu no returno.
Naquela tarde quente de 16 de setembro, porém, o velho Maracanã ganhou um gol para a história, que quem viu não se esquece. Um dia em que a malícia de um Davi venceu a imponência de um Golias da meta. Na manhã seguinte, o menino Babá era a manchete.
FLAMENGO 1 x 0 FLUMINENSE
Maracanã, domingo, 16 de setembro de 1956.
Campeonato Carioca – 8ª rodada.
Renda: Cr$ 1.670.197,80.
Árbitro: Amílcar Ferreira
Gol: Babá, aos 41 minutos do segundo tempo.
Flamengo: Chamorro; Tomires e Pavão; Jadir, Dequinha e Jordan; Joel, Duca, Evaristo, Paulinho e Babá. Técnico: Fleitas Solich.
Fluminense: Castilho; Cacá e Pinheiro; Jair Santana, Clóvis e Paulo; Telê, Léo, Waldo, Jair Francisco e Escurinho. Técnico: Sylvio Pirillo.
As fotos maravilhosas que ilustram o texto são do acervo fotográfico do extinto jornal carioca Última Hora, atualmente preservado pelo Arquivo do Estado de São Paulo.
A jogada do gol de Babá desenhada pela revista Esporte Ilustrado.
Moacir, habilidoso meia rubro-negro, em foto publicada na contracapa da última edição da revista Esporte Ilustrado, em dezembro de 1956.
Um dos quatro jogadores do Flamengo a conquistarem pela Seleção Brasileira a Copa do Mundo de 1958, na Suécia, o meia Moacir Claudino Pinto completa 80 anos de idade nesta quarta-feira. Jogador de muita técnica, perito nos dribles curtos e cortes secos nos adversários, preciso nos passes e lançamentos, e que também auxiliava na marcação quando necessário, ajudou a dar prosseguimento a uma longa linhagem de camisas 8 rubro-negros que aliavam elegância e malícia, como Zizinho, Rubens (o Doutor Rúbis) e os posteriores Geraldo Assoviador e Adílio. Hoje, porém, Moacir não costuma ser muito lembrado pelos torcedores e até pela imprensa na hora de listar os grandes jogadores que passaram pelo clube, ao contrário de Joel, Dida e Zagallo, companheiros presentes àquele Mundial.
Existem algumas explicações possíveis. A primeira é que, apesar de ter sido quase sempre titular, sua passagem pelo time profissional do Flamengo durou pouco mais de quatro anos, de novembro de 1956 a março de 1961, relativamente curta para aqueles tempos em que os jogadores costumavam permanecer o dobro do tempo, ou até mais. Deixou a sensação de ter explodido precocemente e, em vista disso, ter encerrado seu ciclo na Gávea mais cedo do que deveria, antes que pudesse se eternizar no coração e na memória da maioria dos torcedores. Outro agravante é a falta de títulos marcantes neste período, especialmente no Carioca, já que o meia esteve na equipe bem no meio do jejum na competição que durou entre o tricampeonato encerrado em 1955 e a conquista de 1963 – o que é uma meia verdade, como explicaremos mais adiante.
NA INFÂNCIA, O DRAMA DO ABANDONO
Na época em que jogou, no entanto, era um ídolo do povo rubro-negro, que vibrava com seu futebol moleque. E essa idolatria, juntamente com o carinho que recebia da massa, ajudava a esquecer um histórico de rejeição. Tudo começou aos seis anos de idade, no bairro do Ipiranga, em São Paulo, onde nasceu e passou a primeira parte da infância, numa casa modesta com o pai ferroviário, a mãe e os oito irmãos.
Como o próprio Moacir lembrou em depoimento recente: “Meu pai me deu um dinheiro e mandou jogar no bicho. Fui jogar uma peladinha e deixei o dinheiro embaixo de uma pedra. Eram seis da tarde. Depois, fui procurar o dinheiro, mas o campo era cheio de pedras e eu não encontrei”. Aflito, já temia o que o aguardava. “Meu pai me deu uma tremenda surra. Aí me trancou com as galinhas, uma noite terrivelmente fria”, relembra.
