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O time campeão no Fla-Flu decisivo. Em pé: Luiz Luz (massagista), Murilo, Marcial, Ananias, Luís Carlos Freitas, Carlinhos e Paulo Henrique. Agachados: Espanhol, Nelsinho, Aírton “Beleza”, Geraldo José e Osvaldo “Ponte Aérea”.

Sem levantar o título carioca havia oito anos, o Flamengo de 1963 teve de enfrentar um sem-número de batalhas internas e externas. Um treinador tido como superado à frente de um elenco com quem tanto ele quanto o presidente do clube entraram em atrito em várias ocasiões ao longo do ano. Jogadores chegando e saindo – e entre os que saíam para sempre, algumas lendas rubro-negras. O clube revirado em obras, sem poder oferecer naquele momento a estrutura adequada. E o descrédito de parte da imprensa, que não o colocava entre os grandes candidatos. Pois tudo isso ficou para trás há exatos 60 anos, quando a equipe saiu aclamada do Maracanã, de faixa no peito, após um Fla-Flu épico, assistido pelo maior público da história do futebol de clubes.

O VÁCUO DEPOIS DO TRI

O segundo tricampeonato carioca do Flamengo, o de 1953/54/55, representou o ápice de um dos maiores esquadrões da história do clube e do futebol brasileiro. Mas ao mesmo tempo demandou tamanho esforço físico (pela longuíssima duração do torneio e pelo excesso de lesões no elenco) e psicológico (sobretudo devido ao repentino falecimento do presidente Gilberto Cardoso bem no meio da campanha, em 25 de novembro de 1955) dos envolvidos que pareceu ter drenado as energias dos atletas por um longo tempo após a conquista.

A ausência do antigo mandatário e de sua dedicação absoluta e em tempo integral ao clube foi um fator muito sentido naquele pós-tri, como admitiria o lateral-esquerdo Jordan em 2005, numa entrevista concedida ao jornalista José Rezende: “O presidente Gilberto Cardoso estava sempre presente e era muito nosso amigo. O que a gente precisava, ele estava presente e cedia. Depois de seu falecimento as coisas ficaram mais difíceis para nós. Nós precisávamos de certas coisas e não tínhamos. Com ele sempre tinha”, lamentou.

O certame de 1956 foi reflexo imediato disso, em que tudo foi muito intenso, para o bem ou para o mal. Vitórias heroicas, derrotas vexatórias, lesões dramáticas, decisões polêmicas da arbitragem e, como desfecho, o time perdendo até a cabeça contra o Canto do Rio no Caio Martins. A “caça ao tetra” empreendida pelos rivais deu resultado. Há quem afirme, como o historiador Ivan Soter, ter nascido ali a chamada “arco-íris”, a união de todos os clubes para impedir o que seria um inaceitável (para eles) tetra rubro-negro.

No ano seguinte, com o time em parte reformulado, o Fla sustentou uma corrida cabeça a cabeça com Botafogo e Fluminense por cerca de três quartos do campeonato, até perder o fôlego nas seis rodadas finais, acumulando empates e vencendo só uma partida. Terminaria em terceiro, a apenas dois pontos do time dirigido por João Saldanha (que tinha Garrincha, Didi e Nilton Santos), e ainda veria Dida perder a liderança da artilharia na última rodada graças aos absurdos cinco gols do botafoguense Paulinho Valentim nos 6 a 2 sobre os tricolores.

Em 1958, a briga foi ainda mais acirrada: mesmo vendendo Zagallo antes do início do certame e Joel na virada do turno, o Fla terminou as 22 rodadas regulares com os mesmos 32 pontos de Botafogo e Vasco. Se o regulamento previsse algum critério de desempate como o saldo de gols ou o “goal average” (divisão dos tentos marcados e sofridos, bastante utilizada na época), o caneco seguiria para a Gávea, já que os rubro-negros tinham o melhor ataque e a melhor defesa. Mas não havia nada a respeito, e a decisão virou um triangular.

Acontece que, graças a vitórias alternadas (o Vasco venceu o Fla, que derrotou o Bota, que bateu o Vasco), esse triangular também terminou empatado, tornando necessário outro triangular, um “supersupercampeonato”, já adentrando pelo ano de 1959. E nele, após o Vasco ter logo de saída sua revanche contra o Botafogo, o Flamengo apenas empatou com o time de General Severiano, resultado que o obrigava a superar os cruzmaltinos no último jogo. Mas o rival segurou o empate dramático em 1 a 1 e endereçou o caneco para São Januário.

Pelos três próximos anos, o Fla esteve longe de brilhar (exceto por uma goleada de 6 a 2 imposta ao Botafogo no returno de 1959) e de brigar pelo título, ainda que levantasse outros canecos de peso como o Torneio Hexagonal de Lima em 1959, o Octogonal de Verão e o Torneio Rio-São Paulo em 1961. Fleitas Solich, que havia deixado o clube para comandar o Real Madrid em meados de 1959 e voltado no ano seguinte, revelava nova fornada de talentos (Carlinhos, Gerson, Germano), mas não conseguiria levar o clube a vencer de novo o Carioca.

Flávio Costa: o retorno da linha dura, nove anos depois.

Solich acabaria demitido por telegrama em 10 de janeiro de 1962, bem no meio da excursão à Costa Rica, após sua relação com o novo presidente rubro-negro Fadel Fadel (no cargo há pouco mais de sete meses) azedar completamente – sem que o mandatário, porém, explicasse o motivo. De pronto, o novo treinador foi anunciado: era outro veterano, Flávio Costa, 55 anos, comandante do primeiro tri, em 1942/43/44, que retornava à Gávea cerca de nove anos após sua última saída para aquela que seria sua derradeira passagem.

Nome incontestável nos anos 1940, Flávio naquela altura já dividia opiniões. Os dirigentes rubro-negros tinham o treinador em alta conta, mesmo que por duas vezes ele tivesse deixado o clube para trabalhar no Vasco, em 1947 e 1953. Por outro lado, desde a derrota com o Brasil na Copa de 1950 sua reputação murchara perante setores da imprensa esportiva. Ao voltar à Seleção, em 1956, não faltou quem o tachasse de obsoleto. Otelo Caçador, chargista de O Globo, caricaturizava Flávio como um homem das cavernas, de tacape na mão.

