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Durou aproximadamente três anos o período em que Geraldo integrou o elenco principal do Flamengo e desfilou sua elegância no meio-campo rubro-negro. Não obstante, foram três anos intensos: seu talento com a bola nos pés, de quem jogava assoviando, deslumbrava tão facilmente quanto brotavam no clube e na imprensa as controvérsias em torno do jogador e seu jeito introvertido, porém assertivo. Mas a imagem que ficou após sua morte precoce em 26 de agosto de 1976, com apenas 22 anos de idade, é a de um craque interrompido em plena escalada até o auge ao lado do amigo Zico. Nesta terça-feira, dia em que o meia completaria 70 anos, resgatamos sua trajetória no futebol em detalhes.

O CRAQUE DA FAMÍLIA

Mineiro de Barão de Cocais, cidade a cerca de 100 quilômetros de Belo Horizonte, Geraldo foi o filho mais talentoso de uma família de jogadores. Seu pai, Oswaldo, havia sido um bom centromédio no Siderúrgica de Sabará e no Metalusina de Barão de Cocais. E seus irmãos Lincoln, Washington, Júlio César e Wilson também se tornaram profissionais. Lincoln, que foi zagueiro do Bangu, chamava atenção por seus dois metros de altura. E Washington, titular da zaga do Flamengo em 1970, foi quem levou Geraldo para a Gávea.

Nascido em 16 de abril de 1954, Geraldo Cleofas Dias Alves tinha apenas 16 anos quando chegou ao clube e 18 quando começou a causar sensação nos juvenis rubro-negros, formando dupla infernal com Zico, que estreara no time de cima em julho de 1971, mas acabaria devolvido aos juvenis no começo de 1972 pelo técnico Zagallo a fim de completar sua formação. Os dois seriam destaques no título carioca da categoria naquela temporada, no qual o Fla superou o Vasco (de Roberto Dinamite) na decisão em melhor de três jogos.

Um ano mais velho, Zico seria outra vez promovido – agora em definitivo – ao elenco profissional em 1973, mas Geraldo continuaria nos juvenis para aquela temporada, assumindo o posto de maior promessa rubro-negra da categoria. E faria jus a esse status, anotando o gol do título em outra decisão contra o Vasco, em Moça Bonita, ao enfileirar a defesa adversária e chutar forte para vencer o goleiro Mazarópi na vitória por 1 a 0 em 25 de agosto de 1973. Mas foi outro lance, digno dos Harlem Globetrotters do basquete, que marcou o meia.

“O Rui Rei dominou uma bola e partiu para cima do beque, o Marcelo, que estava caçando ele pelo campo todo. Eu vinha bem atrás: o Rui Rei deu de calcanhar e continuou correndo. O Marcelo custou a perceber que ele já tinha passado a bola: quando viu e tentou voltar, desequilibrado, dei um toquinho por baixo da perna dele e o deixei sentado em campo. Rapaz, o time do Vasco correu pra me matar. E eu, que não sou leão, corri para o vestiário. Foi uma das melhores partidas que já joguei na minha vida”, lembrou Geraldo à Placar.

Geraldo nos juniores em 1973, com Cantarele, Rondinelli e Vanderlei.

A estreia no profissional já havia vindo cerca de dois meses antes, num amistoso com o Goiás na Gávea no dia 24 de junho, vencido pelo Flamengo por 1 a 0. Na ocasião, com a ausência do técnico Zagallo, licenciado para comandar a Seleção numa excursão internacional, o Flamengo era dirigido interinamente pelo auxiliar Jouber, que já conhecia Geraldo da base e decidiu dar a ele a primeira chance, entrando na etapa final no lugar de Zé Mário. Com o título nos juvenis, o meia estava pronto para ser incorporado ao elenco principal.

Havia na Gávea a expectativa de que Geraldo despontasse no campeonato nacional, sobretudo diante das lesões que vinham tirando de campo Paulo Cézar Caju, um dos astros da companhia. Porém, essas esperanças logo pareceram frustradas quando o clube contratou o experiente meia Afonsinho, vindo do Olaria, para encorpar o elenco em vista da extenuante maratona que era a disputa do torneio. Mas ainda assim, aos poucos, o garoto mineiro teria a oportunidade de mostrar seu jogo, atuando em 15 partidas do Brasileirão.

Destas 15, Geraldo foi titular em apenas quatro. Mas em boa parte das 11 em que entrou durante a partida, o Flamengo nitidamente cresceu com ele em campo, como nas vitórias sobre o Vasco no Maracanã (2 a 0) e o Figueirense em Florianópolis (1 a 0). Contra o Vitória na Fonte Nova (0 a 0), sofreu pênalti claro não marcado. Em sua estreia como titular, na derrota para o Santos de Pelé no Maracanã (1 a 0), os jornais estranharam sua substituição. E no empate em 1 a 1 com o América-MG, também no Rio, saiu aclamado como o melhor do time.

Mesmo com a decepcionante campanha do Flamengo, que sequer conseguiu se colocar entre os 20 clubes que disputariam a fase seguinte, Geraldo não teve seu prestígio de revelação arranhado. E foi até citado por Nelson Rodrigues em crônica ao Jornal dos Sports do dia 12 de setembro. No texto, o dramaturgo saudava as novidades de seu Fluminense: os meias Cléber e Carlos Alberto Pintinho, que logo viraria amigo de Geraldo. Mas no fim vinha a menção: “Vai longe Geraldo. Isso no Flamengo. Precisamos acordar para os juvenis”.

O ÚLTIMO DOS MEIAS-ARMADORES CLÁSSICOS?

“Seu futebol é elegante e vistoso. A cabeça erguida, o notável toque de bola, a preferência pelo lançamento ou pelo passe curto ao invés do chute a gol, a boa altura de 1,78 metro e o peso ideal de 73 quilos”. Assim era descrito o estilo de jogo de Geraldo em texto da revista Placar de 31 de maio de 1974. Naquela temporada, com Zagallo passando a cuidar só da Seleção, Jouber assumiu o comando efetivo do time e Geraldo se tornou titular no lugar de Afonsinho, chamando ainda mais a atenção para seu futebol num revigorado Flamengo.