O garoto tomou então a decisão que mudaria radicalmente sua vida, não sem deixar sequelas futuras: fugiu de casa, acabando por parar na delegacia. Aguardou por três dias que algum parente viesse busca-lo, e nada. Dado como abandonado, foi levado a um orfanato de Osasco, onde passou o restante da infância e a adolescência. A categoria que demonstrava nas peladas que jogava na instituição fez do diretor do orfanato seu grande admirador, além de impulsionador de sua carreira: era amigo do presidente rubro-negro Gilberto Cardoso e o convenceu a levar o garoto ao Rio para um teste na Gávea.
Aprovado, passou a morar na concentração do clube, pelo qual fez todo o processo de base. Era 1954. Apesar do porte físico franzino e da baixa estatura (1,63m) sua habilidade assombrosa com a bola se destacava. Dois anos depois, além de arrebentar nos juvenis, ajudou o clube a conquistar o título da categoria aspirantes, encerrando hegemonia do Fluminense.
Moacir é cumprimentado no vestiário rubro-negro no Maracanã, em 1959. Ao seu lado, Jordan. E ao fundo, Dequinha. (Foto: Acervo Última Hora)
NOVO TALENTO DA GÁVEA
Também naquele ano, em 24 de novembro, estrearia pelo time profissional do Flamengo, que tentava o tetra carioca, mas não vinha em situação muito favorável naquela reta final, acumulando tropeços. Naquele dia, o Fla não teria Evaristo, e o técnico Fleitas Solich recorreu então ao garoto habilidoso dos aspirantes para vestir a 10 contra o Bangu no Maracanã. Moacir não só não se intimidou como teve uma atuação de encher os olhos, digna de veterano. Marcou um golaço, o terceiro na vitória por 3 a 1, passando por Décio e Zózimo antes de trocar de pé para chutar forte e estufar as redes de Nadinho.
Foi tão bem em sua estreia que acabou nomeado para a seleção da rodada da revista Esporte Ilustrado e do jornal Correio da Manhã. Em 9 de novembro, disputaria seu segundo e último jogo naquele ano, um Fla-Flu vencido pelos rubro-negros por 1 a 0. O time acabou não conseguindo alcançar o Vasco, que ficou com a taça, mas ganhou um talento notável em seu meio-campo.
Time do Flamengo no jogo de estreia de Moacir, contra o Bangu, em novembro de 1956. Em pé: Tomires, Ari, Pavão, Milton Copolilo, Dequinha e Jordan. Agachados: Joel, Paulinho, Índio, Moacir e Zagallo.
Então chega 1957, a primeira das quatro temporadas completas em que Moacir seria titular do Rubro-Negro. E já começaria brilhando, com dois gols na vitória por 5 a 3 sobre os suecos do AIK, em amistoso que abriu a temporada internacional no Maracanã. Mas os visitantes mais ilustres daquele começo de ano seriam os húngaros do Honved, trazendo Puskas, Kocsis, Czibor e todos os seus demais craques. No primeiro jogo do desafio, o Flamengo surpreendeu: mesmo com nada menos que seis desfalques – não jogaram Jadir, Dequinha, Jordan (a linha média inteira), Joel, Índio e Zagallo – entre lesionados e atletas cedidos à seleção carioca, arrasou os atônitos húngaros vencendo por 6 a 4.
Coube a Moacir abrir o placar aos 24 minutos do primeiro tempo pegando o rebote de uma cobrança de falta de Paulinho que desviou na barreira e acertou a trave. Para o jornal Última Hora, o meia foi “o dono da cancha”, o grande responsável pelo Flamengo ter dominado o setor, fator fundamental para a grande vitória naquele primeiro confronto. Ao avaliar individualmente as atuações, Albert Laurence deu nota 9 ao jovem talento, concluindo: “Moacir confirmou que é um jogador completo, de grande futuro, realmente. Mostrou coisas realmente excepcionais no domínio e entrega da bola”.