A impressão vinha muito de seu trato com jogadores. “Eu era muito duro”, admitiria anos depois. Ferrenho disciplinador, intransigente em suas determinações, por vezes chegava às vias de fato: chegou a levantar o atacante rubro-negro Adãozinho pelo colarinho em 1952. Mais rumorosos foram os tapas que deu no meia vascaíno Ipojucan nos vestiários do Maracanã no intervalo da decisão do Carioca de 1950 com o America. Abalado psicologicamente por uma chance perdida, o meia não queria voltar a campo. Flávio o “convenceu”.

A linha dura de Flávio era tida como a ideal pelos dirigentes diante do momento turbulento vivido pelo clube: em 29 de março de 1961, o então presidente George Fernandes renunciou ao cargo e foi substituído interinamente por Oswaldo Aranha Filho. No curto mandato-tampão deste, que durou menos de dois meses, o departamento de futebol profissional rubro-negro se tornou autônomo, isto é, gerido com os próprios recursos – que não eram muitos: o Fla enfrentava crise financeira quando Fadel Fadel assumiu a presidência em maio.

O comentário recorrente era de que o Fla pagava pouco a seus profissionais em salários e premiações, ainda mais em comparação com rivais como o Botafogo. A ponto de, no fim de 1961, os jogadores se recusarem a receber o bicho da vitória sobre o São Cristóvão pela última rodada do Carioca, em protesto liderado pelo capitão Jadir. O valor de Cr$ 1.500 estipulado pelos cartolas era considerado irrisório pelos atletas, que tinham o apoio de Fleitas Solich na causa. O que foi, aliás, um dos motivos para a demissão do “Feiticeiro”.

Com Flávio Costa, a temporada 1962 trouxe resultados razoáveis. No Torneio Rio-São Paulo, no início do ano, o Flamengo chegou ao quadrangular final, mas não foi além disso, ficando em quarto. Logo em seguida o promissor ponta Germano foi vendido ao Milan, e a equipe embarcou numa longa excursão internacional que tomou os meses de abril, maio e junho. Além de registrar uma vitória de 2 a 0 sobre o Barcelona no Camp Nou (dois gols de Dida), a turnê levou o Fla pela primeira vez à África, jogando na Tunísia e em Gana.

A excursão também marcou as últimas partidas de Jadir com a camisa rubro-negra: o zagueiro foi negociado com o Cruzeiro e quase imediatamente repassado ao Botafogo, que apostava no que se considerava uma superstição: para ser campeão, o clube deveria contratar um ex-rubro-negro. E de fato levaria o título: no confronto direto da última rodada o Flamengo, com um ponto a mais na tabela, tinha a vantagem do empate. Mas, com Jadir na zaga e Garrincha imparável, os alvinegros venceram por 3 a 0 e ficaram com o caneco.

Gerson: pivô da primeira crise e, mais tarde, da maior delas.

Apesar da frustração com mais um ano de fila, havia a sensação de que o time do Flamengo havia feito uma campanha acima do esperado. No entanto, surgiam os primeiros atritos entre os atletas e Flávio Costa. O maior deles, até então, veio com a polêmica escalação do armador Gerson como falso ponta-esquerda na decisão contra o Botafogo para ajudar o lateral Jordan na tarefa ingrata de tomar conta de Garrincha – uma função talvez mais adequada para outro meia daquele time, Nelsinho, jogador de mais fôlego e mais combativo.

1963, MAIS UM ANO TURBULENTO

As críticas a Flávio na imprensa se intensificariam logo no início do ano seguinte, no fim de janeiro, quando o veterano treinador, à frente do escrete carioca, perdeu a decisão do Campeonato Brasileiro de Seleções – naquela que seria sua última edição até um breve retorno em 1987 – de modo surpreendente para os mineiros, que venceram os dois jogos das finais, no Independência (1 a 0) e no Maracanã (2 a 1). Na seleção das Alterosas, aliás, destacou-se um jogador que logo se transferiria para a Gávea: o goleiro Marcial, do Atlético.

O que também proliferou desde o início daquela temporada foram as “crises disciplinares”. Atritos entre jogadores e Flávio Costa, entre jogadores e dirigentes ou até atos impulsivos dos atletas. Os primeiros casos envolveram o veterano ponta Joel (que no meio do ano seria cedido ao Vitória da Bahia) e o zagueiro Luís Carlos (trazido pelo próprio técnico para o clube), que mais tarde teriam suas multas perdoadas. Os goleiros Ari Seixas e Mauro também se levantariam contra Flávio. O primeiro deixaria o clube, o segundo ficaria.

Mas os episódios mais rumorosos daquele começo de temporada aconteceram com jogadores tidos como líderes da equipe. Um deles foi o volante Carlinhos – que, décadas depois, ao fazer carreira como treinador, teria a reputação de homem calmo e pacato. Em meados de março, ele passou dias sem aparecer na Gávea, alegando uma gripe. Foi multado, teve seu contrato suspenso e, quando reapareceu, foi impedido de treinar pelos dirigentes com a anuência do técnico. No meio do ano ele voltaria a ser “enquadrado” pelo clube.

Outros casos envolveram os atacantes Dida e Henrique, dois dos nomes mais antigos do elenco. O primeiro, lesionado, deixou a delegação que embarcaria de um jogo em São Paulo para outro em Belo Horizonte e voltou ao Rio por conta própria. Também foi multado e teve seu contrato suspenso. Já o segundo se revoltou ao ser colocado como “dispensável” por Flávio Costa e criticou abertamente o treinador, sendo logo em seguida emprestado até o fim da temporada ao Nacional de Montevidéu – pelo qual faria o gol do título uruguaio.

Com o distanciamento do tempo, é difícil não ler no subtexto de atritos assim (que, diga-se, não eram exclusivos do Flamengo) um conflito geracional: tratava-se de um grupo de atletas em sua maioria na faixa dos 20 anos, que vivenciara a mudança de comportamento da juventude no fim dos anos 1950 e se mostrava refratário, talvez até inconscientemente, a receber ordens de cima para baixo e a ser tratado na ponta da baioneta por técnicos e dirigentes. Perfil bem distinto das turmas que Flávio se acostumara a comandar nos anos 1940.