Como lembrava o comentário, Geraldo preferia o passe a chutar em gol e, de fato, anotaria poucos pelo Fla: apenas 13 ao todo em 169 partidas. Mas sua ascensão à titularidade seria coroada com uma belíssima cobrança de falta na goleada de 5 a 1 sobre o Corinthians de Rivelino num amistoso no Maracanã em 17 de fevereiro de 1974. A vitória era um prenúncio da ótima campanha que o renovado time rubro-negro faria no Brasileirão logo a seguir, no qual terminaria a primeira fase com a segunda melhor campanha geral entre 40 clubes.

As palavras de Placar evocavam um perfil de armador encontrado com frequência no Brasil nos anos 1940 e 1950. E que tinha em Didi, condutor da Seleção em três Copas, seu grande expoente. Num tempo em que os jogadores tinham estilos complementares, este armador era comumente escudado por um volante encarregado de suar a camisa nas tarefas defensivas, carregando o piano para que o solista do time se concentrasse só na criação, aproveitando sua extraordinária visão de jogo e de seu talento para os passes longos e curtos.

Os elogios da revista eram endossados por alguns de seus contemporâneos. Falando à mesma publicação, mas em 1975, o meia Ivo, do timaço do America daquela época que faria grandes duelos com o Flamengo, encheu a bola de Geraldo, de quem se tornara colega na Seleção Carioca: “O cara é sensacional. Ele nunca olha a bola. Seu estilo é magnífico. Parece que nasceu para jogar. E a facilidade que tem para driblar? Tem um controle de bola fora do normal. Olha, é melhor jogar com ele do que contra ele. Isso posso garantir”, exaltou.

A elegância de Geraldo em campo lembrava os velhos meias-armadores.

O centroavante Luisinho Lemos, que também em 1975 trocaria o mesmo America pelo Flamengo, era outro entusiasta: “Esse Geraldo é enjoado. Nunca vi igual. Tem um domínio de bola de cair o queixo”. Outro fã do futebol do meia rubro-negro era ninguém menos que Osvaldo Brandão, técnico da “Academia” do Palmeiras que assumiria o comando da Seleção Brasileira em 1975. “Ele é um jogador que eu quero em qualquer time que for treinar, até mesmo na Seleção”, afirmaria também à Placar. E com Brandão, Geraldo chegaria ao escrete.

Mas seu futebol também recebia críticas, sobretudo num contexto pós-Mundial de 1974, ainda em vista do choque de modernidade causado pelo “futebol total” da seleção holandesa. Passara-se a exigir do jogador, fosse ele de qualquer posição, a participação integral no jogo, tanto nas ações ofensivas quanto defensivas. E ao meia, principalmente, era necessário ser dinâmico: o velho cabeça de área motorzinho teria de saber construir o jogo da mesma forma que do armador demandava-se um esforço maior para combater e desarmar.

Nesse sentido, por vezes se lia ou ouvia na crônica esportiva comentários de que Geraldo era lento, um tanto dispersivo, autossuficiente ou individualista, além de contribuir pouco nas tarefas defensivas. Este último ponto era admitido pelo próprio jogador falando à Placar em 1974: “Marco mal, só cerco o adversário. De vez em quando dou sorte e tomo uma ou outra bola”. Ocorre que Geraldo, um estilista da bola, tinha apenas 20 anos na época. Teria, em tese, muito tempo para amadurecer seu jogo e aprimorar seus pontos deficientes.

Contudo, ele expunha seu ponto de vista falando à revista em junho de 1976: “Eles querem que eu jogue mais duro, que eu corra e marque mais. Tenho feito o que eles pedem, tenho até mesmo feito algumas faltas mais duras que não gostaria de fazer. Mas continuo achando que futebol é coisa diferente, que futebol é arte, e que ninguém deve tentar mudar o estilo de ninguém”, opinava, antes de defender seu estilo: “Jogar fácil é jogar como a gente sabe. Quem chuta de esquerda joga certo chutando de esquerda e não de direita”.

“Quando toco a bola de curva ou de calcanhar”, prosseguia, “quando faço uma jogada bonita, de efeito, não estou inventando nada, não estou me arriscando a deixar o time descoberto. Estou apenas fazendo o mais fácil, o que eu sei fazer com maior tranquilidade. Se eu tentar fazer diferente, chutar de bico, dar carrinhos, empurrar, usar garra, usar força, aí sim é que estarei inventando e correndo o risco de me complicar”, explicava o meia, que despontava quando o futebol brasileiro enfrentava a necessidade imperiosa de renovação.

Ao se aproximarem os meados dos anos 1970, os mais aclamados expoentes de então desse perfil clássico, cerebral, de meia-armador, como Gerson e Ademir da Guia, assistiam aos últimos anos de suas carreiras. Já o ponta relutante Paulo Cézar Caju, outro jogador talhado para a função, vivia às turras com uma imprensa muito mais incomodada com seu estilo de vida do que com seu estilo de jogo, antes de partir para a França, exilando-se no Olympique de Marselha logo após a Copa da Alemanha Ocidental. O posto estava, portanto, vago.

ENFIM, O CANECO

Nessa encruzilhada despontou Geraldo, que fez um punhado de grandes partidas na campanha rubro-negra naquele Brasileirão de 1974. No Beira-Rio, diante do forte Internacional, o jovem de 20 anos se mostrou dominante no meio-campo e participou da jogada do gol de Zico no empate em 1 a 1. Também ajudou a construir as vitórias sobre o Remo (3 a 0), Botafogo (2 a 0), e Guarani (3 a 0, já na segunda fase) no Maracanã. No clássico contra os alvinegros, em 9 de junho, fez o passe para Zico enfileirar os defensores adversários e fechar a contagem.

Geraldo entre Zé Mário e Zico no time do Flamengo do Brasileiro de 1974.

Um outro lance de Geraldo naquele Brasileiro não deu em gol, mas também arrancou aplausos no Maracanã. Foi na noite de 11 de maio, na vitória de 1 a 0 sobre o Grêmio – a primeira do Flamengo sobre o Tricolor gaúcho na história. O meia dominou a bola tendo à frente os dois beques gremistas: o uruguaio Ancheta e Beto Fuscão. Fez que ia chutar e, com um drible de corpo, livrou-se dos dois e lançou a bola limpa para Zico, que, mesmo caído, desviou o goleiro. Mas o chute saiu fraco e acabou salvo quase em cima da linha.