Nas semanas seguintes, Moacir voltaria a enfrentar o Honved cinco vezes, quatro pelo Flamengo (perdendo no Pacaembu e no Maracanã, mas vencendo e empatando em partidas disputadas em Caracas, na Venezuela) e uma pelo combinado Flamengo-Botafogo no Maracanã, entrando no lugar de Dida e fazendo a assistência para Evaristo fechar a vitória por 6 a 2. Suas atuações nestas partidas – em seus oito primeiros jogos pelo Fla, já havia anotado seis gols – chamaram tanto a atenção que o técnico da seleção carioca, o ex-centroavante Sylvio Pirillo, fazia questão de contar com o jovem para as partidas decisivas do Campeonato Brasileiro de Seleções, contra os paulistas, mas acabou não sendo cedido. Outra Seleção, a Brasileira, o aguardaria para breve.
A primeira convocação para o time da CBD viria em junho, depois das grandes atuações do meia no Torneio Rio-São Paulo no mês anterior. Contra o Santos, em 5 de maio, Moacir ofuscou um jovem de 16 anos que debutaria naquele dia no Maracanã – um certo Pelé – com assistências para três gols da vitória rubro-negra por 4 a 0. No último, mesmo marcado por três adversários, deu passe milimétrico por elevação para Joel fechar a goleada. Naquele torneio, o Fla não levaria o título, ficando em segundo junto com o Vasco e atrás do invicto Fluminense, mas a equipe – e Moacir – teria outras atuações destacadas, como nas goleadas de 4 a 0 no Corinthians em pleno Pacaembu e 4 a 1 no Botafogo.
Vale lembrar que o elenco rubro-negro passava por grande reformulação: Evaristo havia acabado de ser negociado com o Barcelona; Paulinho saíra para o Palmeiras; Índio faria suas últimas partidas pelo clube naquele torneio, transferindo-se em seguida para o Corinthians; e o ex-ídolo Rubens, definitivamente em baixa com Fleitas Solich, seria emprestado ao Santa Cruz e não voltaria a defender o Fla. Para os lugares destes e de outros craques, o treinador paraguaio contava com Moacir, intocável como meia-armador, e outros jovens recrutados dos aspirantes, como o centroavante Henrique, o curinga do ataque Luís Carlos, o zagueiro Milton Copolilo e o lateral-direito Joubert, além de finalmente firmar Dida como titular e dono da camisa 10.
ESTREIA NA SELEÇÃO
Pouco menos de oito meses depois de estrear no profissional do Flamengo, Moacir já fazia sua primeira partida pelo Brasil, em 11 de junho, contra Portugal no Maracanã. Sylvio Pirillo, agora treinador da Seleção Brasileira, não desperdiçou a segunda oportunidade que teve de contar com ele, convocando-o para um time experimental, com vários estreantes, para testar as novidades depois de o escrete canarinho ter carimbado o passaporte para a Copa da Suécia em abril. O garoto entrou no lugar do santista Pagão – outro que debutava, e que saiu contundido – e melhorou a equipe, trabalhando ao lado de Zito e Didi e dando mais consistência defensiva e ofensiva ao meio-campo brasileiro, e contribuindo na vitória por 2 a 1.
O time do Fla que enfrentou o Combinado Vasco-Santos em 1957. Em pé: Joubert, Pavão, Ari, Jadir, Dequinha e Jordan. Agachados: Luís Carlos, Moacir, Henrique, Dida e Zagallo.
Cedido à Seleção, Moacir ficou de fora da estreia do Flamengo no Torneio Internacional do Morumbi – organizado pelo São Paulo para arrecadar fundos para a construção de seu estádio – contra os iugoslavos do Dínamo de Zagreb. Mas estaria de volta, e marcando dois gols, na segunda partida, uma vitória fácil sobre os portugueses do Belenenses por 3 a 1. No último jogo da chave, em partida tensa contra um combinado Vasco-Santos (com sete santistas entre os titulares), um momento de antologia: com passe magistral de calcanhar pelo ar, fez a assistência para Dida abrir o placar para o Fla no empate em 1 a 1.