Mas haveria mais: no meio do ano a equipe de novo empreendeu uma longa excursão à Europa. Se por um lado ajudavam a aliviar os cofres dos clubes, essas turnês traziam certo estresse entre os atletas, saudosos de casa após meses no exterior. Em Paris, no 40º dia de viagem, Dida bebeu um pouco além da conta e, durante o jantar, fez um desabafo que deixava aflorar sua insatisfação com o clube. Foi imediatamente mandado de volta ao Brasil pelo chefe da delegação, o diretor de relações externas Marcus Vinícius de Carvalho.

Henrique e Dida: dois ídolos na mira de Flávio Costa.

O próprio Marcus Vinícius, aliás, já havia se envolvido em outro incidente no início da excursão, em Lodz, na Polônia. Durante um banquete oferecido pelos poloneses aos rubro-negros, o chefe da delegação não só ofendeu o diretor de futebol Gunnar Goransson quando este lhe transmitiu uma ordem do presidente Fadel Fadel, como tentou colocar os jogadores contra Goransson, que ficou profundamente desapontado. O caso foi relatado pelo jornalista Álvaro Queirós, que cobriu a viagem do Flamengo para o jornal Última Hora.

Enquanto isso, no Rio, o clube vinha sendo revirado também no sentido literal: a sede da Gávea passava por sua maior reformulação desde a inauguração em 1938. Entre as muitas obras, o campo de futebol seria ligeiramente deslocado em vista da desapropriação de uma faixa do terreno para a duplicação da rua Mário Ribeiro, entre o Flamengo e o Jóquei Clube. Com o gramado totalmente removido, o time e a comissão técnica precisaram sair em busca de outros campos (inclusive o de São Januário) para realizar simples treinamentos.

Outro obstáculo era a falta de uma concentração própria, depois de o Clube Militar, dono do casarão da Estrada da Gávea onde o elenco se instalava, ter vendido o imóvel no ano anterior. Em julho de 1963, o Flamengo comprou outro casarão em São Conrado, na Rua Jaime Silvado, que serviria ao clube até o fim dos anos 1990. A nova concentração, no entanto, só seria inaugurada em março do ano seguinte. Até lá – o que compreendeu toda a campanha do Campeonato Carioca – a delegação rubro-negra foi acomodada em hotel nas Paineiras.

O ELENCO

Naquela temporada de 1963 também ficou ainda mais evidente que uma das motivações para o presidente Fadel Fadel ter recorrido novamente a Flávio Costa era a de delegar ao treinador a missão de promover uma profunda reformulação no elenco, afastando veteranos consagrados no clube e substituindo-os por jovens ou atletas sem tanto nome, dispostos a suarem a camisa. Ao longo do ano, o plantel rubro-negro foi progressivamente perdendo a cara de Fleitas Solich e ganhando a de Flávio Costa entre reforços e dispensas.

O primeiro a chegar, porém, seria um grande fracasso: trazido ainda no fim de dezembro de 1962, o atacante Foguete, da Portuguesa carioca, não se firmaria em sua passagem pela Gávea. Também vindos de um pequeno clube da cidade, o Olaria, o lateral-direito Murilo e o meia Nélson seriam mais aproveitados – especialmente o primeiro, que permaneceria intocável na posição pelo resto da década. Os dois foram contratados no início de janeiro, mas, como o clube bariri disputaria o Torneio Rio-São Paulo, só se apresentaram em março.

Também em março outros dois reforços desembarcaram na Gávea: revelado pelo Madureira, o ponta-esquerda Osvaldo veio do Santos por empréstimo. No Flamengo, reencontraria Nelsinho, seu antigo colega no Tricolor Suburbano. Outro a aportar foi o goleiro mineiro Marcial, trazido do Atlético após se destacar tanto na seleção de seu estado quanto na brasileira, pela qual atuou no Campeonato Sul-Americano na Bolívia. No Fla, em princípio, chegava para disputar a posição com Mauro, ex-Canto do Rio, no clube desde 1959.

No mês seguinte, com menos alarde, chegaria ao Flamengo o garoto Paulinho, ou Paulo Alves, logo apelidado “Paulo Chôco”. Jogador versátil que poderia atuar em várias posições do meio ou do ataque, foi comprado do Anápolis, de Goiás. E fechando o pacote de contratações do primeiro semestre, o clube tirou do Bangu o bom zagueiro Ananias, que fazia dupla de respeito com Zózimo na zaga alvirrubra. Tão vigoroso quanto seu novo companheiro de defesa, o gaúcho Luís Carlos, era, no entanto, um pouco mais técnico na saída de jogo.

Outros nomes que completariam essa renovação viriam do viveiro de talentos da Gávea. E quem se candidatava a ser o principal nome desta safra era o atacante Aírton “Beleza”, considerado o sucessor natural de Henrique – a ponto de justificar, no entendimento de Flávio Costa, a dispensa do antigo artilheiro. Ainda amador no início da temporada, Aírton explodiu vestindo a camisa da Seleção Brasileira que conquistou a medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos disputados em São Paulo entre os dias 20 de abril e 4 de maio de 1963.

Aírton “Beleza”: promessa de novo goleador.

O time que incluía ainda o lateral-direito Carlos Alberto Torres (Fluminense), o meia Nenê (Santos, que faria carreira no futebol italiano) e o ponta-direita Jairzinho (Botafogo) bateu Uruguai (3 a 1), Estados Unidos (absurdos 10 a 0) e Chile (3 a 0), empatando na última rodada com a Argentina (2 a 2). Aírton fez gols nos quatro jogos, 11 ao todo, incluindo SETE sobre os estadunidenses, recorde da história da Seleção em todas as categorias – emulando o feito de outro rubro-negro, Evaristo, que marcara cinco pelo escrete principal em 1957.