Aquele renovado Flamengo de Jouber só ficou atrás do próprio Grêmio na classificação geral da primeira fase. Mas na segunda, quando ficou sem Zico e Doval por lesão em jogos cruciais, como diante do Bahia na Fonte Nova e do Palmeiras no Pacaembu, perdeu pontos importantes e foi eliminado, terminando em sexto e assistindo ao rival Vasco, com campanha mais discreta, levar o título. O Campeonato Carioca vinha logo em seguida. Mas Geraldo, de início, teria de disputar a posição com Zé Mário, um jogador mais capaz na marcação.

Jouber pretendia um revezamento: num jogo, Geraldo iniciava e Zé Mário entrava no intervalo; no seguinte, acontecia o inverso. Só que, em meio ao rendimento oscilante da equipe no primeiro turno (a Taça Guanabara), Geraldo se firmou como dono da posição e assim permaneceu até o fim daquela etapa, ainda que sem chegar a brilhar. Mas logo na abertura do segundo turno, no domingo, 29 de setembro de 1974, ele teria uma atuação de encher os olhos justamente contra o America, o recém-coroado campeão da Taça Guanabara.

Era o jogo das faixas dos rubros, mas elas seriam devidamente carimbadas pelo Flamengo com um Geraldo em estado de graça, correndo, driblando, lançando, tabelando, trocando passes rápidos com Zico e avançando até a área, sempre com inteligência. E faria as assistências ao velho companheiro de juvenis para marcar os dois primeiros gols rubro-negros no jogo, aos 28 minutos do primeiro tempo e aos 15 do segundo – neste, fazendo fila na firme defesa do America, antes do passe para Zico. No final, o Fla aplicaria um categórico 4 a 1.

“Geraldo conduz Flamengo a golear America por 4 a 1”, era a manchete do Jornal do Brasil. O diário lembrava que o meia chegara a ser vaiado no primeiro turno, mas sua ótima atuação deixara as críticas para trás: “A técnica individual de Geraldo foi o que houve de melhor na partida”. Na coluna “Campo Neutro”, José Inácio Werneck o apontava como o “herói da tarde”, sendo “preciso nos passes, elegante nos desarmes, incisivo nas ações de área”, além de exibir o “sangue frio” típico de um meia cerebral em lances que definiram o jogo.

A ascensão de Geraldo seria subitamente freada por uma torção no tornozelo esquerdo sofrida em 20 de outubro, durante o empate em 1 a 1 com o Vasco na quarta rodada daquele segundo turno, que contava com oito equipes. O meia ficaria fora de ação pelo resto da etapa, além de alguns amistosos pelo país que o Flamengo seria obrigado a fazer para arrecadar e aliviar o caixa. E voltaria da lesão ainda um tanto hesitante no terceiro turno, a ponto de começar no banco os jogos contra o Vasco e o Campo Grande, pela terceira e quarta rodadas.

Sua recuperação técnica, no entanto, viria na melhor das horas: a reta final do terceiro turno. O meia foi destaque no Fla-Flu de 30 de novembro, vencido pelos rubro-negros por 2 a 1, e ainda nas duas vitórias seguidas sobre o America pelo mesmo placar – a primeira valeu o título do turno e a vaga no triangular final ao Flamengo e a segunda fez a equipe de Jouber largar na frente na decisão do título. “Dá ritmo e agressividade ao time. Fez excelentes jogadas individuais e deu bons passes para os companheiros do ataque”, avaliou o Jornal do Brasil.

Na decisão, diante de mais de 165 mil torcedores no Maracanã, bastou ao jovem Flamengo o empate em 0 a 0 com o tarimbado Vasco, campeão brasileiro, para levantar o título carioca. E apesar de ter sido uma partida truncada, Geraldo apareceu bem na etapa final, ao criar duas ocasiões claras de gol para os rubro-negros em contra-ataques, deixando os atacantes Edson e Paulinho frente a frente com o goleiro Andrada. “Geraldo vem atuando de maneira mais objetiva, sem prender a bola”, elogiou Jouber naquela reta final do campeonato.

UM JOGADOR DISCUTIDO

Com toda a sua vivência de trabalho em categorias de base, o técnico rubro-negro muitas vezes ajudou Geraldo a colocar a cabeça no lugar. Em janeiro de 1975, na pré-temporada do time em Vassouras, o meia quase se envolveu em mais um episódio dentre os vários que renderiam a ele a pecha de rebelde e indisciplinado dentro do clube. Entediado na concentração e ansioso para voltar ao Rio e rever a família, os amigos e a namorada, Geraldo tentou forçar uma saída. Foi dissuadido graças à psicologia e à conversa franca do treinador.

Desde os tempos de juvenis Geraldo colecionava alguns conflitos por conta de sua personalidade forte. Certa vez na concentração da base, no prédio do Morro da Viúva, quebrou todas as lâmpadas da sala em protesto contra o barulho feito pelos colegas, que não o deixava dormir. Na decisão do Carioca da categoria de 1973, aquela em que marcou o gol do título e acabou com o jogo diante do Vasco em Moça Bonita, brigou com o técnico Pavão no intervalo da partida por não gostar da maneira como o treinador chamava sua atenção em campo.

O fato é que desde cedo Geraldo dividia opiniões dentro do departamento de futebol do Flamengo. Alguns o consideravam arrogante, “mascarado”, um “moleque” do tipo que andava muito perto de “se perder”, até pela proximidade com o contestador Paulo Cézar Caju. Até de “marginal” e maconheiro” chegou a ser chamado – logo ele, que sequer conseguia fumar um cigarro. Já outros compreendiam seu jeito por vezes impulsivo, sim, e por isso mesmo condizente com seus 20 e poucos anos de idade. Mas muito sincero, honesto e lúcido.