Primeiro colocado da chave carioca, o Flamengo avançou para o quadrangular final, derrotando de saída e com facilidade o Corinthians por 3 a 1 no Pacaembu, largando na frente, diante do empate entre o São Paulo e o Combinado. Mas, dois dias depois, o Tricolor paulista anunciava o cancelamento do torneio, alegando rendas baixas e prejuízo, e reteria para si a taça, ignorando a condição do Flamengo de líder do turno final quando do encerramento.
Em setembro, Moacir integrou o time rubro-negro que vai à Espanha, convidado para atuar nos festejos de inauguração do estádio Camp Nou, do Barcelona. No dia 25 daquele mês, o Flamengo goleou o Burnley, na época uma das potências do futebol inglês, por 4 a 0, e o estilo de jogo moderno, habilidoso e envolvente dos brasileiros encantou a crônica da Catalunha.
No Carioca, o Flamengo começou muito bem, com 13 vitórias nas primeiras 16 rodadas, e brigou cabeça-a-cabeça com Botafogo e Fluminense pelo título. Mas nas seis últimas rodadas (a partir de meados de novembro) começou a patinar: venceu apenas o Vasco (repetindo os 4 a 1 aplicados no primeiro turno), empatou quatro vezes e perdeu para o Fluminense, terminando o torneio com apenas duas derrotas – ambas para o Tricolor – mas na terceira colocação.
No primeiro semestre de 1958, o Flamengo virou a página e voltou a jogar o fino da bola. O time colhia resultados espetaculares e parecia que jogava de novo como uma máquina, o Rolo Compressor dos tempos do tricampeonato. O time reformulado ao longo de 1957 estava pronto: Fernando (ex-Bangu) no gol; Joubert e Jordan eram sobriedade e eficiência nas laterais; Pavão e Jadir esbanjavam força do miolo de zaga; Dequinha e Moacir, exuberantes, comandavam o jogo da meia-cancha; e Joel, Henrique, Dida e Zagallo formavam o ataque demolidor. A primeira demonstração de que aquele onze não estava para brincadeiras veio em 31 de janeiro, com uma vitória histórica e categórica sobre o Boca Juniors por 4 a 2 em plena Bombonera. Moacir marcou duas vezes, Zagallo e Dida completaram o placar.
No começo do Torneio Rio-São Paulo não foi diferente: estreou com grande vitória de 3 a 2 sobre o São Paulo na capital paulista, seguida por um 4 a 2 diante da Portuguesa no Maracanã e um épico 3 a 2 de virada (perdia por 2 a 0) para o Santos de Pelé no Pacaembu. Após uma derrota apertada para o America, o time se recuperou massacrando em sequência o Botafogo (4 a 0) e o Palmeiras (6 a 2). Contra o Alvinegro, Moacir fez partida de almanaque: ajudou Dequinha a anular Didi, movimentou-se incessantemente, acertou passes e lançamentos e ainda apareceu no ataque para chutar ao gol.
Já sobre a partida contra o Alviverde, o novo técnico da Seleção Brasileira, Vicente Feola, que assistiu ao jogo das tribunas, comentou: “Este time do Flamengo é mesmo impressionante. Vi-o contra o Botafogo e agora. Sempre o mesmo. Muito bom em suas manobras e quase perfeito no estado físico. É uma equipe que mete até medo aos adversários”. No fim, tratou ainda de destacar um jogador em especial: “Como está jogando o Moacir!”.
Na reta final, o Fla venceu o Fluminense por 1 a 0, gol de Jordan, em jogo bastante equilibrado. Dois dias depois, empatou com o Vasco – com quem dividia a liderança – em 1 a 1, já mostrando sinais de cansaço. No último jogo, diante do Corinthians no Pacaembu, nada deu certo. Enfrentando um time Alvinegro bastante violento, desleal e inflamado pela torcida, além da complacência do árbitro, o Flamengo sofreu um gol na metade do primeiro tempo e perdeu Jadir por lesão logo aos 34 minutos.
O substituto do veterano beque rubro-negro, o jovem aspirante Sergio, acabaria marcando contra o segundo gol corintiano. E Bataglia fecharia o placar aos 42, antes que uma verdadeira batalha campal tomasse conta do gramado, inclusive com policiais agredindo jogadores rubro-negros. O caminho, então, ficou livre para o Vasco levantar o troféu, quatro dias depois, ao golear a Portuguesa.