Quem já não era tão iniciante, mas se candidatava à afirmação no campeonato era o ponta-direita Espanhol, nascido José Armando Ufarte na região ibérica da Galícia (daí o apelido). Extrema veloz e driblador, havia sido lançado no time de cima por Fleitas Solich em 1961, antes de passar ao Corinthians emprestado por cerca de um ano para ganhar experiência. Ao voltar, no meio do campeonato de 1962, ganhou a posição e forçou o deslocamento do veterano Joel para o lado esquerdo do ataque. Agora já era uma das armas do setor.

Por fim, entre os nomes com mais tempo de Gávea, dois remanescentes da última campanha vitoriosa, a do tri em 1955: o lateral-esquerdo Jordan, já na casa dos 30 anos, e o atacante Dida. Das safras subsequentes de talentos lançadas por Fleitas Solich, ainda restavam o lateral-direito Joubert, o versátil defensor Vanderlei (ambos aos poucos perdendo espaço no time) e a dupla de meio-campo formada pelo volante Carlinhos e o armador Gerson, responsáveis pela criação da equipe, ainda que em constante atrito com Flávio Costa.

COMEÇA O CARIOCA

Em meio a essa reformulação, o Flamengo não era considerado um dos principais candidatos ao título carioca. O bicampeão Botafogo, agora dirigido pelo antigo craque Danilo Alvim, o “Príncipe”, seguia intocável como opção número um dos cronistas, apesar de ter perdido o talento e a juventude de Amarildo, negociado com o Milan no meio do ano, e de toda a incerteza acerca de um Garrincha que já começava a viver o declínio da carreira, às voltas com insolúveis problemas de joelho e desgostoso com o meio do futebol.

O campeonato daquele ano era o segundo de um triênio raro no qual o certame contou com 13 clubes participantes, quando coincidiram as presenças do Campo Grande – admitido em 1962 – e do Canto do Rio – que seria excluído ao fim da edição de 1964. Sendo assim, devido ao número ímpar, um clube “folgava” a cada rodada, de acordo com a classificação final no ano anterior: na rodada de abertura, quem descansava era o campeão Botafogo; na segunda. o Flamengo; na terceira, o Fluminense; na quarta, o Vasco, e assim por diante.

A campanha rubro-negra começou com seis vitórias consecutivas, incluindo uma no clássico mais aguardado do torneio até ali. Mas nem por isso imune a crises e oscilações. Se na estreia, diante do Canto do Rio no Caio Martins em 30 de junho, o time venceu bem por 2 a 0 (gols de Gerson) e pode até poupar energias no segundo tempo, no jogo seguinte contra a Portuguesa, em 13 de julho, a apatia demonstrada pela equipe e os repetidos erros quase colocaram em risco a vitória por 2 a 1, obtida com mais um gol de Gerson e um de Dida.

O auge da crise viria logo em seguida. E teria em Gerson seu pivô. O meia já vinha tendo atritos com Flávio Costa e o preparador físico Ethel Seixas desde após o jogo contra o Canto do Rio: criticado por ambos por falta de empenho, atribuía sua queda de ritmo a uma entorse sofrida no tornozelo ainda no primeiro tempo. Problema que, aliás, o tiraria do jogo contra a Portuguesa. Sua volta estava programada para a partida contra o Botafogo, mas outros incidentes levariam o Fla a viver sua semana mais atribulada na campanha.

Tudo começou quando Dida não se entendeu com o clube sobre sua renovação de contrato, e os dirigentes já consideravam negociá-lo. Sem o atacante, Flávio Costa pretendia lançar Gerson na ponta-de-lança, pisando mais na área. O meia, no entanto, afirmava a quem quisesse ouvir que não sabia jogar mais adiantado, fazendo a função que o técnico exigia. Embora Gerson de fato rendesse mais atuando mais recuado (como sua carreira viria a demonstrar), os dirigentes alegavam que o meia devia jogar onde Flávio mandasse.

O clímax da guerra de nervos viria no dia 17 de agosto. No coletivo em São Januário, depois de ser marcado de maneira implacável pelo zagueiro Mauro II, dos aspirantes, Gerson entrou numa dividida com o garoto, quebrando-lhe a perna. Enquanto o jogador lesionado era retirado, o meia deixava o treino chorando e mais tarde pediria para não ser escalado. Enquanto isso, à beira do campo, o presidente Fadel Fadel batia boca com um grupo de torcedores rubro-negros, que não se conformavam em ver o time escalado sem Dida e Gerson.

E foi mesmo sem Dida e Gerson, e com o posto ocupado pelo versátil Paulo Alves, que o Flamengo entrou em campo para enfrentar, no dia 21 de julho, um Botafogo desfalcado de Garrincha, mas com Manga, Nilton Santos, Quarentinha e Zagallo, além dos jovens Rildo, Jairzinho e Jair Bala – este, outro a deixar o Flamengo de forma controversa no começo do ano. O alvinegro, que vencera cinco dos últimos seis clássicos contra o Fla, também vinha de duas vitórias, mas sem convencer. E os rubro-negros não deixariam escapar a chance da forra.

Aos 20 minutos, o time de Flávio Costa abriria o placar numa jogada que começou com Murilo tomando a bola de Zagallo e entregando a Carlinhos, que abriu na ponta para Paulo Alves. Este superou Paulistinha e cruzou para trás, para Aírton tocar às redes. O Botafogo ainda empatou aos 25, com Quarentinha completando de carrinho um centro de Zagallo. Mas o Flamengo controlava o jogo no meio-campo e ditava o ritmo das ações, além de demonstrar disposição nas divididas. E não tardaria a ficar novamente à frente na contagem.

Aos 40, Aírton arrancou num contra-ataque e abriu na esquerda para Osvaldo, que cruzou alto. Diante da indecisão entre Manga e Nilton Santos, Paulo Alves aproveitou para se infiltrar na área e tocar de cabeça longe do alcance do goleiro: Fla 2 a 1. No segundo tempo, o calor fez baixar a intensidade do jogo. Mas o Fla ainda daria a estocada final aos 26: Aírton carregou a bola da ponta para dentro e arriscou um chute do bico da área. A bola saiu fraca, mas bateu na cal da pequena área e encobriu Manga inapelavelmente. Era o 3 a 1.

A grande vitória sobre o Botafogo na manchete da Última Hora.