Até porque o próprio clube andara falhando com Geraldo. Ainda nos juvenis, o meia decidira morar sozinho num quarto e sala em Botafogo. Mas um dirigente, temendo que o garoto “saísse da linha”, mandou buscar sua família em Barão de Cocais para morar com ele num apartamento no Leblon alugado pelo Flamengo. Acontece que o tal dirigente deu calote e Geraldo passou a se ver às voltas com cobradores até que finalmente outro cartola rubro-negro arcasse com o prejuízo e regularizasse a situação. “E eu é que sou marginal”, vociferou o jogador.

E embora se considerasse introvertido (termo que, aliás, usava para rebater as acusações de ser mascarado), Geraldo sabia criar vínculos fortes. Zico era um de seus grandes amigos: nos treinos, uma brincadeira frequente evidenciava o bom entendimento entre eles: separavam-se a uma distância de dez metros e começavam a trocar passes à meia altura, sem deixar a bola cair. E ao se aproximarem, passavam a controlar a bola com a cabeça. Até se colocarem os dois malabaristas frente a frente, ou testa a testa, com a bola presa no meio.

Outro laço muito sólido era com um adversário: o meia tricolor Carlos Alberto Pintinho, negro como ele, um ano mais jovem que Geraldo e egresso do morro do Borel, na Tijuca, Zona Norte do Rio. Geraldo e Pintinho não eram apenas companheiros de saídas noturnas para os bailes da vida: o meia rubro-negro colaborou para o letramento racial do colega (como o próprio jogador tricolor declarou em entrevista à Placar em 1977), emprestando a ele livros sobre cultura negra numa cidade às portas da eclosão do movimento Black Rio.

O apelido que ficaria atrelado a Geraldo, “Assoviador”, vinha aliás do hábito do meia de assoviar algumas de suas canções preferidas – especialmente “Your Song”, do inglês Elton John, mas na versão soul feita pelo cantor estadunidense Billy Paul – enquanto treinava e jogava. Fazia parte de seu estilo tanto quanto os meiões arriados, a camisa para fora do calção e a cabeleira black, próprios de quem tratava a bola com intimidade e espontaneidade, de quem desfilava no maior palco do mundo de então, o Maracanã, como se jogasse uma pelada.

TALHADO PARA GRANDES JOGOS

De espírito livre, solto, o futebol de Geraldo era difícil de ser “enquadrado”. Mas o puxão de orelhas dado pelo técnico Jouber na pré-temporada em Vassouras no início de 1975 surtiria efeito. Naquela temporada, o meia se consolidaria no time, confirmando inclusive um predicado já esboçado em alguns momentos de 1974: a tendência a crescer em jogo grande, fosse clássico carioca ou confronto com algum adversário de peso de fora do Rio. Nas grandes ocasiões, era como se ele vestisse o traje de gala, marcando sua presença impositiva em campo.

A primeira exibição nesse sentido viria logo no dia 2 de fevereiro, diante do Internacional no Maracanã, no amistoso de troca de faixas de campeões carioca e gaúcho. Se no ano anterior, pelo Brasileiro, Geraldo já havia tido atuação notável contra o mesmo adversário no Beira-Rio, desta vez ele simplesmente dominou o jogo do meio-campo na vitória rubro-negra por 4 a 2, sobrepujando por larga margem as presenças nada desprezíveis de Falcão e Carpegiani do outro lado, os dois inteiramente envolvidos pelo garoto de Barão de Cocais.

Com Luisinho contra o Campo Grande no Carioca: presença dominante.

“Geraldo vem ganhando maturidade ultimamente. Dentro de pouco tempo tenho certeza de que será um dos maiores jogadores do futebol brasileiro”, declarou Jouber nos vestiários após o jogo. Nas tribunas, outro treinador observava atentamente o meia: era Mário Travaglini, técnico do Vasco que comandaria dali a algumas semanas a seleção carioca num amistoso contra os paulistas, iniciando uma série de confrontos interestaduais que também serviriam como base de observação para a Seleção Brasileira, a cargo de Osvaldo Brandão.

O jogo aconteceria em 16 de fevereiro no Maracanã. Com o vascaíno Zanata e o recém-contratado tricolor Rivelino formando a dupla titular do meio-campo, Geraldo começou no banco e entrou aos 33 minutos da etapa final, já com o placar de 1 a 1. Mas, como fizera em seu começo no Fla, sua presença em campo faria a seleção carioca crescer num jogo até ali pouco movimentado. Nos pênaltis, a vitória por 4 a 1 viria com o meia rubro-negro convertendo a primeira cobrança. “Deveria ter entrado mais cedo”, escreveu o Jornal do Brasil.

Brandão teria outra oportunidade de assistir, à beira do campo, ao momento que se desenhava exuberante de Geraldo: em março, o Flamengo seria um dos convidados do torneio quadrangular que inaugurou o estádio Serra Dourada, em Goiânia, e decidiria aquele caneco com o Palmeiras, clube dirigido pelo técnico da Seleção, no dia 16. Geraldo iniciou a jogada do gol da vitória por 1 a 0, marcado por Paulinho. Mas acabou expulso absurdamente enquanto era carregado de maca ao reclamar da falta dura cometida pelo zagueiro Alfredo.

Com a venda de Zé Mário ao Fluminense no início do ano, Geraldo agora era dono absoluto da camisa 8, tendo o veterano Liminha ainda firme na proteção da cabeça-de-área e Zico mais à frente tabelando com Doval e, mais tarde, com o novo contratado Luisinho Lemos, ex-America. E na estreia deste, no Fla-Flu da Taça Guanabara que terminou 1 a 1 em 12 de abril, Geraldo fez “excelente partida”, de acordo com o Jornal do Brasil. “De seus pés partiram as jogadas mais lúcidas para o ataque”, destacou o diário ao comentar as atuações.

Naquela Taça Guanabara o Fla cumpriria campanha oscilante. Mas no segundo turno (em que o time acabaria invicto, porém um ponto atrás do Botafogo), Geraldo brilharia não só pelos raros gols que marcaria nas vitórias sobre o Bonsucesso (3 a 0) e a Portuguesa da Ilha (3 a 2), mas sobretudo por colecionar atuações memoráveis nos clássicos. A começar pelo próprio Fla-Flu, em 18 de maio, no qual fez fila na defesa tricolor antes de tabelar com Zico e deixar Luisinho na cara do gol para definir, a oito minutos do fim, a vitória por 2 a 1.