NA LISTA DA COPA
Na Seleção, em 1958.
Mesmo sem a taça, a força da equipe do Flamengo ficou comprovada na lista prévia de 40 nomes para a Copa do Mundo de 1958, divulgada pela imprensa no final de março. Além de Moacir, que impressionara Feola, outros cinco rubro-negros constavam: Pavão, Jadir, Dequinha, Joel e Dida. Somente o São Paulo, clube onde o técnico da Seleção passara a maior parte de sua carreira, teve número maior (sete) de pré-convocados. Durante a primeira fase da preparação, em Poços de Caldas, o meia rubro-negro atraía cada vez mais admiradores e era o grande destaque dos treinamentos, mesmo atuando entre os reservas. Não foram poucas as vezes em que os suplentes derrotaram os titulares com participação irretocável do garoto da Gávea. Assim como não foram poucos os observadores que sugeriram sua inclusão entre os titulares no lugar de Didi.
Embora tivesse inclusive o técnico da Seleção como um de seus maiores admiradores, o meia rubro-negro se mantinha modesto, fazendo seu jogo simples e objetivo: “A grande verdade é que por enquanto estou apenas pensando em garantir a minha vaga para a Suécia. Não penso muito além disso, pois considero todos os elementos convocados como dignos de figurarem como titulares. Para ser sincero comigo mesmo, devo dizer que nem pensei em ser convocado para a Copa do Mundo. É verdade que sempre tive confiança em mim mesmo. Sabia que não faria feio se merecesse a honra”, disse à Última Hora.
Conta-se que foram nessas circunstâncias que Didi teria cunhado a célebre frase “treino é treino, jogo é jogo” para justificar sua permanência entre os titulares. Mas não é absurdo afirmar que o incômodo com a situação e a ameaça do ascendente Moacir forçaram o meia-armador alvinegro jogar tudo e mais um pouco na Suécia. Se não chegou a entrar em campo nos gramados suecos – naquele tempo não eram permitidas as substituições em jogos oficiais de competições da Fifa – o jovem rubro-negro foi um grande “motivador”, por assim dizer, das atuações memoráveis de Didi no Mundial.
Nas semanas que antecederam o embarque para o Mundial, Moacir foi um dos destaques da Seleção na goleada de 4 a 0 sobre a Bulgária no Maracanã, no penúltimo amistoso em terras brasileiras. Marcou dois gols e ajudou a furar o ferrolho búlgaro, num dia em que a linha atacante do escrete era praticamente toda rubro-negra: além dele, Joel, Dida e Zagallo compunham o quinteto, com o palmeirense Mazzola como “infiltrado”. Na Suécia, Moacir também esteve perto de um lugar no time, é verdade, na partida contra a Inglaterra, atuando na meia-esquerda, já que nem Dida nem Pelé estavam em boas condições físicas. Mas quem acabou deslocado para a função foi o Mazzola, entrando Vavá no comando do ataque. Mesmo assim, voltaria campeão do mundo.
O ataque quase integralmente rubro-negro da Seleção no amistoso contra a Bulgária em 1958: Joel, Moacir, o palmeirense Mazzola, Dida e Zagallo.
O PRIMEIRO TÍTULO NO FLA: HEXAGONAL DE LIMA
Moacir sofreu críticas da imprensa por ter mostrado uma queda acentuada de rendimento na extensa fase final do Campeonato Carioca de 1958, em dois triangulares contra Vasco e Botafogo (os cruzmaltinos ficaram com a taça). No entanto, ainda naquele mesmo mês de janeiro de 1959 em que deixaria escapar sua maior chance de levantar o título do Rio de Janeiro, o meia se reabilitaria com grandes atuações no Torneio Hexagonal de Lima, no Peru, no qual enfrentaria dois clubes sul-americanos os quais defenderia mais tarde, o Peñarol e o River Plate. O time rubro-negro estreou perdendo dos uruguaios por 2 a 0, mas Moacir foi aclamado como o melhor em campo. Em seguida, contribuiu com uma assistência na vitória de 2 a 0 sobre o Universitário peruano.