Depois foi a catarse. No início do ano, no duelo pelo Torneio Rio-São Paulo, os alvinegros haviam vencido por 2 a 1 e passaram os minutos finais gastando tempo tocando a bola sob gritos de “olé” de sua torcida. Ao fim daquele jogo, o presidente Fadel Fadel declarara que “há de chegar o dia do olé do Flamengo”. Ele viria logo no confronto seguinte e irritaria os botafoguenses a ponto de Paulistinha perder a cabeça, agredir Aírton com um pontapé e ser expulso – Quarentinha faria o mesmo em Osvaldo logo em seguida, mas ficaria em campo.

Após a tempestade, como no ditado, veio a bonança. Os dois jogos seguintes, contra o Campo Grande no Maracanã e o Madureira em Conselheiro Galvão, foram vencidos pelo Fla por goleadas de 5 a 0. No primeiro um show de Aírton, que anotou três e ainda perdeu um pênalti. Nelsinho fez os outros dois. No segundo o time desmontou logo cedo a retranca do Tricolor Suburbano – antes do intervalo já vencia por 4 a 0 – e atropelou com dois gols de Dida (enfim de contrato renovado), dois do artilheiro Aírton e um de Espanhol.

Contra o Bonsucesso em São Januário, no dia 11 de agosto, o time voltou a jogar só para o gasto e venceu por 1 a 0, gol de Aírton perto do fim da primeira etapa. Mas mantinha-se na liderança com 100% de aproveitamento ao lado do Bangu e seguia confiante para mais um clássico, diante do America no fim de semana seguinte. Nesse embalo, Flávio Costa nem cogitava alterar a equipe e mandou a campo a mesma escalação dos dois jogos anteriores, com Carlinhos e Nelsinho pelo meio-campo, Dida na ponta-de-lança e Gerson de fora.

Foi, porém, um jogo em que nada deu certo. O time foi surpreendentemente derrotado por 3 a 1, marcando seu gol só no fim com Nelsinho, após os rubros dispararem três gols de vantagem. E dois personagens se destacaram negativamente naquela tarde infeliz de 18 de agosto: um deles foi o goleiro Mauro, que levou um frangaço no segundo gol americano, deixando passar por baixo de seu corpo um chute despretensioso da intermediária do atacante Carlinhos, além de falhar também no terceiro, ao dar rebote num chute fraco.

Outro vilão foi o trio de arbitragem, em especial o bandeirinha Erich Schwarz, que marcou impedimentos absurdos e foi o pivô da expulsão do ponta Espanhol aos 43 minutos do primeiro tempo, antes de um escanteio para o Fla, num gesto de preciosismo sobre a posição da bola para a cobrança, o que também só aumentava as suspeitas de desconhecimento das regras. Como se não bastasse, Dida também seria expulso no fim do jogo, após o gol rubro-negro, juntamente com o lateral Itamar, após ter sido agredido pelo defensor rubro.

A arbitragem voltaria a estar na berlinda no jogo seguinte, outro clássico, agora diante do Vasco. Ligeiramente melhor em campo num duelo equilibrado e um tanto pobre, o Fla balançou as redes com Espanhol após excelente jogada envolvendo Gerson – que voltava ao time no lugar de Dida – e Aírton, que fez o passe para o ponta. Mas o árbitro Aírton Vieira de Morais, o “Sansão”, anulou o gol alegando primeiro um impedimento inexistente e depois uma falta de Gerson no goleiro Ita, que após o jogo declarou não ter entendido a anulação.

Contra o Vasco, o Fla de branco teve gol (mal) anulado de Espanhol.

O lance motivou o presidente Fadel Fadel a abrir o verbo contra a Federação Carioca, retirando seu voto de confiança ao Departamento de Árbitros e denunciando a existência de uma suposta “quadrilha do apito” organizada contra o Fla, da qual Sansão faria parte. No jogo seguinte, contra o Bangu, no entanto, não houve o que reclamar a não ser dos próprios erros: o time voltou a ser batido, dessa vez por 2 a 1 (Roberto Pinto, de pênalti, e Mateus para os banguenses e Dida para o Fla), e desabou para a quinta colocação na tabela.

“O Flamengo é um time de futebol quadrado, sem nenhuma inspiração ou versatilidade”, criticou a crônica do Jornal do Brasil, que ainda comparou: “O ataque do Flamengo é um exército medieval – quer arrombar as portas do castelo a golpes de machado”. O próprio Flávio Costa reforçaria as críticas ao estilo de jogo do time, considerando que alguns jogadores vinham prendendo demais a bola e atuando sem objetividade, o que o treinador chamava de “jogo miudinho, bonitinho, mas improdutivo”. Mudanças estavam a caminho.

No fim de semana seguinte, o Fla não jogou pelo campeonato: seu jogo com o São Cristóvão foi adiado para a quarta-feira, 11 de setembro, e o time embarcou para Fortaleza, onde faria amistoso contra o Ferroviário. Quatro jogadores, lesionados, ficaram no Rio: o goleiro Mauro (que chegara a ser substituído contra o Bangu), Gerson, Luís Carlos e Jordan. Este último recebeu ainda um recado de Flávio: estava barrado “por já ter cumprido sua missão como profissional”. Na visão do treinador, o veterano “já dera o que tinha que dar”.

O novo dono da camisa 6 era um garoto dos aspirantes conhecido como Paulo Bode, que passaria a ser chamado pelo nome: Paulo Henrique. Aos 20 anos de idade, dez a menos que Jordan, havia destronado do posto aquele que era, até ali, o atleta que mais vezes havia vestido a camisa rubro-negra na história do clube, mas que, sem saber, fizera contra o Bangu sua derradeira exibição com o Manto. O gol também ganhava um novo titular: o mineiro Marcial, que substituíra o lesionado Mauro no decorrer da partida contra os alvirrubros.

Outras mudanças para o jogo contra o São Cristóvão foram a entrada de Joubert na zaga, no lugar do lesionado Luís Carlos, e de Nélson no meio-campo no posto de Carlinhos, um dos principais alvos de críticas de Flávio. Disputado em General Severiano, o jogo terminou em vitória suada do Flamengo por 2 a 1: Osvaldo abriu o placar no primeiro tempo, Artoff empatou no meio da etapa final e Espanhol fez o gol da vitória a quatro minutos do fim, pegando a sobra de uma finalização de Nelsinho. Apesar do drama, o time voltava a vencer.