“Fla deve muito da vitória a Geraldo”, observou o repórter Antônio Maria Filho, do Jornal do Brasil, em sua análise da atuação do time. Além de ser apontado como o melhor da partida pelo diário, o apoiador rubro-negro foi eleito também o Destaque da Rodada, ocasião em que a publicação aproveitou para reiterar seus elogios: “É o cérebro do meio de campo do Flamengo. Depois que passou a jogar com seriedade, seu futebol cresceu muito. Ontem, na vitória sobre o Fluminense, deu outra exibição de grande talento”. E não seria a última.

Uma semana depois, no empate em 2 a 2 com o Botafogo (resultado que se revelaria crucial para o desfecho do turno), o time esteve duas vezes atrás no placar e foi buscar a igualdade com dois gols de Doval em jogadas arquitetadas por Geraldo, “de cujos pés partiu toda a organização de jogo do Flamengo no período em que ele foi melhor, no segundo tempo”, como escreveu Marcos de Castro na análise da partida para o JB. E no terceiro clássico do turno, dali a duas semanas contra o Vasco, o meia voltaria a ter atuação destacada.

Na vitória rubro-negra por 2 a 1, Geraldo fez o passe para o primeiro gol, de Doval, numa jogada em que desceu pela ponta direita aproveitando brecha na defesa vascaína. E no segundo, abriu a jogada na meia direita para Junior, antes de o lateral entregar a bola para Zico balançar as redes. Para a avaliação do Jornal do Brasil, o camisa 8 foi “perfeito em todos os sentidos. Jogou muito bem taticamente, sempre colocado e distribuindo com habilidade e categoria o jogo”. A grande atuação valeu mais uma indicação a Destaque da Rodada.

“Ao seu indiscutível talento individual, somou ontem uma impressionante aplicação tática, fator que contribuiu em muito para a boa vitória do Flamengo. As suas exibições vão se tornando, a cada jogo, um espetáculo a mais para os torcedores”, exaltou o diário, que ao fim daquela etapa do certame apontaria o meia como o melhor jogador do segundo turno: “O drible fácil, as deslocações constantes e o jogo bonito são características creditadas a Geraldo, um apoiador que lembra muito os talentos do passado, quando o futebol era mais arte”.

Entre o segundo e o terceiro turnos, houve uma pausa para mais alguns jogos da seleção carioca, de novo com Geraldo em campo, exibindo sua ótima fase para Osvaldo Brandão e tornando-se assim um nome fortemente cogitado para as próximas convocações do escrete canarinho. Na volta ao Flamengo, o meia cumpriu atuação brilhante no amistoso contra a forte Juventus de Turim, que excursionava pelo Brasil, com direito a assistência para o gol de Zico que decretou a vitória de virada por 2 a 1 no Maracanã na noite de 5 de julho.

No amistoso contra a Juventus italiana: ditando o ritmo do jogo.

Já no terceiro turno do Carioca, o Flamengo chegou à última rodada precisando vencer o Fla-Flu para se habilitar a decidir a etapa em partida extra contra o Vasco. E o clássico de 3 de agosto teria desfecho agridoce para Geraldo: a oito minutos do fim, ele desceu pela ponta direita e cruzou a bola para Luisinho escorar e confirmar outra vitória rubro-negra por 2 a 1. Porém, naquele duelo pegado, o camisa 8 receberia seu terceiro cartão amarelo, que o suspendia justo do jogo decisivo do turno, o qual o Fla perderia por 1 a 0, sendo eliminado.

A CHEGADA À SELEÇÃO

Setembro de 1975 seria um mês caótico para Geraldo. A começar pela saída do técnico Jouber após o início assustadoramente irregular do time no Brasileirão (no qual o meia chegou a marcar o gol da vitória de 1 a 0 sobre o Americano no Maracanã). Como sempre acontece nesses ciclos do futebol brasileiro, o técnico “paternalista” é tido como “sem pulso” e trocado por outro mais “linha dura”. Assim, entrava em cena o veterano gaúcho Carlos Froner, 55 anos, ex-capitão do Exército e treinador conhecido por suas várias passagens pelo Grêmio.

Geraldo tinha os olhos marejados quando Jouber reuniu o grupo para anunciar que entregara o cargo de técnico do Flamengo. Afinal, conhecia e convivia com o treinador desde que chegara ainda garoto à Gávea e tinha nele um amigo e incentivador. Além disso, com a chegada de Froner, ele sentia que o estilo que o gaúcho tentava implementar – com o toque de bola sendo substituído pela velocidade e pela garra, bem à moda gremista – conflitava com suas próprias características de jogo. E passou a se irritar com frequência durante os treinos.

O estopim acabaria vindo em Brasília, durante a preparação para a partida contra o Goiás pelo Brasileiro, quando Geraldo foi acusado de ter destratado com palavrões um jovem torcedor que lhe pedira um autógrafo. Foi o vacilo pelo qual pareciam aguardar há tempos dois nomes do Departamento de Futebol rubro-negro que – comentava-se à boca pequena – não nutriam simpatia pelo jogador: o vice-presidente de Futebol Ivan Drummond e o supervisor Aristóbulo Mesquita, notória eminência parda do clube há mais de uma década.

Bem no auge desse turbilhão, enquanto os dois se contradiziam sobre multar o jogador em 60% do salário e o presidente Hélio Maurício prometia apurar o caso, Geraldo era convocado pela primeira vez para a Seleção Brasileira principal no dia 25 de setembro. O Brasil jogaria contra o Peru pela Copa América, novo nome do antigo Campeonato Sul-Americano, que também teria a partir daquela edição um formato diferente: sem sede fixa, com grupos e jogos em ida e volta e estendendo-se por vários meses – quase uma Libertadores de seleções.

A convocação surpreendeu até o próprio Geraldo e seus companheiros: todos imaginavam que Zico fosse ser chamado primeiro. Em 1973 o camisa 8 havia integrado a Seleção de Amadores que disputou o Torneio de Cannes, mas não chegou a jogar. Agora era diferente: além de titular, era uma das poucas peças “de fora” agregadas por Osvaldo Brandão à base formada por atletas de clubes mineiros, que havia disputado a primeira fase do certame superando em seu grupo a Argentina (que também usou um time experimental) e a Venezuela.