O jogo seguinte já colocaria o Flamengo na liderança do torneio: em apenas 22 minutos de jogo, vencia o Colo Colo por 4 a 0, com Moacir marcando o segundo. Na etapa final, os chilenos reagiram marcando duas vezes, mas a vitória não esteve nunca ameaçada. As credenciais rubro-negras seriam plenamente confirmadas na partida seguinte, uma goleada de 4 a 1 sobre o River Plate, em outra atuação exuberante de Moacir e de toda a equipe.
Faltava o Alianza, diante de um estádio lotado de torcedores do time local. No primeiro tempo, entretanto, o Flamengo atuou bem abaixo do que vinha fazendo e saiu perdendo por 2 a 0. Na etapa final, logo aos nove minutos, sofreu o terceiro. Mas, já no minuto seguinte, iniciou uma reação incrível, marcando quatro vezes em oito minutos para vencer por 4 a 3 e levantar o título do torneio, o primeiro troféu conquistado por Moacir no time de cima do Fla.
No resto da temporada, porém, o time se contentou com momentos esparsos de brilho, em algumas grandes vitórias com os 7 a 2 sobre o America e os 5 a 1 no Corinthians no Pacaembu, pelo Rio-São Paulo; os 6 a 2 diante do Botafogo no Carioca (única vitória rubro-negra nos clássicos daquela competição); e os 3 a 0 sobre o forte Spartak Moscou, em amistoso no Maracanã.
Uma formação do Flamengo durante o Carioca de 1960. Em pé: Joubert, Ari, o paraguaio Monín, Jadir, Carlinhos e Jordan. Agachados: Othon, Moacir, Henrique, Gerson e Babá.
FLA SE RENOVA, MAS MOACIR AINDA BRILHA
A temporada de 1960 foi outra bastante opaca do time rubro-negro, de um modo geral. Comandado no primeiro semestre pelo paraguaio Modesto Bria, centromédio do time do primeiro tri, e posteriormente por Fleitas Solich, de volta após a experiência no Real Madrid, o Flamengo não chegou a brigar seriamente por nenhum dos títulos que disputou.
Havia, no entanto, uma nova safra de talentos que surgia, e três nomes mereciam destaque: o volante Carlinhos, legítimo sucessor de Dequinha na classe e na liderança; o ponta Germano, negro arisco e driblador; e o meia Gerson, de qualidade técnica indiscutível e que provocaria uma disputa de posições no time titular, já que poderia atuar tanto de meia-armador no lugar de Moacir quanto de ponta-de-lança na função de Dida.
Ainda naquele ano, o meia faria sua sétima e última partida pela Seleção (a única depois da Copa da Suécia), na goleada de 5 a 1 sobre a Argentina pela Taça do Atlântico, no Maracanã. Mas entrou nos 15 minutos finais e não teve tempo para mostrar jogo.
Pelo Flamengo, duas das grandes atuações do meia naquela temporada vieram em raros jogos nos quais o time se mostrou coeso, bem equilibrado entre os setores e organizado em campo. Coincidentemente, aconteceram em clássicos vencidos de virada pelo placar de 3 a 1. O primeiro deles contra o Botafogo, em 24 de março, pelo Rio-São Paulo.
A Última Hora rasgou elogios a Moacir, autor do terceiro gol rubro-negro. Para o jornal, o meia foi “sempre grande figura”, “a mola mestra, com desembaraço e eficiência”, “inteligente e astuto, brilhando, provando que é craque de fato”. Albert Laurence, outra vez encarregado de avaliar as atuações, apontou o jogador como o melhor em campo: “teve uma atuação estupenda, evoluindo com elegância, clarividência e acerto, marcando um belíssimo gol”.