Mas o clube ainda viveria uma última turbulência antes da virada do turno. Dois dias após o jogo contra o São Cristóvão era anunciada a bomba: o Botafogo, por meio de seu diretor de futebol Otávio Pinto Guimarães (futuro presidente da Federação Carioca e da CBF) oferecia ao Flamengo um cheque já assinado no valor de Cr$ 150 milhões por Gerson. Fadel Fadel balançou, mas optou por esperar até o dia seguinte para tomar uma decisão junto com os demais dirigentes, já que o Santos também tinha interesse na compra do meia.

Enquanto Fadel ponderava sobre a questão e recebia até ameaças de morte caso negociasse o jogador, Gerson era levado pelo dirigente alvinegro Renato Estelita e pelo jornalista botafoguense Sandro Moreyra até a concentração do Botafogo na Avenida Niemeyer, em São Conrado, para ser apresentado ao elenco e até posar para fotos com a camisa do clube (e aqui cabe um parêntese: é de se imaginar o escândalo que seria feito hoje se algum jornalista rubro-negro notório agisse da mesma maneira com qualquer astro de clube rival).

Além dessa negociação tensa e de certa forma viciada, ante toda a pressão pela saída do jogador, o Flamengo ainda anunciava que rescindiria o contrato de Carlinhos e colocaria o meia à venda. Enquanto, na mesma nota, Jordan se declarava magoado com as declarações de Flávio Costa. O veterano lateral, que havia renovado contrato há poucos meses, dizia ter futebol para mais três ou quatro anos e que, quando enfim pendurasse as chuteiras, gostaria de receber algum tipo de reconhecimento pelos serviços prestados – o que não teria.

No meio desse turbilhão, o Flamengo jogaria contra o Olaria – ironicamente em General Severiano – e venceria por 2 a 0 pela penúltima rodada do turno. Os gols saíram ainda no primeiro tempo: um de falta do ex-olariense Nélson e outro de Aírton aproveitando falha do goleiro Ari. Agora, as atenções se voltariam para o Fla-Flu que fecharia o turno. Embalados por terem, naquela mesma rodada, derrubado o último invicto do campeonato, o Bangu, os tricolores eram dirigidos por um nome bem conhecido dos rubro-negros: Fleitas Solich.

Com predomínio das defesas sobre os ataques, principalmente depois que Aírton sofreu lesão no tornozelo logo aos cinco minutos e teve que passar o resto do jogo fazendo número em campo, o clássico terminou 0 a 0, diante de 67 mil torcedores. Assim, quem se destacou foi Marcial, o melhor em campo, exibindo suas credenciais e antecipando o que faria na decisão. “Foi um goleiro soberbo, admirável, com impressionante senso de colocação e segurança. Sozinho, valeu pelo espetáculo que o consagrou”, aclamou o Jornal dos Sports.

O resultado fez com que o Fla terminasse a primeira metade do campeonato em quarto, com 18 pontos, dois a menos que os líderes Bangu e Botafogo e a um do Fluminense (o America vinha em quinto e o Vasco, bem longe, em sexto). Na virada do turno o time faria outro amistoso, batendo o Atlético Paranense por 1 a 0 no Maracanã em jogo com renda destinada ao estado do Paraná, que sofrera com incêndios florestais durante o mês de setembro. O pontapé inicial foi dado pelo bispo Dom Hélder Câmara, notório torcedor do Flamengo.

O SEGUNDO TURNO

Com a venda de Gerson selada na noite de 16 de setembro, o Fla tratou de se reforçar para o returno. Na véspera do amistoso com o Atlético era anunciada a compra de outro ponta-esquerda chamado Osvaldo, este oriundo do Guarani e que defendera uma Seleção Brasileira com cara de “time B” que disputara o Campeonato Sul-Americano na Bolívia no início do ano. Curiosamente, sua família continuou residindo em São Paulo, o que o fazia se deslocar do Rio toda semana, recebendo logo o apelido de Osvaldo “Ponte Aérea”.

Outro reforço também veio do futebol paulista e chegou ao Rio no mesmo voo do “Ponte Aérea”: era o atacante pernambucano Geraldo, que estava em litígio com o Palmeiras e foi contratado por empréstimo até o fim do ano. Eram reforços para suprir as lacunas ofensivas deixadas por uma onda de lesões no elenco – eram baixas temporárias, entre outros, Aírton, Dida e o outro Osvaldo, o Monteiro. Os dois recém-contratados estrearam já na abertura do returno, na dramática vitória de 3 a 2 sobre o lanterna Canto do Rio em São Januário.

Geraldo (à esquerda), com Carlinhos e Murilo: novidade para o returno.

E foi Geraldo quem abriu a contagem para o Flamengo logo aos 16 minutos, antes do meia Fefeu (que viria para a Gávea no ano seguinte) igualar o placar. Os outros três gols saíram da marca da cal: Nélson recolocou os rubro-negros na frente cobrando pênalti, antes de Fefeu empatar de novo do mesmo jeito ainda na etapa inicial. O gol da vitória só sairia aos 44 minutos do segundo tempo, de novo com Nélson de pênalti. O meia também seria o autor, cobrando penalidade, do tento da vitória de 1 a 0 sobre a Portuguesa na partida seguinte.

Na quarta rodada (lembrando que o Fla folgava na segunda), o clássico diante do Botafogo teve como atração do lado alvinegro o retorno de Garrincha. Mané, no entanto, foi bem marcado pelo garoto Paulo Henrique. E, como no Fla-Flu, o 0 a 0 realçou as atuações dos goleiros Marcial e Manga. O Fla, porém, foi prejudicado pelo árbitro Cláudio Magalhães, que, assim como os auxiliares, não viu uma agressão de Quarentinha em Ananias fora do lance, mas expulsou o beque rubro-negro mais tarde por uma falta normal no atacante alvinegro.