Com a 10 da Seleção na vitória sobre o Peru em Lima: melhor atuação.

O Brasil esperava vencer bem na ida no Mineirão para ter a tranquilidade do empate no jogo da volta em Lima. Mas acabou surpreendido. Embora mineiro de nascimento, Geraldo foi vaiado desde o início da partida pela torcida de Belo Horizonte como um “intruso carioca” naquele quase Combinado Atlético-Cruzeiro e se perdeu em campo junto com o resto do time. Confusos, desentrosados e apáticos, os brasileiros foram derrotados pelos peruanos por 3 a 1 e ficaram na situação totalmente inversa do que imaginavam para a segunda partida.

Brandão mexeu no time para o jogo de Lima, porém manteve sua confiança no meia rubro-negro. E ele retribuiu com a melhor atuação que faria pela Seleção. Graças em grande parte a Geraldo, em torno de quem convergiam as ações ofensivas da equipe, o Brasil teve atuação impositiva pelo tempo em que ele esteve em campo e venceu por 2 a 0. “Tocando a bola com perfeição, Geraldo abria a defesa peruana com lançamentos precisos para a penetração dos atacantes, sobretudo Campos e Roberto Batata”, escreveu o Jornal do Brasil.

Geraldo, no entanto, acabaria substituído por Palhinha na reta final da partida, e a partir dali, como notou o JB, a equipe brasileira “caiu muito de produção”, já que, com a saída de “seu melhor jogador”, a Seleção “ficou sem jogadas de gol”. O resultado de 2 a 0 naquele dia 4 de outubro, aliás, não foi o bastante para a obter a classificação, e a decisão da vaga foi para o sorteio: nele, a filha do presidente da Confederação Sul-Americana, o peruano Teófilo Salinas, puxou de uma taça um pedaço de papel onde se lia o nome do classificado: “Peru”.

MAIS UM ABALO

Ao voltar da Seleção, Geraldo encontrou no Fla um novo concorrente pela sua camisa 8: o meia Tadeu, contratado do America, jogador dinâmico, objetivo, versátil, talentoso, mas muito trabalhador em campo. De início Froner propunha um revezamento entre os dois. Mas o time seguiu oscilando, embora desta vez num grupo mais forte, na segunda fase do Brasileiro. Contudo, conseguiu se classificar e, quando não se esperava mais, embalou na terceira etapa assim que o técnico achou um espaço para Tadeu e Geraldo no mesmo time titular.

O time entrou naquela fase batendo a Portuguesa no Parque Antártica (2 a 0), depois empatou com o São Paulo (1 a 1) e venceu Grêmio (1 a 0) e Náutico (3 a 0) no Maracanã e o Sport (1 a 0) na Ilha do Retiro antes de arrancar, sem Zico, um ótimo empate em 1 a 1 com o Inter no Beira Rio. Chegou à última rodada como líder do grupo com 12 pontos, precisando só de um empate com o Santa Cruz no Maracanã, na noite de 4 de dezembro, para passar à semifinal e com vantagem de jogar em casa por ter sido primeiro colocado de sua chave.

No dia 2, antevéspera da partida decisiva, Geraldo foi julgado no TJD pela sua expulsão por ofensas ao árbitro Arnaldo César Coelho no Fla-Flu da segunda fase do Brasileiro. Como era reincidente (já havia sido julgado e pegado um gancho por aquela expulsão na maca contra o Palmeiras em Goiânia no começo do ano), o Tribunal carregou na mão, suspendendo o meia por seis jogos, o que o tirava do resto do Brasileiro. Sem Geraldo, o Fla se apresentou terrivelmente confuso contra o Santa Cruz, perdeu por 3 a 1 e disse adeus ao torneio.

Geraldo começou 1976 sendo novamente multado em 60% do salário por se apresentar com atraso à pré-temporada na cidade de Miguel Pereira, interior do estado do Rio, onde uma persistente lesão o impediu de treinar normalmente, limitando-se a exercícios de recuperação física. Também ressurgiam os rumores de que uma corrente dentro do clube defendia sua venda – no ano anterior, por volta de setembro, já se especulara um suposto interesse do Palmeiras, algo que o clube paulista se apressou em negar, mas sem convencer totalmente.

Mas tão logo Geraldo voltou a campo, seu bom futebol deu o ar da graça. Com o Carioca tendo início só em 13 de março, o Flamengo rodou o país jogando uma série de amistosos e torneios, passando por Bahia, São Paulo, Distrito Federal, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Espírito Santo, além do Rio. E a equipe começou a cultivar uma série invicta, mesmo enfrentando adversários do porte de Internacional, Grêmio, São Paulo, Corinthians e Fluminense, contra quem faria, no dia 7 de março, o jogo mais memorável dessa série de amistosos.

Foi o “Fla-Flu das trocas”, que marcava a negociação de jogadores em bloco feita entre os dois clubes e valia a Taça Nelson Rodrigues. Na goleada rubro-negra sobre a “Máquina” Tricolor por 4 a 1, quem deitou e rolou foi Zico, autor dos quatro gols. Mas o mais marcante deles saiu numa tabela com Geraldo, que devolveu o passe ao Galinho num sutil e maravilhoso toque de calcanhar. “Depois de Zico, foi a melhor figura do quadro. Quando menos se espera, faz uma jogada de grande categoria”, escreveu sobre ele o Jornal do Brasil.

Por vias tortas, Geraldo também retornou à Seleção: na primeira convocação do ano, Osvaldo Brandão pretendia chamar outros nomes, mas com a lesão de Carpegiani tratou logo de trazer de volta o Assoviador. Dali por diante, ele participaria do amistoso contra a seleção brasiliense no hoje extinto Pelezão, das partidas contra a Argentina pela Copa Roca em Buenos Aires e no Maracanã, do amistoso contra o clube mexicano Pumas UNAM em San Francisco, nos Estados Unidos, e do jogo com o Paraguai no Maracanã pela Taça Oswaldo Cruz.