O segundo triunfo foi o do Fla-Flu do returno do Carioca, em 20 de novembro, e quebrou longa série invicta do Tricolor no campeonato. Novamente formando um trio de meio-campo com Carlinhos e Gerson, Moacir comandou uma grande reação, marcando ainda um belo gol, o segundo do time. Sobre esta exibição, Laurence escreveu: “Moacir também demonstrou que quando está em boa condição física, continua sendo um dos melhores meias-armadores do país”.
O Torneio Octogonal Internacional de Verão disputado em janeiro de 1961 no Rio, São Paulo, Buenos Aires e Montevidéu, e que teve sua história contada aqui, foi a segunda conquista de Moacir pelo Flamengo. O meia começou a competição como reserva, para o desgosto da maioria dos torcedores (uma nota na Última Hora dizia: “A torcida do Flamengo não se conforma, vendo o meia Moacir na reserva. Contra o São Paulo, quando foi anunciado que Moacir substituiria Luís Carlos, houve grande euforia entre os rubro-negros”), mas contribuía muito quando entrava.
Já no primeiro jogo marcou o gol da vitória por 2 a 1 sobre o Corinthians no Pacaembu. E na quarta rodada, no 1 a 0 sobre o River Plate em Buenos Aires, era enfim titular. Jogou até na ponta-direita, improvisado, como contra o Nacional em Montevidéu, mas foi muito importante no título.
Em seguida viria o Torneio Rio-São Paulo, que seria a terceira conquista –a única oficial – do armador na Gávea. Porém sua participação ficou restrita à estreia, na boa vitória sobre o São Paulo por 2 a 1 no Pacaembu, na qual entrou no lugar de Henrique e teria boa atuação. Era peça importante do elenco e parecia que seria bem mais utilizado na campanha, mas um ato considerado de indisciplina teria desfecho dramático.
Depois da partida, o Flamengo permaneceu na capital paulista, onde enfrentaria o Palmeiras na quarta-feira. Na noite de segunda, porém, os jogadores ganharam do técnico Fleitas Solich cinco horas de folga. Convidados pelo futuro rubro-negro Almir Pernambuquinho, na época jogador do Corinthians, Moacir e outros três jogadores do Flamengo comemoraram a vitória do dia anterior no apartamento do atacante corintiano com bate-papo, som alto, mulheres e bebida alcoólica – esta última, algo que o treinador paraguaio sabidamente não tolerava em hipótese alguma.
Na reapresentação, houve atrito sério. E a corda arrebentou para Moacir, imediatamente negociado com o River Plate – por Cr$ 7 milhões (mais Cr$ 2 milhões de luvas) – e, assim como os demais, multado em 40% do salário. O que se comentava na época era que o Solich tinha a intenção de passar um “pente fino” no elenco, o que em temporadas anteriores já havia provocado a saída de alguns ídolos do clube.
Moacir no River, na capa da revista argentina El Grafico de 31 de maio de 1961.
No River, Moacir jogaria até o fim daquele ano e não conquistaria títulos, mas seria sempre lembrado por um gol de falta antológico, batido quase da linha de fundo, num clássico diante do Boca Juniors. Viraria ainda título de conto (“El Ocho era Moacyr”) do escritor Roberto Fontanarrosa. Seguiria para o Peñarol no ano seguinte, pelo qual conquistaria o Campeonato Uruguaio e jogaria a final da Libertadores, perdendo para o Santos. De lá, separou-se da esposa e dos dois filhos e rumou para o Equador, onde defenderia o Everest e o Barcelona de Guayaquil. Ainda passaria pelo futebol peruano, defendendo o Carlos A. Manucci, antes de retornar ao país anterior, no qual trabalharia como técnico. Durante décadas, perdeu contato com os familiares – o qual só foi retomar em 2008, quando veio ao Brasil para um reencontro emocionado com o filho mais novo.
A vida no Equador – onde novamente se casou, foi pai e reside até hoje – também não tem sido fácil, enfrentando graves dificuldades financeiras e problemas de saúde. Mas nunca esqueceu o Flamengo, o qual visitou em 2012: “Joguei em muitos times e países, mas o Flamengo é o único que eu gosto no mundo”, costuma repetir. Ou mais ainda: para ele, o Flamengo foi sua primeira experiência verdadeira de família.