Naquela altura do campeonato, o Bangu parecia nadar de braçadas rumo ao seu segundo título carioca. Esmagara o Madureira por 7 a 0 na mesma rodada em que seus maiores perseguidores Fla, Flu e Bota não passaram do empate. E, embora com um jogo a mais, livrava quatro pontos de vantagem sobre tricolores e alvinegros e cinco para os rubro-negros. Na rodada seguinte, porém, os alvirrubros folgariam e os demais teriam a chance de diminuir a desvantagem. Como era o caso do Flamengo, que pegaria o Campo Grande no Maracanã.

Na goleada rubro-negra por 4 a 1, quem brilhou foi Aírton, autor de um golaço, o terceiro do Fla: foi carregando a bola com a cabeça por vários metros, livrou-se da marcação e, ao entrar na área, deixou cair até pegar de primeira, enchendo o pé para estufar as redes. Nélson de pênalti, Osvaldo “Ponte Aérea” de falta e outra vez Aírton marcaram os demais tentos. O Campusca ainda teve o goleiro Alberto expulso por tentar agredir o juiz e viu o veterano zagueiro Décio Esteves ir parar no gol – e ainda pegar um pênalti batido por Osvaldo.

Quando o time parecia trilhar o caminho certo, veio outro balde de água fria que precipitou nova crise: o decepcionante empate em 0 a 0 com o Madureira em São Januário, quando a equipe exibiu um futebol tímido, inoperante, quase sem chutar a gol diante de um adversário que procurou apenas se defender. Para piorar, aos 16 minutos da etapa final Dida se desentendeu com o zagueiro Alfredo e ambos foram expulsos. A crônica do Jornal dos Sports indicava que aquele empate poderia representar o fim das esperanças de título.

Assim como acontecera com Jordan, outro fim de uma longa e marcante trajetória em vermelho e preto se encerraria, infelizmente de maneira negativa: aquele triste empate com o Madureira seria a última partida de Dida pelo Flamengo. Mesmo absolvido pelo TJD quanto à sua expulsão, o atacante e ídolo da torcida seria, em última análise, responsabilizado pela pouca efetividade do ataque rubro-negro e perderia o lugar no time, naquela que seria sua última temporada na Gávea. Um adeus imprevisto, sem as honras que merecia.

O Flamengo seguiu adiante: Geraldo, o substituto de Dida na ponta-de-lança, marcou o único gol da vitória de 1 a 0 sobre o Bonsucesso em Teixeira de Castro, resultado fundamental para manter vivo o sonho do título. Já o outro reforço do returno, Osvaldo “Ponte Aérea”, tratou de liquidar o America no jogo seguinte, marcando de pênalti os dois gols do triunfo por 2 a 0 no Maracanã que deu o troco da derrota no turno. Até chegar a partida que seria o grande ponto de virada rubro-negra na campanha: o clássico contra o Vasco.

O jogo foi numa sexta-feira, feriado de 15 de novembro, aniversário do Flamengo. Na véspera, o Maracanã havia sido palco da vitória de virada do Santos sobre o Milan por 4 a 2 no jogo de volta do Mundial Interclubes. Mas o Clássico dos Milhões não deveria nada em termos de emoção. O Fla foi para o intervalo perdendo por 2 a 0, gols de Célio e Mário “Tilico” – este, com impedimento claro não marcado no início da jogada. Mas um gol relâmpago de Aírton no primeiro minuto do segundo tempo recolocou os rubro-negros no jogo.

O time chegou ao empate aos 12 minutos, de novo com Aírton, que recebeu de Geraldo e tocou no canto do goleiro Marcelo. Mas o Vasco passou de novo à frente aos 15, novamente com Mário. Aos 19, o árbitro Amílcar Ferreira ignorou um pênalti clamoroso de Brito em Geraldo. Mas um minuto depois compensou ao apontar a marca da cal por um toque de mão involuntário do beque vascaíno. Osvaldo cobrou e tornou a empatar o jogo. Logo depois, o Fla teria um gol de Espanhol mal anulado e Mário seria expulso por atingir Marcial.

A virada épica demoraria mais um pouco, mas acabaria chegando, visto que o Fla já dominava as ações em campo. Aos 30 minutos, o golaço: Aírton recebeu de Espanhol (um dos melhores em campo), levantou a bola com um toque de calcanhar e, ao girar, emendou um voleio de primeira que encobriu o goleiro Marcelo. O Maracanã entrou em delírio. Os 4 a 3 enterravam de vez as parcas chances matemáticas do rival e deixavam os rubro-negros vivos, vivíssimos na briga pelo título. Afinal, era uma vitória para embalar de vez.

Aírton comemora seu gol da virada contra o Vasco.

Na semana seguinte, o duelo crucial contra o líder Bangu, que vinha de vencer o Botafogo, alijando os alvinegros da disputa, e se colocava três pontos à frente da dupla Fla-Flu. Um público pagante de mais de 96 mil torcedores viu na etapa inicial um Flamengo com mais volume de jogo (com destaque para Espanhol, infernizando a defesa banguense pela ponta direita), mas os alvirrubros tendo chances mais claras em contra-ataques. Mesmo nesse ritmo intenso, o primeiro tempo terminou com placar em branco: gols, só após o intervalo.

O primeiro sairia aos 16, com Osvaldo recebendo centro da esquerda e tendo tempo de ajeitar e bater para abrir a contagem. Aos 34, Nilton tentou atrasar de cabeça para o goleiro Ubarajara e acabou fazendo um passe para Espanhol, que rapidamente entrou na área e encheu o pé para ampliar. Mas mal houve tempo de comemorar: dois minutos depois Bianchini descontou para o Bangu. A tensão durou até os 43, quando Osvaldo cobrou falta de Zózimo que ele mesmo sofreu, e Ubirajara aceitou o chute de longe. Placar final: Flamengo 3 a 1.

A vitória deixou o Fla a só um ponto do Bangu, que começaria ali a derreter: em pontos ganhos, o time dirigido por Tim havia liderado o campeonato praticamente todo, exceto na quarta rodada do turno. Porém, com os rubro-negros no encalço, os alvirrubros cederam à pressão. No sábado seguinte, o Flamengo bateu o São Cristóvão por 2 a 1, gols de Espanhol e Aírton, e, com o empate do Bangu com o America (2 a 2) no domingo, alcançou o adversário na ponta. E já sinalizava a ultrapassagem, que aconteceria na próxima semana.