Pela Seleção contra o combinado brasiliense no Pelezão em 1976.

O meia também esteve entre os convocados para as demais partidas do Brasil no período (como as que valeram pelo Torneio Bicentenário da Independência dos Estados Unidos, disputado em maio daquele ano), mas não chegou a entrar em campo. Nos jogos em que atuou pelo escrete em 1976, o Brasil venceu todos, conquistando a Copa Roca e a Taça Oswaldo Cruz, além da Taça do Atlântico, que englobava os dois torneios mais a Copa Rio Branco, disputada contra o Uruguai. Geraldo só não chegou a balançar as redes pela Seleção.

OS TURBULENTOS ÚLTIMOS MESES

No início daquele ano o Fla chegaria a acumular uma invencibilidade de 31 jogos, vinda desde o revés para o Santa Cruz, no fim de 1975, e se estendendo até a metade da Taça Guanabara. Nela, Geraldo voltaria a brilhar em jogo grande: o Flamengo x Vasco da sexta rodada que arrastou ao Maracanã mais de 174 mil torcedores, o maior público da história do Clássico dos Milhões e o segundo maior em jogos entre clubes no futebol brasileiro, só atrás do Fla-Flu decisivo de 1963. E os rubro-negros venceriam impondo um categórico 3 a 1.

O primeiro gol do Flamengo, aliás, veio logo no primeiro minuto, pouco depois da saída de bola, e teve participação direta de Geraldo: lançado por Zico na meia direita, o camisa 8 invadiu a área e, quase da linha de fundo, cruzou rasteiro para Luisinho Lemos, bem colocado, apenas conferir para as redes de Mazarópi. O Jornal dos Sports descreveu assim a atuação do Assoviador naquele 4 de abril de 1976: “Chama a bola de tu. Tem com ela a maior intimidade, permissível só aos grandes craques. Fez tabelas demoníacas com Zico”.

Uma virada caprichosa do destino, porém, recolocaria as duas equipes frente a frente num jogo extra que decidia aquele turno, no dia 13 de junho. E dessa vez os vascaínos levariam a melhor nos pênaltis. No tempo normal houve empate em 1 a 1, e Geraldo marcaria seu único gol em clássicos, recebendo passe de Edu (irmão de Zico) no lado direito da área e chutando forte e cruzado para igualar o placar. Mas na decisão na marca da cal, a cobrança fraca do camisa 8, a primeira das alternadas para o Fla, seria facilmente defendida por Mazarópi.

Quatro dias depois, Geraldo se veria envolvido em outro caso de indisciplina, agora na viagem do Flamengo a Salvador para um amistoso com o Bahia. O meia teria chegado bêbado ao embarque no Galeão e destratado o auxiliar técnico Marinho Rodrigues. Já na capital baiana, foi acusado de bater de porta em porta nos quartos do hotel de madrugada para acordar os jogadores. Também recaía sobre ele a acusação de tentar agredir Tadeu – o que seria desmentido pelo próprio colega. Assim, o meia foi desligado da delegação.

O clube e o jogador só se pronunciaram na volta da viagem. Geraldo foi de novo multado por conta do episódio, desta vez em 40% do salário, e sua situação crítica na Gávea atrairia o interesse do Botafogo em sua contratação, mas o presidente Hélio Maurício não queria nem ouvir as ofertas: “Nenhuma proposta tirará Geraldo do Flamengo. Ele tem apenas 22 anos, e se às vezes faz algumas bobagens é porque está sendo mal orientado. Vamos recuperá-lo, pois um craque como ele não se pode perder assim, sem mais nem menos”, declarou.

O episódio renderia até assunto para o célebre cronista José Carlos Oliveira, o Carlinhos Oliveira, em sua coluna diária no prestigioso Caderno B do Jornal do Brasil. No texto, Carlinhos mergulhava no lado psicológico do caso, comentava algumas das críticas comumente endereçadas a Geraldo e elencava algumas perguntas simples que qualquer jornalista poderia (ou deveria) ter feito ao atleta para elucidar a situação. E concluía: “Ninguém pediu a Geraldo que esclareça o que vem ocorrendo. Estão querendo simplesmente destruí-lo”.

Geraldo reapareceria vestindo a 10 do poupado Zico e marcando um golaço para fechar a vitória de 3 a 0 sobre o Olaria em 14 de julho: tabelou com Tadeu e fez fila na defesa bariri antes de dar um leve toque na saída do goleiro Ernani. Duas semanas depois, escalado na ponta direita, via o Flamengo empatar em 2 a 2 com o Goytacaz no Maracanã e o ponteiro Paulinho já à beira do campo para substituí-lo. Sua reação: um passe magistral para Luís Paulo recolocar o Fla na frente (venceria por 4 a 2). Desceu o túnel aplaudido enquanto tirava a camisa.

Em 4 de agosto o Flamengo foi a Campos enfrentar o Americano pelo terceiro turno do Carioca. No primeiro tempo que terminou com placar em branco, a melhor chance foi um chute de Geraldo na trave. Na etapa final, o time da casa chegaria a uma surpreendente vitória por 3 a 0 que se revelaria mais um dos tropeços irrecuperáveis dos rubro-negros na disputa por um título de turno (e pela vaga nas finais) nos últimos dois anos. Mas nem Geraldo nem ninguém poderia imaginar que, aos 22 anos, aquele seria o último jogo de sua vida.

CALOU-SE O ASSOVIO

Geraldo já vinha há meses se queixando de uma lesão misteriosa que os médicos do clube não conseguiam detectar. Já para os dirigentes, era apenas mais uma invenção do jogador para não se empenhar nos treinos e nos jogos, o popular migué. Chegaram ao ponto de levar os exames do meia a outro grupo de especialistas de fora do clube para estes atestarem que não havia nada de errado, lesão alguma. Até que os médicos rubro-negros chegaram à conclusão de que poderia ser reflexo de uma inflamação nas amígdalas do jogador.

Uma cirurgia das amígdalas, porém, era algo que Geraldo temia. Dela já havia escapado duas vezes em 1975, primeiro em janeiro, depois em dezembro. Nesta, havia fugido, com a ajuda de Carlos Alberto Pintinho, da clínica onde já se encontrava internado. A mesma Rio-Cor, na Rua Farme de Amoedo, em Ipanema, de propriedade de Hélio Maurício, onde enfim se submeteria ao procedimento operatório marcado para 25 de agosto, o que tiraria o jogador de uma excursão rubro-negra com jogos em Londrina, Fortaleza e São Luís.

Por falta de médicos devido a uma falha de comunicação interna da clínica, a operação acabou não acontecendo no dia 25, sendo adiada para a manhã seguinte. Geraldo acordou cedo e foi à missa na Igreja de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. De lá, andou cerca de dois quarteirões até a Rio-Cor, onde já o esperava o médico do Flamengo, Dr. Célio Cotecchia, que assistiria à operação. Considerada simples, corriqueira, com aplicação de anestesia local, a cirurgia teria início às 8h30. Uma hora e meia depois, Geraldo estava morto.

A operação havia sido rápida e bem-sucedida. Entretanto, logo em seguida Geraldo começou a passar mal e sofreu queda vertiginosa de pressão até ter uma primeira parada cardíaca. Foi reanimado à base de choques elétricos, mas não demorou a sofrer outra parada cardíaca, esta fatal. Segundo os médicos, a causa mais provável do óbito havia sido uma reação alérgica do organismo de Geraldo a algum dos componentes dos medicamentos da anestesia. O chamado “choque anafilático”, caso tido como raro, de incidência de um a cada 10 mil.

Para o Flamengo, 1976 já vinha sendo um ano de perdas dolorosas: em maio, falecera o torcedor-símbolo do clube, Jaime de Carvalho, fundador da Charanga. No fim de julho, o ex-zagueiro Reyes teria morte precoce, aos 35 anos, vitimado por uma leucemia. E em setembro, o luto seria pelo antigo ponteiro Jarbas, um dos jogadores que mais haviam vestido a camisa rubro-negra na história. Além deles, o futebol brasileiro havia perdido naquele ano o jovem ponta Roberto Batata, do Cruzeiro, e o célebre locutor de rádio e TV Geraldo José de Almeida.

No dia 26, os jogadores do Flamengo estavam em Fortaleza, onde haviam vencido o Ceará (2 a 0) num amistoso na véspera. Ouviram a notícia pelo rádio e desabaram num choro incrédulo. O jogo seguinte, contra o Moto Clube em São Luís, foi cancelado e a delegação voltou ao Rio imediatamente. A morte de Geraldo comoveu não só os rubro-negros como o futebol carioca e a cidade do Rio de Janeiro. O corpo do jogador foi velado no salão nobre da sede do Morro da Viúva, honraria que os estatutos só permitiam aos grandes beneméritos.

Zico, Rondinelli, Luisinho, Cantarele e o zagueiro Dequinha eram os mais abalados, chegando ao descontrole emocional durante o velório, que contou ainda com a presença de adversários em campo, como Rivelino, Paulo Cézar Caju, Marinho Chagas, Carlos Alberto Pintinho, Gil, Nilson Dias e Manfrini, além dos técnicos Paulo Amaral e Mário Travaglini e do ex-jogador Gerson. Em seguida, o corpo embarcou para Belo Horizonte e de lá para Barão de Cocais, onde Geraldo foi enterrado no Cemitério da Lagoa, ao pé da Serra do Caraça.

Uma comissão de cinco jogadores do Flamengo – Zico, Rondinelli, Cantarele, Dequinha e o ponta-direita Paulinho – também viajou para a cidade natal do meia, como representantes do clube. Este, por sua vez, continuou pagando mês a mês à família do jogador os salários de Geraldo até o fim de seu contrato, previsto para abril de 1977. Era o mínimo a ser feito, na verdade. Além disso, como comentou a matéria da revista Placar sobre a morte do jogador, “nem a família nem o futebol se sentirão pagos sem a presença de Geraldo”.

A TOCANTE HOMENAGEM FINAL

Foi o minuto de silêncio mais sentido da história do Maracanã. Na noite de 1º de setembro, seis dias após a morte de Geraldo, o Flamengo voltou a campo para enfrentar o ABC, de Natal, na abertura do Campeonato Brasileiro. O time vestia calções negros simbolizando o luto por seu jogador falecido, o que faria até o fim daquela temporada. E venceu por 2 a 0, dois gols de Zico. Mas ninguém sorriu, nem comemorou. No entanto, uma ideia vinha amadurecendo dentro do elenco desde a ida do grupo de jogadores rubro-negros a Barão de Cocais.

De início, o plano era a realização de um jogo em homenagem a Geraldo entre o Flamengo e uma seleção carioca com renda destinada à família do meia. Mas a ideia cresceu: o oponente passou a ser a Seleção Brasileira. E ganhou corpo quando Pelé anunciou que viria ao Brasil para participar. O jogo aconteceria em 6 de outubro no Maracanã. O Brasil entrou em campo com 10 campeões do mundo de 1970 e fez entrar outros craques ao longo do jogo. Mas naquele dia ninguém tiraria a vitória do Fla: 2 a 0, gols de Paulinho e Luis Paulo.

Na ocasião, o Flamengo já passara por uma troca no comando: Carlos Froner deixara o clube ao fim de seu contrato, em 10 de setembro, e o jovem Cláudio Coutinho ganhava a chance de colocar em prática suas ideias inovadoras sobre futebol no clube de seu coração. Só nos resta imaginar o quanto Geraldo poderia ter tirado proveito dessa experiência, tanto no aspecto tático, para trabalhar os pontos fracos de seu jogo, quanto no humano, no relacionamento com o sempre comunicativo e cordial Coutinho – aliás, também falecido precocemente.

Geraldo nos deixou como uma pedra preciosa não-burilada. Um enorme talento delineado, mas incompleto, ceifado antes de poder desfrutar do sucesso que teria aquela geração que se formava dentro do Flamengo. Assim, como escreveu Ivan Alves à revista Manchete na nota sobre o falecimento do jogador, “de Geraldo Assobiador, há de nos ficar a memória das indisciplinas mal assimiladas por dirigentes incapazes, a justa euforia do menino pobre em contato com a glória e aquela ginga de malandro que emoldurava um futebol de lorde inglês”.