A RETA FINAL

Tarde de 8 de dezembro, penúltima rodada: no alçapão da Rua Bariri, o Flamengo bateu o Olaria por 2 a 1, num jogo que permaneceu sem gols até os 34 minutos da etapa final, quando Carlinhos abriu a contagem. Nelsinho ampliou e, nos acréscimos, o time da casa descontou. Enquanto isso, no Maracanã, o Fluminense de Fleitas Solich acabava de vez com as chances do ex-líder Bangu vencendo por 3 a 1 e se credenciava, numa grande reviravolta, a decidir o título com os rubro-negros no confronto direto de dali a sete dias.

Um ponto à frente, o Flamengo jogava pelo empate e se via agora na posição inversa em relação à que ocupava em 1941, quando do célebre Fla-Flu da Lagoa. O astrólogo Felício Batista de Sousa, que previra a morte recente do presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, vaticinava a vitória do Flu. Militares de Exército, Marinha e Aeronáutica entrevistados pelo Jornal dos Sports também fechavam, em maioria, com o Tricolor. O Fla, em seu canto, permanecia com o estoicismo de quem sofrera até com fogo amigo durante a campanha.

O time que entrou em campo era rigorosamente o mesmo das últimas seis partidas. O mineiro Marcial se firmara no gol, à frente da vigorosa dupla de zaga formada por Luís Carlos e Ananias. Nas laterais, o ofensivo Murilo na direita e o valente e dinâmico Paulo Henrique na esquerda. No meio, o talento e a classe de Carlinhos se combinavam ao fôlego e à combatividade de Nelsinho. Na frente, Espanhol entortava pela ponta direita, Aírton lutava na área auxiliado por Geraldo e Osvaldo “Ponte Aérea” fazia o vai e vem pela esquerda.

A massa humana nas arquibancadas: arriscando a vida pelo Fla-Flu.

Para receber este time e o do Fluminense num domingo de sol típico de dezembro no Rio, um Maracanã tomado por uma multidão que nunca se vira igual: 177.020 pagantes, mais de 200 mil presentes. Eram números que superavam até os maiores públicos da Seleção Brasileira no estádio até ali, incluindo a decisão da Copa do Mundo de 1950. Nas arquibancadas, torcedores eram passados por sobre as cabeças dos outros até se colocarem num espaço mínimo que fosse onde pudessem ficar de pé. Mas não houve incidentes graves.

O Flu também tinha seus trunfos: a experiência de Castilho no gol, de Altair na lateral-esquerda e Escurinho na ponta-esquerda, a força de Procópio na zaga, a juventude de Carlos Alberto Torres na lateral-direita, o dinamismo de Oldair no meio-campo, o faro de gol de Manuel, vice-artilheiro do certame, no ataque. E tinha Don Fleitas Solich mandando o time à frente pela necessidade de vencer. Chegou a acertar a trave com Escurinho no início da etapa final. Mas o Fla, obstinado, se segurava e ameaçava nas arrancadas de Espanhol.

No segundo tempo, a torcida rubro-negra reclamou de três possíveis penalidades: um empurrão de Procópio em Geraldo, um carrinho de Carlos Alberto Torres no mesmo jogador e um bloqueio com as duas mãos feito por um defensor tricolor. O drama só aumentava: o desgaste físico cobrou seu preço a Murilo, Paulo Henrique e Osvaldo, que disputaram boa parte da etapa capengando. No fim, aos 43, o último susto: Evaldo se chocou com Marcial e a bola sobrou para Escurinho, com o goleiro rubro-negro caído e o gol aberto.

O ponteiro tricolor poderia encher o pé, mas ao ver o goleiro rubro-negro se levantar preferiu o toque sutil, ainda que com alguma força, tentando encobrir Marcial. O jovem guardião de 22 anos, no entanto, conseguiu se por de pé e, quando a torcida do Fluminense já gritava o gol certo, deu dois passos para trás e esticou os braços, agarrando a bola com uma calma desconcertante. Em seguida, virou-se para a massa rubro-negra exibindo-a em suas mãos como um troféu. Sabia que aquela era a defesa do jogo e o título estava próximo.

Campeões… e o jogo termina com a bola nas mãos do herói Marcial.

Ao apito final de Cláudio Magalhães, o êxtase tomou conta do então Maior do Mundo. Jogadores choravam, se abraçavam, davam a volta olímpica vestindo a faixa de campeão. O campeonato que tinha o Botafogo como favorito antes do início e o Bangu como time a ser batido durante quase todo o seu transcorrer, acabava em Fla-Flu e em título rubro-negro, após conviver com o ceticismo geral desde o pontapé inicial. A campanha era de uma regularidade cristalina: em 24 jogos, eram 17 vitórias, cinco empates e apenas duas derrotas.

Flávio Costa não chorou, mas sentiu a emoção e o alívio do dever cumprido. Vencera inúmeras quedas de braço – com jogadores, dirigentes, jornalistas, até torcedores. E, a seu modo, moldara um novo Flamengo: no Fla-Flu decisivo eram apenas três (Carlinhos, Nelsinho e Espanhol) os remanescentes da derrota para o Botafogo em 1962. Isso tendo a seu lado alguns de seus antigos pupilos: os ex-jogadores Newton Canegal, Modesto Bria e Válter Miraglia integravam a comissão técnica e Agustín Valido era o diretor de Futebol.

E se aquele time não era um primor de futebol técnico e vistoso, havia crescido enormemente em competitividade na reta final. Tinha de volta, por aqueles dias, a velha flama rubro-negra. Tanto que até Mario Filho, com quem Flávio rompera antes da Copa de 1958 num episódio envolvendo a Seleção, prestou esse reconhecimento em sua crônica do título. Escreveu ele em sua tribuna no Jornal dos Sports: “O Flamengo é da tua glória é lutar. E só podia ser campeão desse jeito, flamengamente, todo alma, todo garra, todo Flamengo”.

A embandeirada torcida rubro-negra no Maracanã em 1963.